quinta-feira, 7 de maio de 2009

MONUMENTOS E COLONIALISMO

Uma empresa lançou um concurso para escolher as "7 maravilhas de origem portuguesa no mundo". O concurso provoca incômodo e protestos pois tem a ver não apenas com a história de Portugal, mas também com a dos países e povos que sofreram com o colonialismo português.

Boaventura de Sousa Santos

A New 7 Wonders Portugal, SA está lançando um concurso para eleger as “7 Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo”. Os resultados serão conhecidos no próximo dia 10 de junho. Estamos, pois, no mundo dos negócios e da mídia, e os critérios por que se pauta este mundo têm pouco a ver com a busca da verdade ou da justiça. Têm antes a ver, neste caso, com os lucros que podem ser obtidos com a exploração da história, da obtenção de direitos de exploração do conceito “7 Maravilhas”, da publicidade, da promoção do turismo, etc.

Perante isto, pode estranhar-se o incômodo e o protesto que este concurso tem suscitado no espaço de língua oficial portuguesa, envolvendo sobretudo investigadores que se dedicam ao estudo do império colonial português ou ao estudo dos países independentes que emergiram do fim do império e educadores que, neste espaço, procuram passar às novas gerações uma visão complexa da história que, longe de ser passada, continua a afetar as suas sociedades e as suas vidas.

O incômodo e o protesto têm razões fortes e a principal é que este concurso implica não apenas a história de Portugal, mas também a história dos países que estiveram sujeitos ao colonialismo português, e fá-lo de modo a ocultar, precisamente, o colonialismo, ou seja, o contexto social e político em que esses monumentos foram erigidos e o uso que tiveram durante séculos. O olhar que é orientado para ver a beleza da arte e da arquitetura dos monumentos é igualmente orientado para não ver o sofrimento inenarrável dos milhões de africanos que, entre o século XV e o século XIX, sacrificaram a vida para que muitos desses monumentos tivessem vida, quer os monumentos onde foram comprados como “propriedade móvel”, quer os monumentos que foram construir no outro lado do Atlântico.

Portugal foi um participante ativo no tráfico de escravos, a maior deportação da história da humanidade, que só na África Ocidental envolveu entre 15 e 18 milhões de escravos. Se tivermos em mente que, por cada escravo que chegou à América, cinco morreram nos processos de captura, no transporte do interior para os armazéns (alguns deles, os monumentos de hoje), durante o cativeiro à espera de transporte ou na viagem, estamos a falar de 90 milhões de pessoas. E não esqueçamos que a esperança média de vida dos que chegavam à América era apenas de mais cinco ou seis anos.

Os monumentos devem ser respeitados e recuperados para nos devolverem a história, não para ocultá-la de nós. É por essa razão que ninguém imagina que se promova a visita a Auschwitz apenas para conhecer a arquitetura carcerária modernista da Alemanha. É, por isso, perturbador que o comissário do concurso diga que “esta visita ao património de origem portuguesa no mundo é feita com um sentimento de orgulho e de satisfação pelo legado histórico do nosso passado”, e acrescente que “os fluxos de pessoas e de informação à escala global aproximam-nos de todos enquanto partes constituintes de uma mesma humanidade”. Teremos de concluir daqui que, porque o tráfico de escravos foi um desses fluxos, os monumentos são um monumento ao colonialismo português?

Todos nós que trabalhamos no espaço de língua portuguesa fazêmo-lo com a convicção de que Portugal é um país de futuro e que esse futuro passa pelas relações fraternas que soubermos criar com os países que estiveram sujeitos ao colonialismo português. Mas para que isso ocorra é necessário assumir a história em toda a sua complexidade e não retirar dela apenas o que nos convém. É com base neste pressuposto que estamos construindo uma vibrante comunidade científica e educativa no espaço de língua oficial portuguesa. O patrimônio em causa é tanto de origem portuguesa como é de origem angolana, moçambicana, guineense caboverdiana, indiana ou brasileira. Por um critério mínimo de justiça histórica, as instituições que patrocinam este concurso devem exigir à empresa total transparência de contas e que os lucros sejam integralmente destinados à recuperação dos monumentos.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Fonte:Agência Carta Maior.

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