terça-feira, 16 de dezembro de 2008

EUA - A Secretária de Estado e a América Latina.

Argemiro Ferreira.


Ela conhece melhor a América Latina do que Barack Obama (que diabo, ele nunca foi primeira dama!). Esteve na região, inclusive no Brasil, muitas vezes. E o que nos promete a secretária de Estado indicada, Hillary Clinton? Há pouco mais de um ano, ainda líder absoluta (apoiada pela cúpula do Partido Democrata, superdelegados e milhões de dólares em contribuições de campanha) entre os candidatos potenciais democratas, ela só dedicou um único parágrafo à AL em sua proposta de política externa.

O texto ocupou 18 páginas do número de novembro-dezembro da principal revista de política externa do país, Foreign Affairs, sob o título geral “Security and Opportunity for the Twenty-first Century” (leia a íntegra AQUI). Pareceu desapontador. Na mesma época o principal analista, Tom Barry, do Programa de Política das Américas no Centro de Política Internacional (CIP), sediado em Washington e presidido pelo ex-embaixador Robert White, divulgou crítica dura e bem fundamentada na internet à proposta de Hillary.

De acordo com aquela análise de Barry, a ex-primeira dama demonstrava, em primeiro lugar, falta de respeito pela América Latina. Ele achou insólito Hillary ter, ao mesmo tempo, acertado no diagnóstico - ao lamentar que o governo Bush “tenha malbaratado o respeito, a confiança e o crédito que teve entre nossos mais próximos aliados e amigos”. Pois nos últimos anos, disse Barry, as autoridades dos EUA “concentraram-se mais no medo de novos desdobramentos políticos na região do que nos meios de melhorar as oportunidades e a segurança humana”.
Um retorno ao intervencionismo

Alegava o artigo de Hillary que no governo Bush “vimos o retrocesso de ganhos democráticos e da abertura econômica em partes da América Latina”. Ao invés de aplaudir a tendência de número maior de governos eleitos, superando obstáculos estruturais que têm marginalizado populações pobres e indígenas, observou Barry, “ela evoca o quadro de uma região ameaçada por forças retrógradas.

Assim, “ao culpar o governo Bush por sua negligência, Hillary dá a entender que uma política americana mais engajada teria obstruído a ascensão de governos democráticos de centro-esquerda, como os da Venezuela, da Bolívia e do Equador”. Ou seja, ela reclama a volta a um “engajamento vigoroso”, a pretexto de ser a região crítica demais, na qual o melhor é os EUA se intrometerem.

De que tipo de “engajamento vigoroso” Hillary está falando? - perguntou Barry. “Formas passadas de intromissão”, conforme lembrou ele, “incluiram intervenção em eleições nacionais, apoio financeiro e militar a movimentos ilegais de oposição, campanhas de propaganda para disseminar mensagens favoráveis a forças pro-EUA e difamação de outras”.

Qualquer “retorno” a política desse tipo, como denunciou com irritação o analista do CIP, na certa vai ser encarada desfavoravelmente na América Latina. “Os poucos exemplos positivos recentes de engajamentos americanos a pretexto de proteger interesses ‘críticos’ dos EUA, geopolíticos e econômicos, revelaram-se com frequência sinônimos de ações intervencionistas” (leia a análise na íntegra AQUI).
“Bush I, Clinton I e Bush II”

Hillary incluiu entre suas prioridades o apoio às “maiores democracias da região, Brasil e México”; o aprofundamento “da cooperação econômica e estratégica com Argentina e Chile”; e o combate “às ameaças interligadas do tráfico de drogas, crime e insurgência”, na Colômbia, na América Central e no Caribe”. O que equivale à mesma retórica abraçada pelo governo Bush.

Barry percebe, como qualquer pessoa com um mínimo de bom senso, que após estabelecer essa agenda para o envolvimento dos EUA nas questões de segurança, Hillary conclui com esta frase: “Precisamos trabalhar com nossos aliados para fornecer programas de desenvolvimento sustentável que promovam oportunidade econômica e reduzam a desigualdade entre os cidadãos da América Latina”.

O analista resume, enfim, que “a política latino-americana de Hillary Clinton provavelmente será muito semelhante às dos governos de Bush I, Clinton I e Bush II, que vieram antes” (ele partia do pressuposto, obviamente, de que ela esperava um Clinton II, o dela). A única diferença notável, para ele, seria que o governo dela poderia “tomar medidas mais fortes para conter governos que ousem determinar seu rumo próprio no campo comercial, de desenvolvimento e de política externa”.

Ela sequer mencionara a necessidade de reformular a desastrosa política em relação a Cuba. Mas em outra oportunidade já tinha prometido (de olho no lobby cubano de Miami, claro) manter o embargo “até haver uma transição democrática”. Também pretendia manter a fracassada estratégia das guerras à droga, erradicação de plantações de coca e combate à contrainsurgência, a pretexto de reduzir o fluxo de narcóticos para o bilionário mercado americano.
Respeito é bom e a gente gosta

Embora o Establishment político de Washington fique limitado a poucas opções sobre América Latina, os países da região, em especial na América do Sul, vivem momento promissor, com novas políticas. Mesmo sem endossá-las Hillary poderia no mínimo, inspirando-se no exemplo de Franklin Roosevelt, declarar seu respeito pelo direito dos latino-americanos de decidir o próprio rumo.

Após três décadas de intervencionismo imperial e ocupações, lembrou Barry, Roosevelt optou pela política da Boa Vizinhança, com “respeito mútuo” e “auto-determinação”. Nem sempre seguiu tais princípios, mas pôde construir o respeito pelos EUA e uma cultura de cooperação nas Américas. Hillary fala em recuperar o respeito, mas através das “dimensões do poderio americano”.

Ela deixava de reconhecer que as relações EUA-América Latina sofreram muito mais pela arrogância americana e seus “engajamentos” mal avaliados e mal conduzidos do que pela negligência ou inação face a ameaças imaginárias aos interesses americanos. O respeito mútuo pode ser restabelecido, mas os EUA terão de mostrar mais respeito pelos vizinhos do sul - e dizer a eles que respeitarão o que eles decidirem.

Felizmente a própria Hillary reconheceu, já nas primeiras manifestações como secretária indicada, que conduziria uma política externa conforme os rumos determinados pelo presidente. E o presidente-eleito Barack Obama escolheu Franklin Roosevelt, junto com Abraham Lincoln, como uma espécie de modelo, tanto para a política interna, centrada num esforço semelhante ao do New Deal, como para a externa, na qual ele apostou na Boa Vizinhança e no fim do intervencionismo. Por enquanto pode ser um alívio para o continente - mas ainda é cedo para dizer que seja uma garantia.
Fonte: Blog do Argemiro Ferreira.

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