No texto que segue, a jornalista italiana Maria Teresa Pontara analisa o livro do arcebispo de Munique, na Alemanha, Dom Reinhard Marx, intitulado "Il capitale. Una critica cristiana alle ragioni del mercato" [O capital. Uma crítica cristã às razões do mercado, em tradução livre] (Rizzoli, 2009).
O artigo foi publicado na seção Teologi@Internet, do sítio da editoria italiana Queriniana, em seu número 135, 28-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Caro homônimo...". Assim inicia a carta que o arcebispo de München-Freising, na Baviera, Reinhard Marx, endereça ao seu concidadão mais conhecido, Karl. Mas as coincidências não terminam aqui: o texto nada mais é do que o primeiro capítulo do último livro publicado por Dom Marx que tem por título "Das Kapital", justamente como a celebérrima obra cujo subtítulo é "Eine sozialethische Streitschrift".
Publicado em outubro passado, traduzido agora na Itália pela editora Rizzoli, que havia adquirido os direitos tempestivamente, o texto constitui uma releitura original, tornando-se, em poucos meses, um autêntico best-seller (100 mil cópias vendidas no mês de janeiro). É inédito o prefácio do autor acrescido à edição italiana: "talvez, olhar para a situação na Alemanha e conhecer a opinião de um bispo alemão que se ocupou durante muito tempo e intensamente desses temas pode fornecer, também na Itália, uma contribuição construtiva para o debate".
De fato, "o Capital de um outro Marx" é o título que rapidamente se difundiu pelas agências de notícias de meio mundo e marcado pelas maiores manchetes internacionais, especialmente financeiras. Em todo o lugar, é desnecessário dizer, respeito e aprovação (a última em ordem de tempo foi a edição europeia da Time no número do início de fevereiro). Mas quem é esse bispo que encontra crédito no âmbito das finanças mundiais da mesma forma que – é fácil o paralelo – o dominicano Timothy Radcliffe ou o cardeal O'Connor, que foi de Westminster, ou do primaz anglicano Rowan Williams?
Uma Igreja encarnada no hoje
Com 55 anos, estudos teológicos em Münster (teologia moral com atenção particular à doutrina social), de 2001 a 2006 arcebispo de Treviri e, desde 2007, da diocese de München e Freising (que foi de Joseph Ratzinger de 1977 a 1981), atualmente secretário e porta-voz da Conferência Episcopal Alemã, delegado junto à Comissão Europeia (Comece) do qual é vice-presidente e chefe da Comissão de Assuntos Sociais, membro do Pontifício Conselho "Justiça e Paz", dom Marx não é novato em posicionamentos corajosos para reforçar os princípios fundamentais da doutrina social da Igreja em clara contraposição à atual ordem econômica mundial.
Orador capaz e apreciado, sempre disponível ao confronto, pode-se encontrá-lo na mídia como em mesas redondas, encontros, seminários da Europa central. Em qualquer lugar, uma grande capacidade de escuta, conjugada à coragem da denúncia, na tentativa de traduzir o Evangelho (e a doutrina social da Igreja) em uma linguagem adaptada ao homem de hoje.
Na Câmara do Comércio norte-americana de Luxemburgo – em uma intervenção com o título "Ethics or profits?" [Ética ou lucro] –, ele defendeu com determinação que o respeito por princípios éticos não significa anular as leis da economia moderna. Mas sobretudo a inconsistência de princípios éticos especiais nesse setor, reforçando com vigor como a igualdade e a dignidade das pessoas são sempre as mesmas em todo campo do agir humano e desejando que o reconhecimento de uma responsabilidade se traduza depois em ações concretas "ao mesmo tempo eticamente aceitáveis e economicamente válidas".
"Um capitalismo privado de um quadro ético é inimigo do gênero humano", declarava em uma entrevista à Der Spiegel (44/2208), que, traduzida imediatamente, fez com que não poucos operadores da City ou de Wall Street refletissem. Diante de afirmações do tipo "a economia deve se submeter a princípios éticos e não ser totalmente presa do mercado. As regras do jogo devem ter uma qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja constitui uma crítica contínua ao capitalismo", e ainda "a avidez e a especulação selvagem são pecado", ou "o lucro do capital não é o único objetivo da economia", aqueles que não conhecem o Concílio ou as encíclicas sociais entram literalmente em parafuso.
"A análise marxista era justa"
Mas no livro vai-se além, afirmando que "um capitalismo privado de humanidade, solidariedade e justiça deve ser considerado imoral e sem futuro".
"O texto constitui uma crítica impiedosa à total liberalização do mercado e à flexibilidade do trabalho – diz Dom Joseph Stricker, assistente do KVW [Katholischer Verband der Werktätigen] da diocese de Bolzano-Bressanone, a organização paralela das ACLI [Associações Cristãs de Trabalhadores Italianos] –, ou melhor, à luz da atual crise financeira, é como dizer que o modelo de capitalismo atual chegou ao fim. Uma filosofia que chegou ao colapso. Justamente neste momento, é oportuna essa redescoberta da crítica de Karl Marx que, pelo menos desde os anos 80, parecia que já devia ser mandada às favas em nome da modernidade. Hoje, graças à ação inteligente do bispo Marx, pode-se dizer que está em curso, de modo muito atento e prudente, uma autêntica reavaliação sua: não por acaso, ele cita o jesuíta Oswald von Nell-Breuning, desaparecido em 1991: "a doutrina social da Igreja vê em Karl Marx um adversário, mas sempre teve um grande respeito por ele".
No seu último livro, de maneira inequívoca, o teólogo moral destaca a proximidade com a doutrina social da Igreja, chamada a ampliar os seus horizontes à luz das distorções atuais: "o velho conflito entre trabalho e capital se colocou sempre mais a favor do capital". Diversas são, ao invés, as soluções prospectadas: "diferentemente do historiador Marx, nenhuma revolução do proletariado, mas se hoje não podemos prescindir de um sistema de mercado, é preciso, porém, dotá-lo de um quadro social", comenta dom Striker.
O modelo anglo-saxão, totalmente privado de qualquer regulamentação, ainda estrenuamente defendido pelo último Bush no G20 de Washington, dilatado sem medidas depois da queda do muro de Berlim, deve mudar de paradigma. A proposta do atual Marx é a "soziale Marktwirtschaft" ("a economia de mercado social"): uma espécie de mercado moderado.
Tanto para desfazer a equação – tão difundida também no nosso país – que realizaria: critica ao capitalismo da mesma forma que o comunismo. De resto, é o próprio autor que se declara nada marxista quando escreve ao "caro homônimo": "as consequências do teu pensamento foram, no fim, desastrosas". Mas isso, pelo contrário, não significa diminuir a fundamental bondade da sua análise social.
Em um artigo publicado em 2008 no jornal Sächsische Zeitung, ele escrevia que nunca tinha sido indiferente à pessoa de Karl Marx e às extraordinárias afinidades entre as teses da doutrina social da Igreja e as dele, ao ponto de invocar com força uma reforma do atual mercado, da mesma forma que a crítica marxista do século XIX. "E esta não deve ser considerada uma utopia, mas sim uma autêntica necessidade para o bem de toda a humanidade", convencido de que "as pessoas a toda a terra são o verdadeiro capital, e a Igreja é chamada a lutar com unhas e dentes para defendê-las".
"É hora de colocar em ação um governo global para levar mais justiça, transparência e responsabilidade aos mercados financeiros mundiais, como há muito tempo a Igreja propõe", declarava em outubro passado em Paris, por ocasião do encontro da Comissão de Assuntos Sociais (Comece).
Convergências diversas
E aos que o criticam, Reinhard Marx rebate determinado: "A minha posição não é uma espécie de pró-romanticismo utópico – não é tarefa dos bispos realizar o Paraíso na terra, havia declarado em uma entrevista ao Süddeutsche Zeitung –, mas estou convencido de que o caminho social é a única via justa para a qual não há alternativa razoável".
"O arcebispo não está sozinho – repete Peter Gumbel, na Time do dia 02 de fevereiro, em "Rethinking Marx" – porque de Washington a Vladivostock as análises são idênticas".
Vozes semelhantes se encontram sempre mais frequentemente na Igreja. "Afirmar os direitos dos pobres, pôr-se 'à coté dell’emargination', como escrevia Paulo VI na mensagem de Quaresma de 1976, não significa ser comunista, mas apenas fiel ao Evangelho", escreve Dom Giovanni Nervo, primeiro presidente da Cáritas italiana no seu livro de dezembro passado, relembrando o desafio para "uma globalização na solidariedade e uma globalização sem marginalização", contida na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1998.
"Além de dar ênfase à dignidade e ao valor de cada indivíduo desde a concepção até o túmulo, a Igreja considera a pessoa humana como um ser essencialmente social, que tem necessidade de um contexto social seguro para prosperar. Disso derivam a importância do matrimônio e da família e a importância da comunidade e de um lugar seguro do indivíduo nela. Privar as pessoas do direito ao trabalho quer dizer privá-las da capacidade de contribuir com a vida da comunidade, marginalizando-as e reduzindo sua dignidade humana", escrevia o cardeal Cormac Murphy-O'Connor, no L'Osservatore Romano do dia 23 de novembro, republicado no dia 11 de janeiro. "O crescimento econômico não é o único critério de uma sociedade sadia".
E falando de Londres, onde o arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, define como "assaltantes" os banqueiros que prosperaram durante anos com as dívidas das pessoas: "quando o mercado se recuperar, ele deverá ser administrado de modo a contribuir com a criação de novos empregos com uma retribuição adequada e condições de trabalho decentes. Os cristãos reconhecem que o mercado, como o dinheiro em si mesmo, é um elemento essencial na condução dos negócios humanos. Porém, as leis por meio das quais ele age não são cegas como a da força da gravidade. Surgem de ações e de decisões humanas, que, por isso, podem moderá-las. Aqueles que gerem o mercado têm a obrigação de garantir que as suas ações promovam o bem comum e não só a maximização do lucro daqueles que são mais experientes na sua exploração".
Junto com o mercado sem regras, enfim, está aquela que o seu concidadão Radcliffe define como "a escravidão dos três ídolos – cultivo de desejos ilimitados, absolutização da propriedade privada e deificação do dinheiro – que deforma a aldeia global".
Bibliografia
1. Vittorio Cristelli, Il “Capitale” del vescovo Marx, in Vita Trentina n.1/2009, Trento, 11 de janeiro de 2009;
2. João Paulo II, Da justiça de cada um nasce a paz para todos, Mensagem para a Dia Mundial da Paz de 1998, Cidade do Vaticano 1997;
3. Gumbel Peter, Rithinking Marx, in Time - edição europeia, 2 de fevereiro de 2009;
4. International Herald Tribune Europe (redação), Another Marx, a new “Das Kapital”, 29 de outubro de 2008;
5. Reinhard Marx, Das Kapital - Eine sozialethische Streitschrift, München 2008 (Il Capitale – Una critica cristiana alle ragioni del mercato, Rizzoli, Milano 2009);
6. Reinhard Marx, Ein Bischof mit viel Kapital, entrevista a www.sueddeutsche.de/muenchen, 29 de novembro de 2007;
7. Reinhard Marx, Ethics or profits? - The stakeholder approach as a facet of value-orientated management, intervenção na American Chamber of Commerce in Luxembourg, 6 de fevereiro de 2006;
8. Reinhard Marx, declaração a SIR, Paris, 9 de outubro de 2008;
9. Cormac Murphy-O'Connor, La crescita economica non è l’unico criterio di una società sana, in L’Osservatore Romano, 23 de novembro de 2008 (republicado como La recessione e la riscoperta della dimensione etica dell’economia in L’Osservatore Romano, 11 de janeiro de 2009);
10. Giovanni Nervo, La solidarietà – Uno per tutti, tutti per uno, Padova 2008;
11. Timothy Radcliffe, What is the point of Being a Christian?, London 2005 (Il punto focale del cristianesimo, Cinisello Balsamo 2008);
12. Peter Wensierski-Stefan Berg, "Wilde Spekulation ist Sünde", entrevista com Reinhard Marx in Der Spiegel n.44/2008 p. 170, München, 27 de novembro de 2008.
Fonte:IHU
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