Para escritor Tariq Ali, americanos não entenderam que quanto mais longa a ocupação, maior a resistência
Ivan Marsiglia, de O Estado de S.Paulo
Tariq Ali: 'em público, Obama criticou assentamentos de Israel; privadamente, os estimulou'
SÃO PAULO - O chão tremeu três horas depois que a secretária de Estado americana Hillary Clinton pisou em Islamabad, capital do Paquistão, na quarta-feira. A explosão de um carro-bomba em um mercado popular em Peshawar, no noroeste do país, matou 105 pessoas, 13 das quais crianças. No mesmo dia em Cabul, capital do Afeganistão, o ataque a uma hospedaria usada por funcionários da ONU tirou a vida de outras 12 pessoas. Tudo em uma semana em que 8 soldados americanos morreram em confrontos no sul do país – elevando para 55 o número de militares dos EUA mortos só em outubro, recorde mensal desde a invasão, em 2001 – e 155 iraquianos morreram e mais 500 ficaram feridos em dois atentados a bomba no domingo, em Bagdá.
Parece que o céu caiu sobre as cabeças dos americanos neste início de século 21. Mergulhado na maior crise econômica desde o crash da bolsa de Nova York em 1929 e às voltas com uma crise militar evidenciada na instabilidade permanente de todos os fronts de batalha em que se meteu durante a administração George W. Bush, os EUA de hoje são um desafio monumental às esperanças catalisadas pela eleição de Barack Obama para a Casa Branca. Estaria o democrata – e sua esfuziante secretária de Estado – à altura da responsabilidade? Para o escritor e ativista paquistanês Tariq Ali, não.
“Obama é um presidente fraco, que não está à altura das dimensões da crise que enfrenta”, dispara, sem piedade, o autor de Confronto de Fundamentalismos – Cruzadas, Jihads e Modernidade (Record, 2002), livro explosivo que colocava no mesmo patamar moral os fanáticos religiosos do Islã e os “falcões” da extrema direita americana na era Bush. Aos 66 anos, o intelectual nascido e criado na cidade de Lahore, então parte da Índia colonial, e radicado em Londres, é um crítico agudo do “Estado imperialista” americano e de teologias econômicas que colocam o deus-mercado acima de quaisquer necessidades dos homens. Não por acaso, Tariq é um dos editores da New Left Review, revista fundada nos anos 60 que se tornou a bíblia da esquerda britânica. E é colunista do jornal The Guardian.
Com dezenas de livros publicados sobre política internacional, história e cultura do Oriente, além de novelas ficcionais, roteiros de cinema e peças de teatro, Tariq acaba de lançar no Brasil, pela Jorge Zahar Editor, Fidel Castro – As Declarações de Havana, uma compilação comentada de três discursos proferidos pelo ditador cubano entre 1953 e 1961, em que não esconde sua admiração por ele. Entusiasta também das ideias do venezuelano Hugo Chávez e do boliviano Evo Morales, Tariq definitivamente não reza pelo mesmo terço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem considera “uma versão tropical de Tony Blair, desesperado para agradar pessoas às quais deveria se opor”.
Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade ao Aliás, Tariq Ali aponta a sua metralhadora verbal para a administração Obama – “incapaz de entender que é a guerra no Afeganistão que está exacerbando a crise no Paquistão” –, diz que a vida em Bagdá hoje é “pior do que era sob Saddam Hussein” e profetiza que, se um dia os EUA apoiarem Israel em uma incursão militar ao Irã, “a guerra no Iraque, em comparação, vai parecer um piquenique”.
Nesta semana, dois atentados no sul do Afeganistão mataram oito soldados americanos. Outubro foi o mês mais mortal para as tropas dos EUA no país desde a invasão, em 2002 – com 55 mortos. E o presidente Barack Obama enfrenta o dilema sobre enviar ou não mais tropas para lá. O que ele deveria fazer?
É verdade que o número de baixas entre soldados dos EUA e da Otan aumentou dramaticamente nos últimos seis meses, mas não se esqueça também da morte de civis inocentes na região. Há, de fato, um debate sério nos altos escalões políticos e militares americanos e me parece evidente que muitos estão defendendo uma retirada estratégica do país. Até Thomas Friedman, do New York Times, normalmente um “falcão” nesse tipo de assunto, tem sugerido que os EUA saiam de lá. São tensões que se refletem na política americana no Afeganistão. Há algumas semanas, o chefe das Nações Unidas em Cabul, um norueguês cabeça-dura, insistiu que as eleições presidenciais tinham sido justas e (o presidente Hamid) Karzai era o legítimo mandatário reeleito. Aí, seu assessor, Peter Galbraith, uma espécie de representante não oficial do Departamento de Estado, ficou furioso – pois agora os EUA andam insatisfeitos com Karzai, que é uma criação deles mesmos. Discordou e acabou demitido.
E ficou claro que houve fraude.
Quando o grupo de observadores eleitorais da ONU afirmou com todas as letras que as eleições tinham sido fraudadas, as montanhas Hindu Kush devem ter tremido com as gargalhadas dos pashtuns (etnia que habita o sudeste do Afeganistão e noroeste do Paquistão e se opõe ao governo aliado dos EUA). O bando de marionetes que apoiava Karzai perdeu porque se recusa a dividir poder e dinheiro com outros colaboradores. Se for autorizado a permanecer no poder, terá que ser mais maleável... Quando o general Stanley McChrystal interveio no debate político pedindo mais tropas, Obama deveria tê-lo demitido – a exemplo do que (o presidente Harry) Truman fez com (o general Douglas) MacArthur durante a Guerra da Coreia (1950–1953).
O senhor publicou um artigo na ‘New Left Review’ defendendo a ideia de que foi o fracasso da ocupação norte-americana que ressuscitou o Taleban no Afeganistão. Abandonar o país agora não seria perigoso tanto para os EUA como para a segurança internacional?
O que escrevi naquela ocasião acabou confirmado pelos acontecimentos. Quanto mais longa é a ocupação, maior a resistência a ela. A questão agora não é de “segurança internacional” (seja lá o que isso signifique), trata-se simplesmente de livrar a cara da Otan. As pessoas precisam aprender a diferenciar os insurgentes dos membros da Al-Qaeda. Mesmo a mais avançada central de inteligência ocidental sabe que a ameaça da Al-Qaeda hoje é mínima, se é que ela ainda existe. E seus líderes não se encontram no Afeganistão, mas presos no Paquistão ou espalhados por lá.
É por isso que a tensão em Cabul se espraia para o Paquistão?
Exato. Enquanto essa farsa acontece em Cabul, no vizinho Paquistão a situação vai se tornando cada vez mais mortal. O governo Zadari – que na realidade é dirigido pela embaixadora americana Anne W. Patterson – ordenou que o Exército paquistanês varresse o Taleban do Waziristão do Sul, próximo à fronteira com o Afeganistão. Uma outra iniciativa fadada ao fracasso. Mais inocentes vão morrer e outros refugiados vão se juntar aos 2 milhões de pessoas expulsas de suas casas que já estão morando nos campos. O resultado será um legado amargo de ódios realimentados e desejo de vingança que só poderá resultar em novos ataques na região – além do risco de criar tensões dentro das Forças Armadas paquistanesas. A administração Obama é incapaz de entender que é a guerra no Afeganistão que está exacerbando a crise no Paquistão, e se continuar assim as coisas só vão piorar. Não foi por acaso que essa semana o ex-marine Matthew Hoh, oficial sênior do serviço exterior no Afeganistão, criticou o esforço de guerra da Otan. Ela é parte do problema, não da solução.
No domingo, 155 pessoas foram mortas no Iraque numa série de explosões – no momento em que as tropas americanas começam a deixar os centros urbanos e devolver a gestão da segurança aos iraquianos. Sair do Iraque foi uma das promessas de campanha de Obama. Ele poderá mantê-la?
Nunca houve a intenção de fazer uma retirada completa. Só o que foi proposto foi restringir a presença militar americana às bases dos EUA no Iraque – onde essas tropas permaneceriam prontas para agir como uma força de emergência para garantir os interesses americanos. Essas tropas seriam reduzidas e parte delas despachada para o Afeganistão. Mas a guerra no Iraque ainda não terminou, e o regime instalado no país não duraria sem a presença americana. Então, neste momento, está completamente fora de questão uma retirada total do Iraque. Obama, isso não deveria ser esquecido, é o presidente de um Estado imperialista. Ele também serve a esses propósitos, de outra maneira não estaria na Casa Branca.
Após os ataques, o chanceler iraquiano, Hshyar Zebari, acusou a Síria e outros países vizinhos de não evitarem ações terroristas na fronteira com o Iraque. O governo sírio respondeu chamando as acusações de Zebari de ‘imorais’. Quem está com a razão?
Sempre que esse regime fantoche dependente das tropas de ocupação americanas é atacado vai correndo pôr a culpa em países vizinhos, porque olhar para o espelho seria doloroso demais. Mas basta tirar sua máscara para ver o tamanho do desastre. A vida no Iraque hoje é pior do que era sob Saddam Hussein. A repressão dos clérigos prevalece sem que os EUA sejam capazes de controlá-la.
Em seu livro ‘Confronto de Fundamentalismos’, de 2002, o senhor critica tanto os fanáticos religiosos quanto os ‘falcões’ do presidente Bush e prevê que a segurança do mundo pioraria muito caso os EUA invadissem o Iraque. Um diagnóstico que se confirmou. Qual o primeiro passo para alterar a situação?
Seria os EUA e seus aliados pararem de promover guerras por influência política, retirar suas tropas do Oriente Médio e do Afeganistão. Isso exige uma solução para a questão entre israelenses e palestinos, que se prolonga por mais de meio século. Obama falou com uma língua bífida no Cairo. Publicamente, criticou os assentamentos de Israel nos territórios ocupados. Privadamente, os estimulou. Quem disse isso foi um porta-voz israelense na televisão Al-Jazira. Então, o primeiro passo ainda está longe de ser dado.
Mas Obama sofre uma tremenda pressão interna nos EUA, por supostamente não defender como deveria os interesses nacionais. E, ao mesmo tempo que tem que lidar com o duro legado da administração Bush, anuncia uma nova política externa, com ênfase no multilateralismo. É só discurso? Como avalia o governo Obama até agora?
Existe um forte anseio da parte de muita gente nos EUA e no resto do mundo por uma mudança significativa, e muitas dessas esperanças apareceram representadas na vitória de Obama. Então, ele estava a caminho de se tornar um grande líder. Mas o problema não é individual, é sistêmico. A crise econômica e militar que os EUA estão enfrentando exige medidas fortes: o desmonte da economia neoliberal e sua substituição por um capitalismo de utilidade pública. Joseph Stiglitz e mesmo Paul Krugman defendem essa transição. E muitos dos apoiadores de Obama estão ficando cada vez mais deprimidos. Um dos mais inteligentes deles, Frank Rich, do New York Times, está obviamente farto dos recuos na agenda interna. Recentemente, escreveu: “Os americanos continuam suspeitando de que Washington esteja mancomunada com interesses poderosos, contribuindo para a confusão e o ceticismo sobre o que acontece longe dos olhos do público na batalha pela reforma do sistema de saúde. O público tem razão. Acordos legislativos da atual administração com companhias farmacêuticas foram assinados a portas fechadas. Business Week reportou no início de agosto que o United Health Group e os gigantes do ramo de seguros, que são seus parceiros, andaram rondando discretamente parlamentares democratas para impedir qualquer opção de saúde pública que possa competir com eles nos negócios”. Acho que Obama é um presidente fraco, que não está à altura das dimensões da crise que enfrenta. E o pior é que não há uma oposição organizada ao governo, a não ser da parte dos republicanos de direita. Os liberais silenciaram em nome da lealdade e da incapacidade de propor mudanças às políticas interna e externa do país.
O jornalista britânico Robert Fisk afirma que a maior ameaça à segurança internacional não está no Irã, no Iraque ou no Afeganistão, mas no Paquistão – que tem armas nucleares e uma situação política instável. O senhor concorda?
Fisk exagera. As instalações nucleares do Paquistão estão seguras, a não ser que as Forças Armadas se desestabilizem, o que é muito improvável – só ocorreria se a escalada da guerra dos EUA no Afeganistão se tornar incontrolável. Nesse caso, Fisk poderia estar certo. Mas os reais problemas do país são a existência de uma elite venal e de uma população atingida pela pobreza. O regime corrupto liderado por Asif Zardari obedece às instruções da embaixada americana em Islamabad sem questionar nada. A representante americana no Paquistão, Anne Patterson, é por vezes de uma franqueza desconcertante. No início do ano ela ofereceu uma verdadeira pérola a um chefe da inteligência europeia em visita ao país. Disse que, enquanto Musharraf costumava ser pouco confiável, dizendo uma coisa em Washington e fazendo o contrário quando chegava em casa, Zardari é perfeito: “Ele faz tudo o que a gente pede”. O mais perturbador não é a candura da senhora Patterson, mas sua total incapacidade de julgamento. Zardari pode ser uma doce criatura aos olhos de Washington, mas o ódio que desperta no Paquistão não se limita apenas a seus adversários políticos. Ele é desprezado principalmente por ser venal. Deixou seu posto como ministro do Investimento e, poucas semanas depois de ocupar o palácio presidencial, seus asseclas já assediavam os grandes empresários do país em busca de uma parcela de seus lucros.
E o atentado que matou mais de cem pessoas quarta-feira no Paquistão, horas depois da chegada de Hillary Clinton ao país? Foi apenas, como ela disse depois, a manifestação do desespero de certos grupos que estão ‘no lado derrotado da História’ ou significa que o Taleban está se tornando mais forte no Paquistão?
Se o atentado foi praticado pelo Taleban ou por um grupo tribal pashtun, não sabemos. Mas o que é evidente é que foi uma resposta à recente ofensiva ao Waziristão do Sul. Há uma lógica mortal nesse tipo de guerra, cuja lição Washington ainda não aprendeu. Deveriam ter perguntado a Hillary Clinton se o Taleban era o “lado derrotado” quando os EUA começaram a negociar com ele.
Seu livro lançado recentemente no Brasil, ‘As Declarações de Havana’, traz a público três discursos de Fidel Castro no início da revolução que dão pistas sobre sua concepção de história e suas relações com os EUA. Essa semana, a ONU pediu novamente ao governo americano que ponha fim ao embargo econômico à ilha. Sabemos que tal decisão não depende apenas da vontade de Obama, mas, principalmente, dos congressistas americanos. Acha que hoje exista um clima melhor na sociedade americana para a derrubada do embargo?
A nova geração cubano-americana de Miami já não sente o mesmo ódio que seus avós alimentavam contra Cuba. O bloqueio econômico sempre foi imoral. É agora um anacronismo e Obama poderia se empenhar mais se não estivesse tão afundado em problemas. Quando o embargo cair, um novo debate terá início em Cuba. O debate sobre para que direção seguir: Miami ou Pequim?
Juanita Castro, irmã de Fidel que vive em Miami, veio a público esta semana dizer que trabalhou como espiã para a CIA contra o regime castrista. O que sabe dessa história?
Tudo o que eu sei é que isso não é exatamente uma surpresa. Fidel pertencia a uma família cubana tradicional e reacionária. Ele rompeu com seu passado e com sua classe social originária. Sua família, não. Juanita, em particular, tem feito discursos venenosos contra o regime por muitas décadas. Então, não é nenhuma surpresa.
Em 2006, o senhor declarou à BBC que estava ‘muito decepcionado’ com o primeiro mandato do presidente Lula. Por quê? Agora que o segundo mandato está chegando ao fim, que legado ele deixará ao Brasil e à América Latina?
O que eu quis dizer naquela ocasião foi que, após os anos de governo Cardoso, de desindustrialização do Brasil pela implementação do neoliberalismo, era triste ver Lula e seus aliados prosseguirem no mesmo caminho. Também não foi agradável ver o País enviar tropas para policiar o Haiti – resultando na renúncia de um comandante brasileiro e no suicídio de outro. Triste. Eu o vejo como uma versão tropical de Tony Blair, desesperado para agradar pessoas às quais deveria se opor. O segundo mandato tem sido melhor em alguns aspectos, mas não na economia – que, para mim,necessita de uma mudança de grandes proporções. Na política externa, Lula sabiamente recusou-se a participar dos planos americanos para desestabilizar Evo Morales e Hugo Chávez. E manifestou-se contra a instalação de bases dos EUA na Colômbia, mas não deveria ter se deixado convencer tão facilmente por Obama.
A visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil, marcada para o dia 23 de novembro, tem sido alvo de críticas da comunidade israelense no País e até de parlamentares americanos, como o democrata Eliot Engel. Eles argumentam, entre outras coisas, que Ahmadinejad nega a existência do Holocausto e, portanto, não deveria ser recebido em um país democrático. Aceitando o encontro, Lula não dá uma mensagem ambígua ao mundo?
Há uma controvérsia sobre o que Ahmadinejad realmente disse a propósito do Holocausto. Seus partidários insistem que o que ele criticou foi o uso que Israel faz hoje em dia do tema do Holocausto. É o que (o cientista político americano) Norman Finkelstein, cujos pais passaram a juventude em um campo de concentração nazista, chama de “indústria do Holocausto”. Acho curioso que israelenses se julguem no direito de dizer quem pode visitar quem. Eles não têm muita moral depois dos contínuos ataques militares à população palestina e as guerras no Líbano e em Gaza.
Mas Israel não tem motivos reais para temer o Irã?
Essencialmente, Israel deseja preservar seu monopólio em armamento nuclear na região. Por isso, desencadeou uma campanha feroz contra o Irã e tem tentado persuadir os EUA a apoiar uma incursão militar àquele país. Se isso um dia acontecer a guerra no Iraque, em comparação, vai parecer um piquenique. Até agora, o Pentágono tem resistido às pressões dos lobbies israelenses. Vou ser um pouco duro: o crime que foi o genocídio de judeus durante a 2ª Guerra não dá a Israel um cheque em branco. E deveria ser motivo de orgulho para a América Latina que os únicos países que romperam relações com Israel após os ataques a Gaza tenham sido a Venezuela e a Bolívia, não o Egito e a Turquia. Então, Lula não deveria se intimidar pelas pressões do lobby de Israel – que não admite críticas a seu país. Por outro lado, ele certamente deveria aproveitar a visita para perguntar ao presidente iraniano se ele acredita ou não que milhões de judeus foram exterminados pelo Terceiro Reich.
Fonte:Estadão
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