domingo, 1 de março de 2009

UMA CIDADE DEGENERADA.

O leitor Guilherme Costa me mandou este texto que serve para nossa reflexão.

Uma cidade degenerada

por Ana Paula Sousa

O arquiteto Paulo Mendes da Rocha ergue e destrói a paisagem urbana

"Os ricos abandonaram a cidade, com medo da liberdade"Fuga
Da janela do escritório de Paulo Mendes da Rocha vê-se o Edifício Copan, desenhado por Oscar Niemeyer. “É linda essa ponta do prédio, não?” É assim, meio ao acaso, que os mais destacados arquitetos brasileiros se encontram em São Paulo. Mendes da Rocha mantém, no centro da cidade, o estúdio amplo, com lâmpadas industriais, onde foram traçados o Museu de Arte Contemporânea da USP, o ginásio do Clube Paulistano (SP), o Estádio Serra Dourada (GO), a cobertura da Praça do Patriarca (SP) e mais incontáveis obras.
Ganhador do Prêmio Pritzker 2006, espécie de Nobel da arquitetura, Paulo Mendes da Rocha, de 79 anos, vive tempos de celebridade. Para tocar os projetos em andamento (um prédio de habitação “social” em Madri, o campus da Universidade de Vigo, também na Espanha, e a recomposição da antiga Santa Casa, no Rio, entre eles), tem sido obrigado a dizer não para convites vários, de entrevistas a júris internacionais. Mas, na segunda-feira 13, passará a noite a autografar os livros Projetos de 1999-2006 e Maquetes de Papel, editados pela CosacNaify. “Acho tão gentil terem feito os livros”, diz, como se pensasse em voz alta, enquanto gira um compasso no papel.
O arquiteto tem o hábito, entre um cigarro e outro, de desenhar círculos enquanto conversa. É também de grandes voltas que se constitui sua fala. Pensador das cidades, inventor dos espaços, ele anda serenamente aflito. Vê um desastre urbano. Mas não desacreditou das saídas.

CartaCapital: O senhor cansou de dar entrevistas?
Paulo Mendes da Rocha: Você fica num dilema. De um lado, acha que tem de falar porque é um prestígio para a arquitetura e uma forma de levá-la ao conhecimento do poder público. Por outro lado, há o pudor de ser abordado. Mas acho, no fundo, que eu devia me obrigar a dizer certas coisas, porque o que nos persegue, dia após dia, é a aflição com a cidade. Essa é uma questão técnica ligada à arquitetura e ao urbanismo. A rigor, devíamos ser mais ouvidos no plano político, nas questões de desenvolvimento das cidades. É uma pena que haja uma tendência de a arquitetura se tornar banal. Isso é decorrência da vertigem mercantilista do nosso tempo. Precisamos cuidar das cidades. Falamos em água, ar, mas o que pode acabar antes somos nós mesmos.

CC: O Pritzker teve algum efeito político ou o senhor se sente pregando no deserto?
PMR: Politicamente, o prêmio significa que o mundo se preocupa com as coisas das quais eu trato. A questão fundamental das cidades é política. São políticas públicas que direcionam as cidades para um destino ou outro. Quando olhamos da janela uma cidade como São Paulo, vemos uma coisa imensa construída. Acharmos que vemos um desastre é uma desmoralização da imagem que temos de nós mesmos. Trânsito, poluição, ostentação de riqueza e falta de esgoto, má distribuição da população pelas construções nos fazem ver que a arquitetura, sem querer, produziu a desmoralização da técnica. Somos um país onde todos são engenheiros, juristas, economistas e médicos. E o resultado é o desastre. A reflexão, portanto, deveria se dar no campo político. Também é perigoso adotar uma visão esnobe, evitando falar de trânsito por ser um lugar-comum. É importante repetir as reflexões sobre o desconforto nas cidades com outra visão, não superficial.

CC: Quais são os lugares-comuns sobre o trânsito, por exemplo?
PMR: É como se tivéssemos inventado uma máquina de produzir veneno e, todo dia, nos empenhássemos em aprimorá-la. A questão dos transportes é fundamental. Não se trata, puramente, de introduzir conforto. Trata-se de ver que, queimar petróleo para transportar uma pessoa de 60 quilos numa lataria de 700 quilos, que não anda, é um erro grave. É repugnante ver a cidade congestionada de carros que não andam. A questão não é fazê-los andar, é ver que isso não tem saída, o transporte individual é uma bobagem.

CC: Então é uma bobagem construir túneis e viadutos?
PMR: Vai se aprimorando a máquina do veneno. E já não importa que o carro não ande, porque você vê todo mundo lá dentro falando no celular, usando o laptop...

CC: Quando vê, já que os vidros estão pretos.
PMR: Sim, quando vê, porque as pessoas estão escondidas. É um pouco a rota do absurdo. Acho até que isso não é assunto pra mim, mas para Borges, Cortázar ou Rabelais. Quando ouço, no rádio, que são 157,8 quilômetros de congestionamento, penso na linguagem de descalabros do Rabelais. O absurdo pode ir a dimensões do desastre. As pessoas fingem que não são antropófagas, mas são. Está todo mundo caçando feras. Desenvolveu-se uma mentalidade extremamente agressiva nas pessoas, que, entretanto, acham que se comportam bem. Ricos ou pobres, parece que está um querendo matar o outro.

CC: O senhor sempre diz que não existe espaço privado, que todo espaço é público. Esse espírito agressivo está ligado à inversão dessa lógica, à tentativa de transformar a cidade em guetos privados?
PMR: Você já viu isso? Será que me repito muito? Por isso fico preocupado em dar entrevistas. Mas, sim, não há espaço privado. A arquitetura constrói espaços para amparar a imprevisibilidade da vida, não para determinar comportamentos. A cidade é o lugar da liberdade. Você não pode constranger as pessoas no espaço público com dificuldades. Caso contrário, elas desenvolvem a consciência de espaço no espaço imaginado dentro de si, num individualismo atroz.

CC: O que são os prédios que oferecem tudo, de piscina de 25 metros a churrasqueira, que vendem uma idéia de exclusividade?
PMR: É o desvio do conceito de urbanismo. Mas, como você vê, a própria piscina será pública, não de um morador só. Vou falar uma coisa indevida. Imagine uma mãe: quando o filho dela vai para a escola, ele é público. A saúde é uma dimensão pública. O conhecimento é uma dimensão essencial da nossa privacidade enquanto público. Mas estou falando de coisas para filósofo. Deixe exemplificar isso na arquitetura. A casa, enquanto coisa, é da cidade, não é de fulano ou beltrano. Ela se transforma conforme quem compra, vende, aluga. Imagine a crônica do Copan. Quanta gente morou numa casa projetada pelo Niemeyer? O resultado do nosso trabalho é eminentemente público. A água que sai da torneira é pública e está sob responsabilidade de gente que não conhecemos. O pilar do prédio é público: se o morador tira a viga, ele cai. Apesar disso, estamos alienando a consciência sobre nosso estado no universo. Por isso, insisto, as decisões sobre as construções, e nesse sentido a arquitetura, são ações políticas.

CC: Os arquitetos também perderam a dimensão do público?
PMR: Tenho a obrigação de dizer que não. Temos de ter confiança no futuro.

CC: Seu colega Jorge Wilheim perguntou, num texto, quantos arquitetos diriam não para um projeto de edifício neoclássico, tão em voga em São Paulo. Quantos diriam?
PMR: Todos diriam não. Mas, conformistas, vão e fazem. Pense no nazismo e no fascismo. Não aderiram todos? O mercado é um horizonte falso e, se ficar no comando do processo, só produzirá asneiras como a dos neoclássicos. Isso é um engodo de quem precisa continuar com o negócio.

CC: A classe média passou a gostar disso de fato ou, simplesmente, não tem mais gosto?
PMR: A classe média alta é a classe mais baixa da população. Ela está tão desesperada que corre atrás de qualquer coisa que se diga. Como ela é totalmente conformista desfrutante, a propaganda diz o que ela deve dizer e ela diz. O método de produzir a decadência para depois corrigir, a idéia do “quanto pior melhor”, é elaborado pela classe dominante. Aí você chega a um limite em que só a guilhotina resolve. Ninguém agüenta meia de seda, renda de florzinha, cabeleira postiça... Eles mesmos se matam. Mas vamos corrigir as palavras. A classe dominante, no Brasil, é a mais pobre. A exigência maior de uma cidade como São Paulo é habitação, transporte e saúde.

CC: Qual a sua opinião sobre o prédio da Daslu?
PMR: Não acho nada, não tenho coragem de achar. É como se você me mandasse provar uma beberragem horrível e me perguntasse o que acho. É como se eu fosse um expert em uísque e você me desse uma garrafa com uma bebida azul e me dissesse que é o novo uísque feito nas Ilhas Fuji. Se me perguntasse se eu queria provar, eu diria: “Deus me livre!”

CC: Esse prédio simboliza o quê?
PMR: Não sei o que dizer, mas tenho a impressão de que é uma espécie de masoquismo. É fazer o mais horrível possível, como a dizer: “Já que estão dizendo que sou horrível, vocês vão ver aonde vou chegar”. É uma espécie de modo de escarnecer e provar que tem razão. Se você quiser falar do ponto de vista da ternura humana, você tem de se preocupar com essa gente. Eles estão se ferrando. Moram longe, precisam de seis vagas de garagem. Os panfletos entregues na rua e os anúncios de imóveis nos jornais de domingo são um descalabro de floresta de eucalipto abatida para fazer papel para imprimir asneira.

CC: E o negócio agora é terraço gourmet, com churrasqueira.
PMR: Se você faz um edifício de 25 andares com uma churrasqueira em cada terraço, a imagem que me ocorre é a do bife que se vende em São Paulo, num cilindro, fumegante e muito cheiroso. O prédio inteiro vira isso, como é o nome? Churrasco grego? É de um ridículo supremo.

CC: A arquitetura se encolheu diante das empreiteiras?
PMR: A questão é que não se inibe. Enquanto há gente construindo churrasqueira na varanda, discutindo esquerda e direita de modo idiota, há também prédios interessantíssimos. O conhecimento humano não precisa ser visto como algo condenado ao desastre, ele pode ser virtuoso. A arquitetura não será eterna, mas também não precisa ser tão efêmera. A transformação da cidade, há pouco tempo horizontal, numa cidade de edifícios, não precisaria ser trágica. A verticalização, a despeito da imagem da floresta de cimento, é uma virtude da técnica, uma racionalização do desejo humano de morar na cidade. Seria uma cidade absurdamente extensiva se 20 milhões morassem em casinhas. A cidade anterior era assim porque não havia 20 milhões.

CC: Como acomodar os que virão?
PMR: O hábitat humano contemporâneo é a cidade, temos a obrigação de enfrentar isso com energia. A fundamental questão contemporânea é o deslocamento. E não é algo particular do Brasil. O mundo colonizador está pagando as dívidas do desastre que produziu nos países colonizados. As capitais têm problemas com os habitantes de antigas colônias. As populações querem se dirigir aos centros de maior florescimento dos recursos que, na maioria dos casos, foram eles mesmos que produziram. Os prédios que vemos desta janela foram construídos pelos baianos, por operários descalços, no tempo em que se carregava concreto com carrinho de mão.

CC: E quem pagou para erguer estes prédios no centro fugiu daqui...
PMR: É a contradição de que te falei. A classe chamada alta produz o próprio desastre. Ela abandonou a cidade e a população pobre ocupou-a. Você abandona uma cidade e funda outra, como Alphaville, porque teme a liberdade. A avenida São Luís, feita de habitações de alto padrão, não durou 15 anos. Mas talvez se alimente a desvalorização para, um dia, criar-se um plano de revitalização, favorecendo, de novo, a especulação. Essa não é uma boa política. Há grandes vazios na cidade. Como revitalizar o centro histórico? Transformando botequim em centro cultural? O botequim era um centro cultural.

CC: O senhor refez o prédio da Pinacoteca e, ao mesmo tempo, tem uma visão pessimista em relação à revitalização do centro a partir da cultura. Por quê?
PMR: Eu não quero dizer que o que se tem feito seja ruim. Mas recuso a idéia do panegírico da cultura sem reconhecer que a cidade, na totalidade, é a suprema manifestação da cultura. A cidade é o lugar da reprodução do conhecimento na fala diária dos homens que precisam conviver. Se você faz o panegírico do edifício especificamente cultural, primeiro você nega que, antes, ali havia cultura. A antiga sede do Banco do Brasil, em São Paulo, é um edifício notável, feito para abrigar um banco. Mas fica lá dentro um auditório péssimo. Eu fico malvisto, porque vão dizer: ‘Como? O centro cultural é uma maravilha’. Mas o centro histórico tem uma beleza que vive sendo negada.

CC: Permanecer neste prédio é uma reação?
PMR: Não, estou aqui espontaneamente. Quando entrei na faculdade, tinha como um dos meus ideais andar por aqui, ver as pessoas que se cumprimentavam tirando o chapéu no Viaduto do Chá. Meu ideal nunca foi comprar uma casinha velha não sei onde e montar meu estúdio como se eu fosse um artista do século XIX.

CC: Como o senhor vem para o escritório?
PMR: A pé ou de táxi. O tráfego tornou-se tão problemático que é melhor um profissional dirigindo o carro do que eu. O automóvel desenvolve 150 quilômetros por hora e anda a 5. Mas as pessoas querem andar de carro. A classe média não quer freqüentar a liberdade.

CC: Sem se dar conta disso.
PMR: Sabe que, sem fundamento lógico, acho que eles têm absoluta consciência e estão desesperados? É o imobilismo do aflito, como o naufrágio do Titanic: a orquestra não parou de tocar. Faz de conta que esta nossa conversa se degenerou, a ponto de podermos dizer o que estamos dizendo. Se você imaginar, por hipótese, uma pessoa que tenha um razoável conhecimento da literatura universal, teria ou não consciência do que estamos falando? Teria. Isso quer dizer que essa classe não lê, ou seja, ela já está degenerada.

CC: Um certo pânico generalizado faz parte dessa degeneração?
PMR: Acho que é essa consciência do próprio desastre que forma estados patológicos como o pânico. São pessoas que já não respeitam o outro, estão num estado de delírio. Você está me deixando muito psicólogo. Depois vê se organiza isso.

CC: Organizo. Como o senhor conversa com os clientes dessa classe que o senhor define como degenerada?
PMR: Existe uma dimensão grande de negação no que fazemos. Enquanto linguagem, a arquitetura é um discurso. Diante do que falamos aqui, temos de admitir que esta mesma pessoa que apontou os erros tem de negá-los. A arquitetura parte muito do que não fazer. Como produzir algo belo sem ser contraditório em relação ao que vejo? E até ao que digo? A cidade é, por excelência, o lugar do discurso do homem, o lugar onde as coisas continuam, como experiência e como vida.

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