O deputado verde Fernando Gabeira é dotado de um incrível senso de oportunidade. Nos anos 80 tornou-se o símbolo da ação mais ousada da esquerda armada contra a ditadura – o sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick, em 4 de setembro de 1969 – ao publicar o livro “O que é isso companheiro?”. Seus parceiros na ação (e os parentes dos que não sobreviveram) foram unânimes em reprovar a obra. Só não fizeram muito barulho na época porque, justiça seja feita, só ele tinha tomado tal iniciativa. Mas aí veio o filme de mesmo nome e o caldo entornou de vez. Além de colocar Gabeira como protagonista, tendo ele sido no máximo coadjuvante, o longa de Bruno Barreto ridicularizou um dos mentores de fato do sequestro: Virgilio Gomes da Silva, codinome Jonas. A resposta nesse caso foi direta e incisiva. Com algum atraso, os remanescentes da operação escreveram artigos e o compilaram em um livro da Fundação Perseu Abramo – “O Sequestro da história” – e protagonizaram um documentário – “Hércules 56” – ambos respondendo à indelicadeza de Gabeira, que ficou em silêncio diante da escandalosa versão cinematográfica dos Barreto.
Mas isso é polêmica antiga. A novidade é que só agora, 40 anos depois do sequestro, a história de Virgilio foi resgatada com riqueza de detalhes. Quis o destino, se é que ele existe, que a efeméride do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick coincidisse com o reconhecimento do Exército pela sua morte. Foi apenas em 2004, e graças a uma investigação jornalística do repórter Mário Magalhães, da Folha de S. Paulo, que a família de Jonas descobriu e teve acesso ao laudo de sua morte. Até então considerado “desaparecido político”, ficou-se sabendo que ele está enterrado no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.
“Não sabemos em que sepultura. Quero que o Exército se responsabilize por essa busca, especialmente agora que eles reconheceram a morte dele dentro de suas dependências. Virgilio merece um enterro decente”, diz a viúva, Ilda Martins da Silva. Além do reconhecimento tardio, Virgilio ganhou uma biografia. “De retirante a guerrilheiro”, lançada no último dia 28 de setembro, durante ato em homenagem a Jonas, na sede do Sindicato dos Químicos de São Paulo. Fruto de minuciosa pesquisa, é assinada pelos historiadores Edson Teixeira e Edileusa Pimenta de Lima, que também é namorada de Virgilio Filho, filho de Jonas. Um acerto definitivo de contas.
A ação e a reação
Virgilio Gomes da Silva chegou a São Paulo aos 18 anos, em 1954, de carona em um caminhão de carnes. Veio com cara, coragem e uns trocados no bolso. Disposto a deixar de vez a vida na roça do Rio Grande do Norte, onde morava com a família. Chegou a passar a fome antes de conseguir emprego na indústria química de São Miguel Paulista. Em 1957 entrou no PCB. Ganhou status de quadro político durante uma greve dos químicos, na qual conheceu sua esposa, Ilda. Número 2 na hierarquia da ALN em 1969 (o número 1 era Carlos Marighella), Jonas planejou e executou a ação à revelia do comando da organização. Foi preso pouco tempo depois do sequestro, no dia 29 de setembro, na casa da família do jornalista Antonio Carlos Fon, na rua Duque de Caxias, em São Paulo. “Alguém do Grupo Tático Armado da ALN, do qual Jonas era o comandante, abriu o local. Depois tentaram jogar a culpa nas costas do Francisco Gomes da Silva, irmão dele, morto recentemente. Chico negou até o fim”, afirma Paulo de Tarso Venceslau, também da ALN e integrante do sequestro.
“De retirante a guerrilheiro” revela detalhes inéditos dos últimos momentos de Jonas na prisão. “Ele passou por uma sessão de 12 horas de tortura, com choques e afogamento. No fim, ainda guardou água na boca para cuspir na cara do torturador”, conta a autora, Edileusa Lima. Virgilio Gomes da Silva foi assassinado a chutes, pontapés e pauladas pouco tempo depois. Pai deste repórter, Paulo de Tarso Venceslau, foi preso logo em seguida, em uma emboscada em São Sebastião, para onde foi com a finalidade de buscar justamente a família de Jonas, que já estava presa. É ele quem conta: “Me levaram para uma sala e me deixaram em um pau de arara em frente a uma parede cheia de sangue e com um volume, que disseram ser a massa encefálica do Jonas.” Pode-se dizer que essa foi a terceira morte de Virgilio Gomes da Silva. Entre a primeira, a física, naquele fatídico dia 28, e a terceira, a oficial, em 2004, Jonas foi massacrado pelo filme “O que é isso companheiro?” , baseado no livro homônimo de Fernando de Gabeira. “O filme é uma fraude. Virgilio não era louco e agressivo como eles mostraram. Também não fumava, mas nas cenas aparece fumando sem parar. Processei a produtora e ganhei em primeira instância. Perdi na segunda e estou aguardando a terceira”, diz a viúva Ilda. A propósito: a biografia recém-lançada dedica um capítulo a esse episódio. “Fizeram uma caricatura covarde e infame do Jonas. No filme ele é retratado como um idiota. O Gabeira não teve a decência de vir a público dizer que o filme distorcia a verdade”, afirma o historiador Daniel Aaarão Reis, um dos idealizadores do sequestro.
Ministro Franklin Martins não pode entrar nos EUA
A famosa carta lida no Jornal Nacional com a exigência do grupo (a libertação de 15 militantes de esquerda, entre eles José Dirceu e o ex-parlamentar comunista Gregório Bezerra) foi escrita pelo atual ministro Franklin Martins, e não pelo deputado federal Fernando Gabeira, como mostra o filme “O que é isso companheiro?”. Assim como a ideia de “capturar” o embaixador nasceu de uma conversa entre Franklin, que havia recentemente passado para a Frente de Trabalho Armado do grupo, e Cid Queiroz Benjamin. A ALN já tinha decidido que faria uma ação de impacto, quando a dupla passou por acaso em frente à casa do embaixador, no Rio, e percebeu que não havia ali nenhum grande aparato de segurança.
Como represália à participação no sequestro, Franklin ainda está proibido de entrar nos EUA, mesmo sendo do primeiro escalão do governo. “Eu nunca viajei aos EUA. E também nunca pedi visto, até porque ele seria negado e não quero passar por isso”, afirmou em entrevista à Fórum. Nas viagens oficiais de Lula ao país, o adjunto de Franklin, Nelson Breve, o representa na comitiva oficial.
Um equívoco triunfal
Quarenta anos depois do sequestro de Charles Elbrick, a maioria de seus integrantes reconhece que a ação acabou contribuindo para que o governo militar apertasse o cerco e ampliasse a violência contra qualquer tipo de reação, ainda que pacífica. No filme “Hércules 56”, o jornalista Flavio Tavares, que estava entre os libertados que foram para Cuba, cravou: “Foi nosso equívoco triunfal”. Já Vladimir Palmeira, que também integrou o grupo que foi beneficiado pela ação, foi mais incisivo. “Foi uma ação politicamente errada. A repressão que se seguiu matou o Marighella, o Jonas e deixou a esquerda na defensiva”. O historiador Daniel Aarão Reis, que era da ALN e foi um dos idealizadores da ação, pondera. “A ação repousava na análise de que a luta estava em plena ofensiva. O Marighella anunciava a guerrilha rural para o ano seguinte e para nós era urgente dar um golpe no golpe na semana da pátria. O erro básico foi superestimar a dinâmica revolucionária nossa e da sociedade”.
Gregório Bezerra vai virar filme
A história de Gregório Bezerra, um dos 14 presos políticos trocados por Charles Burke Elbrick, vai virar filme. O militante será interpretado pelo ator Werner Schunemann no longa "História de um Valente", de Cláudio Barroso. A primeira opção era Jackson Antunes, mas o ator teve uma trombose e não pôde filmar a antológica surra que Bezerra levou em uma praça no Recife. O longa tem como base a trajetória de Gregório entre 1957 e 1964, quando foi preso pelos militares. Ele foi o único ativista a ser torturado em praça pública, no Recife.
Além de Schunemann, estarão no elenco Edmilson Barros (Miguel Arraes), Tuca Andrada (Lúcio Flávio), Carol Holanda (Eliane), Magdale Alves (Maroca, mulher de Gregório), Hermila Guedes (Jandira, filha de Gregório), Germano Haiut (Dr. Bastos) e Armando Babaioff (o camponês Cícero). Com custo de R$ 3,5 milhões, o filme será ambientado nas décadas de 50 e 60.
Serão reconstituídos, por exemplo, lugares como a Praça de Casa Forte (local onde Gregório Bezerra foi publicamente torturado), pontos do bairro de Jardim São Paulo (onde o comunista morou) e ainda a Zona da Mata Sul de Pernambuco. "Eu quero desenvolver o filme num tom de suspense político-policial, mas não vou esquecer o lado humano de Gregório", afirma o cineasta.
Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum de outubro. Nas bancas.
Fonte:Revista Fórum
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