A nova encíclica do Papa Ratzinger é um texto complexo, que confirma a vocação intelectual e analítica (diria professoral), antes que pastoral, do atual pontífice. O tema é a economia global, a sociabilidade do novo milênio, a revolução tecnológica, as perspectivas do humano.
A opinião é do historiador italiano e diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, Aldo Schiavone, publicada no jornal La Repubblica, 08-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto não contém anúncios clamorosos, mas destaca, ao invés, continuidades (sobretudo com relação a Paulo VI e à "Populorum progressio"), com uma atenção até excessiva. Porém, delineia cenários e esboça posições interessantes, sobre as quais vale a pena refletir, mesmo que, às vezes, pareça condescender muito com as modas do momento, particularmente no plano do estilo e do léxico.
Não estamos diante de uma encíclica capitalista – como alguns projetaram simplistamente: e só poderia ser assim. Mas se respira, sim, uma inquietação, um benéfico sentido de insatisfação com a forma atual do mundo, que nos coloca diante de um pensamento que se interroga a fundo e com inegável criticidade sobre os limites estruturais das sociedades capitalistas: sobre os seus limites, sombras, inaptidões – e pede abertamente "uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins" (nº 32).
Nestes tempos, não é pouco: a cultura do Ocidente havia esquecido há muito tempo tons e demandas semelhantes.
E, além disso, as dúvidas que são propostas não são levantadas em nome de uma desconfiança genericamente antimoderna (como outras vezes ocorreu nas atitudes da Igreja), mas tocam, enquanto tal, a especificidade de um mecanismo econômico fundado exclusivamente na formação do lucro: a sua atitude de fundo garantindo a possibilidade de um futuro equilibrado para a totalidade da espécie.
Um ponto, em particular, deve ser destacado com força: a problemática extrema da relação entre mercado e desenvolvimento, e a impossibilidade do mercado – senão sob o preço de consequências inaceitáveis – de reduzir em si mesmo a inteireza das vidas que o permitiram viver, como pretenderam absurdamente os arrogantes apologetas da época na qual, por sorte, estamos saindo.
E é, me parece, de grande sugestão a hipótese que é proposta como horizonte alternativo aos mecanismos "contratuais" da troca mercantil, que, "sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca (...) não pode cumprir plenamente a própria função" (nº 35). Refiro-me àquela experiência que Ratzinger chama de "admirável experiência do dom" (nº 34): uma forma de relação que "ultrapassa o mérito" e cuja "regra é a excedência".
Surge aqui (parece-me) o coração da encíclica: a ideia – em torno à qual se consumou a modernidade progressiva do planeta – de que o dinheiro pode não ser a única forma universal da nossa reciprocidade, mesmo em universos sociais extremamente avançados. Que, além disso, irrefreavelmente, pode-se e deve-se apresentar alguma coisa, que se refere a um nível não menos profundo e universal do humano, como historicamente pudemos fazer a experiência – um núcleo de "solidariedade" e de "fraternidade" (são palavras de Ratzinger) que só aquela "paz" e aquela "justiça" em que consistem a "caridade" e o "amor" cristãos podem permitir a realização.
Não hesito em dizer que essa língua, essa ordem de discursos, constituem um poderoso motor de eticidade não só para o Ocidente, mas também para todo o planeta, e que aqui, pelo menos uma vez, a professoralidade do pontífice dá lugar a um profetismo cheio de luz e de consequências intelectuais e políticas – com um acento e uma inspiração difíceis de se esquecer.
Porém, justamente quando parecíamos imersos finalmente em um novo universo, algo falha no raciocínio de Ratzinger, e somos dramaticamente reconduzidos para trás. E isso ocorre no momento em que, na sua análise, entra em cena a técnica, na sua relação com o humano e com a história – e, portanto, com a política e o poder (capítulo VI).
Entendamo-nos: aqui também o pontífice revela plenamente o fundo racionalista da sua fé e a sua sincera tentativa de reconciliar o Cristianismo e a modernidade, em uma visão sem rupturas nem surpresas dramáticas. Mas ele ainda não consegue dar o passo decisivo nem tornar explícito que o futuro da técnica não é do de acrescentar alguma coisa (potencialidade, possibilidade, novas experiências) à natureza humana, deixando-a assim como é, como nos foi dada pelo desenvolvimento evolutivo, mas sim de se substituir completamente por ela, para dar vida a algo até agora inimaginável – a um humano pós-natural que começa desde agora a se perfilar, dia após dia, debaixo dos nossos olhos – que enche já, por presságios infinitos, o horizonte consciente das nossas esperas – e define o significado, até político, do nosso agir como habitantes provisórios do tempo.
Pois bem, se o conteúdo primeiro do Cristianismo é graça e, portanto, caridade, essa perspectiva – que aproxima, de modo substancial, o homem a Deus e dá um sentido ao seu ser "à sua imagem e à sua semelhança" – deve ser integrada no interior da mensagem evangélica e não expulsa como uma perigosa ameaça ou um mal intolerável.
Falta na encíclica, me parece, a consciência da urgência extrema do nosso tempo. Estamos verdadeiramente suspensos sobre o abismo. É um destino preparado há milhões de anos, que está precipitando na vertiginosa cadeia de eventos dos quais somos, ao mesmo tempo, protagonistas e espectadores. O processo que chamamos de globalização é apenas o primeiro passo.
Só uma revolução profunda na nossa ética e na nossa política – verdadeiramente um novo humanismo da conexão e da integração totais – pode sustentar-nos nessa extraordinária passagem. O Cristianismo é o único monoteísmo que teve modos para, mesmo profunda e historicamente, acertar as contas com a modernidade. Que ele assuma o peso dessa responsabilidade e nos ajude a olhar a profundidade do tempo que nos espera.
Fonte:IHU
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