"Alguma coisa errada foi feita no passado. Ou talvez uma série de coisas erradas", lamenta Hitchens
Christopher Hitchens
Do The New York Times
Rory Stewart, o jornalista e ex-diplomata britânico, foi uma das testemunhas mais inteligentes e engajadas da liberação do Afeganistão. Então, quando Stewart escreve um artigo com tanta sobriedade como fez em "The Irresistible Illusion" (A Ilusão Irresistível), publicado no London Review of Books de 9 de julho, ele nos força a prestar mais atenção no assunto.
Vou citar uma declaração sua sobre a questão, como ela é comumente mencionada por nossos líderes: "Os criadores de políticas veem o Afeganistão através da ótica do contraterrorismo, da contra-insurgência, da construção do estado e do desenvolvimento econômico. Essas estratégias são intimamente ligadas para que possam ser colocadas em sequência ou combinação. É preciso derrotar o Talibã para que se possa construir um estado que precisa ser construído para derrotar o Talibã. Não pode haver segurança sem desenvolvimento ou desenvolvimento sem segurança. Onde houver o Talibã há terroristas, se não há desenvolvimento há terroristas, e como disse Obama ao New Yorker, 'os espaços sem governo tornam-se paraísos para terroristas'."
Faz tempo que eu não vou ao Afeganistão, mas está cada vez mais difícil evitar a impressão de que alguma coisa errada foi feita no passado. Ou talvez uma série de coisas erradas - talvez a combinação da derrota na luta contra as drogas; a exagerada dependência nos ataques aéreos que aterrorizavam e feriam a população civil; a cessão de muitas zonas de fronteira para o Talibã e seus comparsas paquistaneses; e ignorar a corrupção, os intermediários do petróleo e a apatia dos ministros do governo de Hamid Karzai, que se lança a uma reeleição que não parece incitar o entusiasmo de ninguém em especial.
Stewart salienta que uma possível "insurgência" não poderia reverter a situação. Não há grupos políticos de massa no Afeganistão e Cabul não possui a força e a legitimidade de Bagdá. Os grupos tribais afegãos não são acessíveis como eram os sunitas iraquianos, e eles normalmente não demonstram o mesmo nível de coerência e legitimidade. Foi nessas circunstâncias que o Talibã conseguiu emular uma boa parcela do sucesso do Mujahidin anti-soviético, posando como defensor da fé islâmica e inimigo da intervenção estrangeira, tornando-se um governo virtual em algumas províncias e cidades.
No entanto, as coisas não estão tão ruins quando se espera. Nas minhas próprias incursões por terras afegãs, descobri que o Talibã também sofria de uma desvantagem enorme que o Mujahidin não possuía: Eles já tinham estado à frente do governo do Afeganistão e não foram muito populares. Várias pessoas, especialmente mulheres e moradores das grandes cidades, guardam memórias amargas da crueldade e do absurdo do seu governo. Muitos afegãos fugiram para o campo e só voltaram quando o Talibã havia sido deposto.
Várias populações religiosas e étnicas, que também sofreram imensamente, não se submeteriam ao controle Talibã novamente. Stewart discorre sobre isso: "As populações Hazara, Tajik e Uzbek são mais ricas, mais estabelecidas e mais poderosas agora do que eram em 1996 e resistiriam ferrenhamente a uma tentativa por parte do Talibã de ocupação de suas áreas. O exército nacional afegão é razoavelmente eficiente. O Paquistão não está em posição de apoiar o Talibã como antes. Seriam necessários bem menos tropas e aviões internacionais do que temos hoje para impedir que o Talibã formasse um exército convencional como fez em 1996 ou levar tanques e artilharia às ruas de Cabul.
Se eu compreendo bem o que Stewart e outros analistas querem dizer, eles estão nos alertando que estamos tornando amigos inimigos. Isso me lembra do que o radical galês Aneurin Bevan disse ao partido conservador inglês durante a crise no Chipre no final da década de 1950. Segundo ele, o governo não conseguia decidir se queria manter uma base no Chipre ou se desejava usar a ilha toda como base. Expandindo ainda mais a analogia, seria possível para nós influenciar os eventos no Afeganistão de forma a agradar nossos desejos sem nos tornarmos responsáveis pelo governo da nação e da sociedade como um todo?
Steward diz: "Uma redução no número de tropas e o abandono da construção de prédios não devem significar uma retirada total: os bons projetos podem continuar nas áreas de eletricidade, água, irrigação, saúde, educação, agricultura e desenvolvimento rural..." Quanto à questão militar, a al-Qaeda pode ser mantida longe do Afeganistão - mesmo que tenha que ser empurrada em direção ao Paquistão - da mesma forma que agora: pelo uso de forças especiais e de vigilância aérea. Se o grupo encontrar reverberação em algum líder Talibã provinciano, nada impede que o ataquemos com forças armadas dos países vizinhos.
O problema pode ser que, no afã de se esquivar das agruras do Iraque (num momento em que o conflito Afeganistão/Paquistão está em maior destaque), Obama pode ter prometido ao Afeganistão mais do que pode de fato realizar. Do jeito em que as coisas estão, nos comprometemos em oferecer um novo e descomunal aparato de segurança ao Afeganistão a um custo que não para de crescer diariamente, enquanto nossos aliados na OTAN ficam mais e mais nervosos. Até mesmo os ingleses estão demonstrando certa discordância sobre os índices de mortalidade e a possibilidade minguante de estabilidade política. Por fim - ao contrário do Iraque - o Afeganistão não tem economia, além da informalidade que nos comprometemos a abolir. Mas ainda existem opções além do desespero e precisamos poder mencioná-las e levá-las em consideração. O artigo de Stewart é um bom começo.
Christopher Hitchens é jornalista, escritor e colunista de Vanity Fair e Slate Magazine. É autor do livro "Deus não é Grande: como a religião envenena tudo". Artigo distribuído pelo The New York Times Syndicate.
Fonte:Terra Magazine
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