quinta-feira, 19 de março de 2009

NOVOS TEMPOS EM CUBA

Ignacio Ramonet

Quando se cumprem 50 anos da vitória da revolução em Cuba, que balanço se pode fazer de um acontecimento que influenciou, durante décadas, toda a América Latina? E quais são os principais problemas que esse país hoje enfrenta?

Os aspectos positivos do balanço são conhecidos, às vezes espectaculares e relativamente fáceis de identificar: melhoras significativas na luta contra o racismo e o machismo; imensos progressos em matéria de educação e cultura; avanços descomunais no que concerne à saúde, à redução da mortalidade infantil e ao progresso sanitário em todos os domínios (relativamente à sua população, Cuba forma mais médicos que qualquer outro país do mundo); triunfos expressivos em todo tipo de desportos e em todo tipo de competições; afirmação da identidade cultural e nacional; solidariedade internacionalista contra o colonialismo, o neocolonialismo, o imperialismo e o racismo de Estado (sem a ajuda de Cuba, Angola, por exemplo, não seria independente, e o apartheid sul-africano não teria sido derrubado); defesa da soberania nacional frente a meio século de hostilidade e assédio estadunidenses.

Convém recordar sempre, na hora de julgar a revolução cubana, que este grande processo de transformação social se desenvolveu numa atmosfera de encurralamento constante por parte da principal potência económico-militar. A qual utilizou todo o tipo de métodos – abertos e encobertos – para tentar derrubar o processo: atentados, terrorismo, subversão, campanhas de propaganda, inoculação solapada de epidemias, leis anticubanas, etc. Nenhum país do mundo resistiu a 50 anos de agressão norte-americana, excepto Cuba.

Mas essa mesma resistência heróica teve um custo não apenas económico, não apenas em termos de sofrimento para os cidadãos, mas político. E este não foi pequeno. Porque as autoridades de La Havana fizeram seu o lema de Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas: «Numa fortaleza assediada, toda a dissidência é traição». O que contribuiu para limitar muito o debate interno, sob os pretextos de “não dar armas ao adversário” e de “não ser aliado objectivo do inimigo”. Isso permitiu também, às vezes, transformar discrepâncias naturais em heresias sancionadas.

Outro lema dominante: «Dentro da Revolução tudo, fora da Revolução nada». Também se tornou, em alguns momentos, num dogma cómodo para excluir e normalizar, na medida em que ninguém tinha definido qual era exactamente o perímetro preciso da Revolução.

Tudo isso, somado às dificuldades económicas, agravadas depois de 1991 pelo desaparecimento da ajuda fornecida pela União Soviética, multiplicou o descontentamento social e o número de dissidentes políticos. Acelerou-se o fenómeno da emigração clandestina, sobretudo para os Estados Unidos (uns dois milhões de cubanos, 18% da população da ilha, residem nesse país), e acentuou-se a oposição política e sua consequente contenção (há uns 200 presos políticos por este motivo, segundo a Amnistia Internacional).

Nesse contexto, o grave acidente de saúde sofrido por Fidel Castro em Julho de 2006 e a sua saída lógica da vida pública conduziram à eleição de Raúl Castro para a presidência, em Fevereiro de 2008.

Na terça-feira, 19 de Fevereiro de 2008, numa «Mensagem do Comandante-em-Chefe», publicada pelo jornal Granma, em Havana, Fidel Castro anunciou que punha fim à sua carreira política, renunciando a ser candidato à sua própria sucessão à Presidência de Cuba. Até ao próximo congresso do partido, previsto para finais de 2009, continua a ser primeiro-secretário do comité central do Partido Comunista de Cuba (PCC), o que está longe de ser uma função menor num sistema político de partido único. Presumivelmente, durante esse Congresso, irá anunciar a sua demissão de primeiro-secretário (não houve Congresso do PCC desde 1997).

Anteriormente, este cargo nunca tinha estado dissociado do de chefe do executivo em nenhum país governado por um partido comunista. É portanto certo que Fidel Castro não vai manter o cargo de primeiro-secretário, uma vez que já renunciou também às suas funções de presidente do conselho de ministros (primeiro-ministro) e Comandante-em-Chefe dos exércitos. A sua influência sobre a opinião pública cubana, contudo, continua. Pois, no seu novo quartel-general secreto, as suas armas são agora as palavras.

O facto de ele ter deixado o poder durante a sua vida permite uma mudança pacífica em Cuba. Afinal de contas, Raúl Castro detém as rédeas do governo desde 31 de Julho de 2006; e a vida seguiu o seu curso sem sobressaltos.

Num primeiro momento, Raúl e a sua equipa dedicaram-se a três temas prioritários: alimentação, transportes públicos e habitação. Três domínios nos quais as carências, as penúrias e as disfunções favorecem um mal-estar permanente da população. Nesses três sectores, constataram-se alguns avanços.

Por outro lado, as novas autoridades estimularam um grande debate geral no qual participaram mais de um milhão de cubanos para tentar melhorar o funcionamento da economia e lutar contra a burocracia e a corrupção. Foram emitidas inúmeras críticas contra alguns responsáveis e contra algumas práticas do Estado socialista. Por exemplo, Aurelio Alonso, subdirector da muito oficial revista Casa de las Américas, não teve dúvida em reprovar «uma economia demasiado estatizada»; em reclamar «uma economia que deixe espaços para outras formas de propriedade»; em denunciar «um sistema excessivamente estatizado, demasiado burocratizado, com um nível de participação popular demasiado limitado na tomada de decisões de toda ordem»; e até em pôr em causa «o papel do Partido, que deveria ser modificado, porque o Partido não pode dirigir o Estado, o povo é quem deve dirigir o Estado» [1].

Alfredo Guevara, companheiro de universidade de Fidel Castro, é um dos históricos da revolução, mas não é cego diante das sombras. Em recentes debates intelectuais criticou a deterioração do ensino e da educação e defendeu a necessidade de «reinventar» o socialismo cubano e introduzir mudanças no modelo, vitais para que a revolução sobreviva [2].

O cantor Pablo Milanés, um dos artistas mais emblemáticos da revolução cubana, foi ainda mais radical nas suas críticas: «Eu já não confio em nenhum dirigente cubano que tenha mais de 75 anos, porque todos, na minha opinião, viveram os seus momentos de glória, que foram muitos, mas agora estão prontos para ser aposentados. É preciso passar o testemunho às novas gerações para que façam outro socialismo, porque este socialismo já se estancou. Já deu tudo o que podia dar (…) Temos que fazer reformas em muitíssimas frentes da Revolução, porque os meus dirigentes já não são capazes. As suas ideias revolucionárias de outrora tornaram-se reaccionárias» [3].

Desse debate franco e aberto, saiu uma agenda de reformas desejadas por uma maioria de cubanos; e a nova equipa começou a pô-las em prática. Os transportes públicos melhoraram graças à importação de autocarros procedentes da China. Na agricultura, Raúl Castro está consciente de que a independência alimentar é uma conquista fundamental sem a qual não pode haver soberania política possível. Cuba importa cerca de 80% do que consome para a sua alimentação. O país gastou, em 2007, cerca de 1,6 mil milhões de euros em géneros alimentares importados, um montante que, em 2008, chegou a 1,9 mil milhões de euros. Um gasto tanto mais injustificado quanto mais de metade das terras férteis em Cuba estão sem cultivar…

Raúl Castro lançou a palavra de ordem: «A terra àqueles que a valorizam e produzem alimentos para todos». Essa é a prioridade. Foram distribuídas terras a camponeses com a única obrigação de produzir e de contribuir para a soberania alimentar da ilha.

Outras medidas – reclamadas há muito por uma população exasperada – foram igualmente adoptadas. Todo cubano que possua pesos conversíveis (CUC) pode finalmente alojar-se em hotéis que estavam até agora reservados aos estrangeiros. Leitores de DVD, computadores, fornos de microondas, motos e telemóveis estão a ser vendidos livremente. Os cubanos poderão também comprar e vender os seus veículos ou as suas casas. Do mesmo modo, o visto indispensável para poder viajar para o estrangeiro poderá ser suprimido. Numerosos absurdos administrativos, causados por uma excessiva burocratização, começam a desaparecer. A administração do Estado foi reestruturada, aliviada. Haverá menos ministérios e menos obstáculos burocráticos para tornar a vida dos cubanos mais normal e menos penosa. Mas os cidadãos são encorajados a trabalhar mais, enquanto alguns serviços públicos, gratuitos até agora, poderão deixar de sê-lo.

Numa entrevista recente ao diário Juventud Rebelde, Raúl Castro anunciou que que a gratuitidade será suprimida em vários sectores, e revelou que uma das suas tarefas prioritárias era simplesmente pôr os cubanos a trabalhar: «Temos de eliminar a gratuitidade de numerosas prestações. Se queremos que os salários tenham o justo papel que devem desempenhar, é preciso, paulatina ou simultaneamente, ir eliminando a gratuidade não justificada de serviços, bem a gratuidade de certos subsídios excessivos. (…) Temos que voltar a dar ao trabalho o seu verdadeiro valor; não deixo de repetir, ao ponto de ficar afónico, que devemos insistir no conceito de trabalho. Se não tomarmos as medidas para que as pessoas sintam a necessidade vital de trabalhar para satisfazer as suas necessidades, não conseguiremos nunca sair do buraco. (…) É preciso trabalhar, todos devem estar cientes da necessidade vital de trabalhar, produzir, poupar. Essa é a situação e é preciso compreendê-la. São verdades duras de dizer, mas não podemos adocicá-las; o nosso dever é dizê-las» [4].

O socialismo cubano está a evoluir. Porque uma revolução não é um balanço; uma revolução é e deve ser sempre um projecto.

Dirigir-se-á para modelos do tipo chinês ou vietnamita? Ambos os países são exemplos que os líderes cubanos estudaram de perto e que figuram entre as suas fontes de inspiração. Mas o seu modelo – que favoreceu o aumento das desigualdades – é brutalmente denunciado pela actual crise económica. Por isso, Cuba seguirá o seu próprio caminho. Haverá mudanças na economia, mas é pouco provável que assistamos a uma “perestroika” cubana, à adopção de um “comunismo neoliberal” ou a uma “abertura política” com eleições multipartidárias. As autoridades permanecem convencidas de que esse tipo de “transição” reabriria a via para uma forma mais ou menos declarada de anexação por parte dos Estados Unidos. Neste momento de graves dificuldades devidas aos recentes furacões e à crise financeira internacional, a sua preocupação central é de manter a unidade da sociedade.

O desafio principal continua a ser a relação com Washington. Raúl Castro anunciou publicamente que está disposto a sentar-se à mesa de negociações para discutir com as autoridades estadunidenses o conjunto dos problemas entre os dois países [5].

E é provavelmente dos Estados Unidos que poderia vir o sinal político mais importante. O novo presidente, Barack Obama, já tinha pugnado, em 2003, como candidato ao Senado, pelo levantamento do embargo e pedido o afrouxamento restrições às viagens e remessas para Cuba. Durante a sua campanha eleitoral, ele anunciou a sua intenção de conversar com todos os países considerados «inimigos» ou «adversários» da América. Entre outros, com Cuba. Em 22 de Fevereiro de 2008, ele já tinha reclamado uma necessária «transição» nos Estados Unidos, pelo menos sobre esta questão, afirmando que, se há sinais de uma mudança na ilha, «os Estados Unidos devem estar preparados para avançar rumo à normalização das relações e atenuar o embargo». Seria uma revolução copérnica na política externa dos Estados Unidos desde 1961. Ousará a nova Secretária de Estado, Hillary Clinton, pô-la em prática?

Mesmo que uma mudança radical não seja provável em Havana, a eleição de Obama muda a atmosfera das relações cubano-americanas. É certo que Fidel Castro sugeriu a moderação das expectativas: «Seria muito ingénuo acreditar que as boas intenções de uma pessoa inteligente poderiam mudar o que séculos de interesses e de egoísmo criaram. A história humana mostra que não é assim». Mas as coisas podem mudar se Barack Obama decidir pôr fim ao embargo comercial unilateral imposto a Cuba desde há quase cinquenta anos. O que de resto corresponde à vontade dos cubanos instalados nos Estados Unidos, uma vez que, de acordo com um estudo da Universidade Internacional da Flórida, 65% dos cubano-americanos são a favor de um diálogo com Havana. Uma nova atmosfera que de resto permitiu a Barack Obama ganhar na Flórida, a 4 de Novembro de 2008.

A saída de George W. Bush levará Washington – escaldada pelas desastrosas lições do Iraque e do Médio Oriente – a uma revisão da sua política externa e, sem dúvida, a reinvestir na América Latina.

O EUA vão então descobrir uma situação diferente da que eles tinham moldada nos anos 1960-1990. Cuba já não está só. No domínio da política externa, as autoridades de Havana estão doravante convencidas de que devem manter boas relações com todas as nações, independentemente da natureza dos seus regimes e das suas orientações políticas. Os cubanos reforçaram particularmente os seus laços, temos visto, com o conjunto de todos os países latino-americanos. Pela primeira vez, Havana tem muitos amigos no poder, principalmente na Venezuela, mas também no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Nicarágua, no Panamá, no Haiti, no Equador, na Bolívia e no Paraguai. Cuba intensificou em particular o seu comércio com os países da organização económica e política ALBA (Alternativa Bolivariana para os povos da nossa América), assinou acordos de parceria económica com os países do Mercosul e, na recente Cimeira de Sauípe (Brasil), a 17 de Dezembro de 2008, foi admitido no seio da nova Organização dos Estados da América do Sul e do Caribe.

Parece, portanto, do interesse de Washington redefinir as suas relações com o continente latino-americano. Relações que já não poderão ser de natureza neocolonial. E que serão sem dúvida definidas pelo presidente Barack Obama em 17 de Abril próximo, em Porto Espanha (Trinidad e Tobago), durante a Cimeira das Américas.
Fonte: Site Informação Alternativa.

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