terça-feira, 9 de dezembro de 2008

EUA - O crescente poder dos latinos.

Carmen já havia se recuperado do problema de saúde que arruinou, além do fígado, seus negócios na República Dominicana. Em outros tempos de migração, há 14 anos, cruzou para os Estados Unidos com passaporte carimbado. No começo topou qualquer bico: “queria que minhas filhas estudassem”, conta. Começou como faxineira e hoje trabalha como home care (profissional de saúde que vai até a casa do paciente) durante 70 horas por semana. “Como se habla esto en español?”, pergunta. Agüentou os seis primeiros anos sem ver a família e agora se delicia contando da caçula que chegou falando só hello e hoje faz mestrado nas terras do Tio Sam.
Era dia 10 de outubro de 2008 e o sol dourado do outono dava o clima perfeito para o happy end de sua vida de migrante: Carmen finalmente se tornava uma cidadã dos EUA em uma cerimônia com direito a discurso na TV do ainda presidente George W. Bush. Após cantar o hino de seu novo país com a mão no peito, a dominicana de nascimento e agora estadunidense saía do prédio com seu troféu impresso. “Mas o que muda?”, perguntei, entre os prédios de Nova Iorque. Saindo da passividade de tentar ser aceita na terra prometida, a latina respondeu sorridente: “Agora posso votar, votar pela paz!”, em uma cena que se caracterizava quase como um comercial pró-Obama.
Quando você ler esta matéria, os EUA já terão escolhido o seu presidente. E, certamente, os latinos influenciaram no pleito. “Sempre quis fazer campanha, mas como podia pedir para alguém fazer uma coisa que eu mesma não fazia? Agora posso! Vou votar no meu partido de sempre”, fala com os olhos emocionados e a voz firme, na entrada do prédio em que tiraria seu título eleitoral. Os pedidos de residentes latinos para virarem cidadãos estadunidenses quase duplicou no ano passado. As 730.642 solicitações em 2006 saltaram para 1,4 milhão (dados da United States Citzenship and Immigration Services) em 2007. No ano de 2000, 4,9 milhões de latinos participaram das eleições e, em 2004, eles já eram 7,6 milhões. Estimativas tidas como conservadoras apontam que 9,2 milhões de hispânicos participarão da escolha do novo presidente neste 4 de novembro.
Se olharmos a história recente dos EUA, fica fácil entender o aumento do desejo de votar por parte dos imigrantes e de suas famílias. Depois do atentado contra as Torres Gêmeas e dos discursos do terror, os imigrantes começaram a ser encarados como sinônimo de perigo. O medo se transformou em paranóia e resultou na proposta de lei aprovada no Congresso estadunidense em 2005, e que contou com o voto favorável de 92% dos republicanos e reprovação de 82% dos democratas.
O governo Bush, que havia contado com um recorde de votos latinos para os republicanos em seu segundo mandato – passando de 24% em 2000 para 27% em 2004 –, dava um tiro no pé. Com a defesa da criminalização dos “indocumentados” – movimento conservador que ecoa na União Européia e demais países receptores de migrantes –, a parcela da população que mais cresce no país decidiu se organizar. Os 46 milhões de latinos (15% da população dos EUA e que corresponderá a 30% da população em 2050 somando 102,6 milhões) organizaram passeatas em todo o país. Em Los Angeles, mais de meio milhão de latinos paralisou os serviços e fábricas no Primeiro de Maio que demonstrou a importância dos chicanos na economia estadunidense.
Homens e mulheres da Patagônia, Caribe hondurenho, Pacífico salvadorenho ou interior mexicano marchavam como iguais sob o slogan “Hoje marchamos, amanhã votamos”. “E o amanhã chegou!”, comemora William A. Ramos, diretor do National Association of Latino Elected and Appointed Officials (Naleo). “Somos uma minoria neste país, mas como aqui não se elege o presidente por voto e sim por colégio eleitoral, nosso peso é muito maior”, analisa. Quatro dos estados chave para as atuais eleições, onde a diferença entre republicanos e democratas é pequena, são fortes redutos latinos.
Nas eleições de 2004, a margem de diferença entre os candidatos foi de 4,7%, sendo que o percentual de eleitores latinos era de 7,9%. Em Nevada, a margem foi de 2,6% de diferença e os latinos depositaram nas urnas 8,3% dos votos; na Flórida, onde 11,2% dos eleitores são latinos, a diferença foi de apenas 5%; enquanto que no Novo México, estado cujo nome faz jus aos 33% dos eleitores de origem hispânica, a diferença entre os presidenciáveis foi de apenas 0,8%. “Nas primárias, já demonstramos nosso peso”, continua Ramos. A campanha de McCain, por exemplo, foi impulsionada pela vitória na Flórida. Ali, 34% dos votos da população branca foi para Romney e 33% para McCain; entre os latinos, o presidenciável republicano recebeu 54% dos votos contra 24% para Rudy Giuliani e 14% dado para Romney. Da mesma forma, a candidata democrata Hilary Clinton, apesar de não ter ganho, recebeu o apoio latino. “Torci por ela o tempo todo. Meu sonho é ter uma presidenta mulher”, confidencia Carmen. “Mas você pode ter uma vice-presidenta mulher…”, provoco. “Não, quero ser representada, mas ‘bem’ representada”, retruca.
Antes da decisão de quem seria o presidenciável democrata, se repetia que os latinos não apoiariam um negro no segmentado universo social americano. Mas com o carismático Barack Obama em campanha, 32% dos latinos afirmam que sua etnia poderá ajudá-lo; 53% pensa que isto não faz diferença e apenas 11% crêem que ser negro pode atrapalhá-lo nas urnas. Paradoxalmente, quando a mesma pergunta é feita em relação a McCain, apenas 12% respondem que sua cor de pele poderá ajudá-lo e 24% crêem que ser branco atrapalha.
Quando pergunto para Ramos por que, apesar das previsões, os latinos estão apoiando Obama, ele justifica. “Muitos jornalistas já me fizeram esta pergunta e a motivação desta questão é um insulto. Nós latinos já votamos várias vezes em negros, em brancos, em asiáticos; e muitas vezes não votamos em alguém pelo simples fato de ser latino. Isso não é um determinante para a decisão do voto.” Assim, de acordo com as pesquisas, a menos de um mês das eleições, 66% dos latinos afirmavam apoiar Obama contra 23% de seguidores de McCain.
A justa ofensa de Ramos sobre o suposto racismo embutido na pergunta faz sentido por um lado. Mas se pensarmos que os imigrantes continuam sendo imigrantes pelo resto de suas gerações nos Estados Unidos, a pergunta dos jornalistas não é tão disparatada. Os estudos do Pew Hispanic Center, por exemplo, consideram “latinos” todos os descendentes dos povos americanos que não sejam dos EUA ou Canadá de todos os períodos históricos anteriores. Assim, os californianos dos tempos da guerra entre México e Estados Unidos (em meados do século XIX), Carmen (que saiu na década de 90 da República Dominicana) e eu (brasileira trabalhando no país há três semanas) estamos todos no mesmo grupo.
Para um brasileiro, orgulhoso da miscigenação de seu povo – com todas as ressalvas a respeito do racismo dissimulado e não dissimulado no Brasil –, compreender esta segmentação é algo complicado, já que, exceto em zonas bem definidas de colônias imigrantes, a segunda geração normalmente já é brasileira. Mas, entrevistando Mark Lopez do Pew, após tantos dados escuto em inglês que ele se identifica como latino. Neto de mexicanos, mal hablando espanhol, ele não se sente um estadunidense. “Mas quando viajo para o exterior e encontro mexicanos não me sinto identificado também. Então, quando estou lá, me sinto e me vêem como americano; mas quando estou aqui me sinto chicano”.

É a economia...

Mas o que realmente definiu o apoio dos latinos a este ou aquele candidato? A resposta mais lógica seria: reformas migratórias. Contudo, contrariando o senso comum, pesquisas do Pew afirmam que as políticas ligadas diretamente à questão dos migrantes aparecem como quinta prioridade para os latinos. A mudança mais esperada se refere à economia. “Cada dia a situação está mais difícil”, reclama Carmen. “Nos últimos meses os noticiários de todo mundo começaram a falar da crise americana. Mas a comunidade latina já vinha reclamando disso há tempos”, explica Mark.
No ano passado, 250 mil latinos que trabalham na construção civil perderam seus trabalhos nos Estados Unidos. O desemprego, que no início do ano era a realidade de 4,7% de não-hispânicos da construção civil, atinge 6,5% dos latinos e 7,5% dos imigrantes (em geral, latinos da primeira geração, segundo dados do Pew). Além de menos empregos, o salário dos latinos é menor: se um estadunidense branco recebe em média US$ 669 por semana, um latino ganha apenas US$ 480. As mulheres do Sul, base da pirâmide social, recebem uma média de US$ 423 semanais.
Embora sejam todos do lado de cá do oceano, a segunda questão que mais preocupa os latinos é a guerra do Iraque. “Quando falo que voto pela paz a mensagem fica clara, né?”, explica Carmen. Mas não é por verem seus países com históricos de guerra civil refletidos na invadida nação do Oriente Médio nem por vocação pacifista que os agora cidadãos do Norte querem o “governo da paz”. Dos 146 mil soldados estadunidenses no Iraque, 11% deles são latinos. Mandados normalmente para a linha de frente, o primeiro soldado a não voltar para casa foi José Antonio Gutiérrez, um guatemalteco que sonhava em se naturalizar. Os filhos dos países subdesenvolvidos normalmente não decidem empunhar fuzis por utopia ou por amor à bandeira estrelada. Sonham com o retorno advindo de sua participação no conflito, com as promessas de universidade paga, seguro saúde e cidadania estadunidense. Assim, o voto pelo fim da atrocidade é a defesa dos mais pobres e jovens do país, já que metade dos latinos consultados pelas pesquisas da Pew afirmaram ter um familiar ou amigo que combate ou já combateu do outro lado do planeta.
Os tópicos que seguem, guiando o voto dos latinos, são saúde e educação e só em quinto lugar vêm as questões imigratórias de fato. “Frente à crise que vivemos, discutir as questões imigratórias virou uma espécie de luxo”, explica Mark. A questão, pouco presente nos debates e nas falas dos candidatos, está explicada na plataforma de governo dos oponentes. Embora as duas ressaltem a importância da segurança nas fronteiras, a pasta em que cada uma está inserida nos planos de governo dos candidatos já deixa clara as diferentes intenções dos projetos. Enquanto a proposta de McCain está dentro da seção intitulada “Imigração, segurança nacional e regulamentação das leis”, a de Obama está na pasta “Renovação da comunidade americana”.
Antes de falar do perigo dos indocumentados, Obama fala dos 12 milhões de estrangeiros que vivem nas sombras e que buscam, por meio de sua força de trabalho, melhores condições de vida.
Apesar das belas palavras, nem estudiosos nem latinos guardam grandes esperanças na mudança estrutural da problemática da imigração nos Estados Unidos. Mas as mudanças iniciadas com as manifestações de 2006, seguidas pelo aumento de pedidos de cidadania no ano seguinte e que prometem culminar com um crescimento massivo dos eleitores hispânicos em 2008 apontam para um novo momento para os latinos no país do Norte. Enquanto a crise afeta o american dream e transfere a terra prometida para a Europa, a maior minoria americana se reconhece como sujeito ativo, capaz de opinar no país de que fazem parte. E mesmo que o próximo presidente não faça as alterações necessárias na política imigratória, outras Carmens se reconhecerão como cidadãs estadunidenses e refletirão sobre suas possibilidades reais de participação no país que ajudam a construir.

Os naturalizados votam menos.

Mesmo com os esforços de entidades como o Naleo, o crescimento do eleitorado latino ainda não acompanha o correspondente aumento da população imigrante. Ao cruzarem as fronteiras com passaporte ou pelo rio Bravo, os migrantes que se instalam no Norte levam na bagagem a alta taxa de natalidade de seus países. Mas a primeira geração normalmente não se anima a participar da decisão da escolha do presidente ou do legislativo e acaba ou não se naturalizando ou simplesmente não tirando seu título de eleitor.
Enquanto 55% da população hispânica são de migrantes, nas últimas eleições, 74% deles eram nascidos no país. Como na terra do Tio Sam o voto não é obrigatório, ter o título e comparecer às urnas são coisas bem distintas e, nesse aspecto, há ainda uma baixa presença latina em geral: apenas 5,8% dos votos das eleições de 2006 eram de hispânicos, contra 81% de eleitores brancos, 10,3% negros e 2,8% de outros. Ou seja, 27% da população negra, 39% da branca e míseros 13% da latina depositaram seus votos nas urnas de 2006.
“A população latina é muito jovem”, argumenta Mark Lopez, do Pew Hispanic Center. Enquanto 22% dos brancos têm menos de 18 anos, 34% dos hispânicos ainda é menor de idade. Somados com os 26% que não são cidadãos, 61% dos latinos não podem pensar em votar. Assim, a população que dobrou entre 2002 e 2006 só assistiu ao crescimento de 20% dos eleitores no mesmo período. Mas, ainda assim, os latinos podem ser decisivos. E a tendência é que sejam ainda mais no futuro.

Eliza Capai
Fonte:Revista Fórum.

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