segunda-feira, 17 de agosto de 2009

AMÉRICA LATINA - O "insider" norte-americano na América Latina.

Scott Palmer vai para a direita, vai para a esquerda, avança pela fileira do meio, volta para trás. Caminha e conta o que ninguém conta marcando com passos longos o ritmo de suas palavras, microfone na mão, diante de um auditório meio cheio, meio vazio, no subsolo da sede central da Universidade de Belgrano, na Argentina.

A reportagem é de Santiago O’Donnell, publicada no jornal Página/12, 15-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Scott Palmer é um "insider" em inglês, ou seja, alguém que conhece por dentro, do "inside". Scott Palmer é um insider do Departamento de Estado e, dentro dele, um insider do mundinho dos funcionários norte-americanos que decidem as políticas para a América Latina.

Trabalhou 12 anos no Departamento de Estado como diretor de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos e como decano associado do Instituto de Serviço Exterior, ao qual continua ligado como professor visitante. Graduado em Dartmouth, Stanford e Cornell, seu currículo tem várias páginas com livros, artigos e cátedras em diversas universidades norte-americanas e latino-americanas. É diretor de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Boston e consultor acadêmico do Departamento de Estado e da Comunidade de Inteligência Nacional (NIC), o grupo que congrega as 16 principais agências de espionagem dos EUA.

O insider não se enquadra nos estereótipos da Guerra Fria. Escreveu um livro muito citado sobre o Sendero Luminoso em que analisa a problemática social e de iniquidade em que a guerrilha surgiu e no qual defende que a etiqueta de "terroristas" não lhes cabe, porque os senderistas buscavam tomar o poder e não simplesmente semear o terror.

Ele acaba de terminar um livro sobre a relação do governo de Clinton com a América Latina, para o qual entrevistou mais de 50 funcionários da área, desde o chefe de gabinete para baixo. O livro defende que Clinton deixou passar uma grande oportunidade e que seus principais erros foram assinar a lei Helms-Burton, que piorou o bloqueio cubano e o fato de não ter defendido o acordo de Governor’s Island, que restituía o presidente haitiano derrubado, Jean Bertrand Aristide.

Agora está escrevendo um livro sobre a última guerra entre Peru e Equador e acaba de percorrer suas fronteiras.

Em sua juventude, como bolsista da Fulbright, partilhou um ano e meio com o líder senderista Abimael Guzmán na sala de professores da Universidade San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho, Peru, onde, segundo Palmer, aprenderam a "se odiar docemente" e nunca deixaram de se cumprimentar:

- Oi, senhor Palmer.
- Oi, professor Guzmán.

O insider é alto e corpulento e exibe uma gravada muito longa entre o seu blazer aberto e seu terno abotoado no último botão. Está próximo de completar os 70 anos, mas sua linguagem corporal diz outra coisa. Caminha ereto e fala pausadamente em um espanhol com pouco sotaque, quase sem recorrer a palavras em inglês. Fala sem rodeios nem histrionismos nem tons altissonantes, como é de costume dos norte-americanos.

O tema da conferência que o traz a Buenos Aires é "a política exterior para a América Latina do governo Obama". Depois disse mais coisas enquanto degustava um pedaço de linguiça bem suculento com muito malbec em um restaurante perto de sua embaixada. Coisas que muitos poucos podem dizer, ou porque não sabem ou porque ocupam cargos sensíveis. Por outro lado, o insider nunca fica em offside.

Além de Obama, falou com soltura sobre Clinton e os dois Bush, de Chávez, Evo e Correa, de Honduras, das bases colombianas, do Consenso de Washington e da Quarta Frota. Até contou e defendeu sua experiência como professor da Escola das Américas, "a escola dos assassinos", como ele mesmo reconhece que os seus numerosos detratores a apelidaram.

Iniciou a conferência dizendo que Obama assumiu em meio a grandes expectativas na região, pelo desprestígio em que o governo Bush havia caído. Disse que esse desprestígio era devido mais a erros cometidos no resto do mundo e não pelo que ocorreu na América Latina, onde, salvo sua política com Cuba e Venezuela em seu primeiro mandato, o resto não havia sido muito ruim.

Ele acrescentou que essa expectativa desmedida torna mais difícil apreciar o fato de que Obama, em seus primeiros 100 dias de governo, em meio de muitas urgências, tenha tido gestos importantes que demonstram seu compromisso com a região. Contou que esses 100 dias, entre o presidente, o vice e a secretaria de Estado, houve sete viagens para a região, incluindo as duas de Obama ao México, algo que nunca havia acontecido. E que Calderón foi o primeiro presidente que Obama viu após ter ganhado as eleições, e que Lula foi o primeiro chefe de Estado que Obama recebeu ao chegar à Casa Branca.

Mas também reconheceu que esses gestos foram em grande parte simbólicos e que Obama ainda não fez praticamente nada para resolver os principais problemas do continente. Disse que isso se deve ao fato de que o presidente tem um estilo de buscar equilíbrios e é contrário a tomar medidas extremas, o que desespera seus seguidores mais fanáticos, mas que a ele, Palmer, parece bom, porque as mudanças políticas graduais são mais sustentáveis do que as repentinas.

Ele explicou que os principais temas vinculados à América Latina que Obama deve encarar são os chamados "intermésticos", porque envolvem as relações internacionais, mas seu impacto é em grande parte doméstico. Nessa categoria colocou a demorada reforma migratória, o problema das quadrilhas na América Central e a política antidrogas.

Sobre este último ponto, disse que é significativo que Obama tenha nomeado um czar antidrogas com conhecimentos médicos e que a nova estratégia consista em arquivar a ideia de "guerra contra as drogas" e passar de políticas de erradicação para políticas de interdição e controle da demanda por meio de tratamentos e programas educativos. Indicou que o acordo militar com a Colômbia faz parte dessa nova estratégia.

"Houve avanços significativos. Primeiro, o reconhecimento da importância do diálogo, o desejo articulado de conversar com a chamada nova onda populista de esquerda, com Chávez, com Raúl Castro. Demonstrou-se um desejo de acabar com a presença de prisioneiros do conflito no Oriente Médio com o anúncio do fechamento das bases de Guantánamo em um ano. O estilo de Obama de agir em um marco de respeito mútuo, de tolerância e multilateralismo não serve para resolver os problemas em um tempo muito curto, mas penso que é muito sensato", concluiu.

O melhor veio quando chegaram as perguntas. Surpreendeu a um estudante hondurenho e antichavista declarado, dizendo que Zelaya fez bem em aliar-se com o líder bolivariano: "Chávez vende petróleo a baixo preço para a Honduras, assim como para outros países da América Central, do Caribe e da América do Sul. Honduras não tem petróleo e o fornecimento é fundamental, especialmente nestes tempos. Por isso, penso que Zelaya fez bem, mesmo que essas ajudas sempre tem um preço, e este preço está para ser visto".

Quando perguntaram-lhe sobre Chávez, disse que, mais do que uma ameaça, ele representa um incômodo para os EUA. "Ele tem uma retórica muito inflamada, mas seus discursos são para consumo interno. Há uma distância entre seus ditos e seus feitos.De fato, desde que Chávez assumiu, o comércio entre Venezuela e EUA aumentó".

Não satisfeito com a resposta, o estudante insistiu fazendo referência à suposta política chavista de "confiscar terras".

"As políticas que ele implementa são coisas dele, está em seu direito. Se há alguma irregularidade legal, poderemos observá-la, mas não queremos interferir", respondeu o insider.

Diante da típica pergunta sobre a política com Cuba, o insider não teve problemas para reconhecer que não existe uma boa razão de ser. "Todo mundo sabe que a política sobre Cuba não é decidida em Washington, mas sim em Miami, e senão perguntem que Estado decidiu as eleições de 2008 e que grupo deu a George W. Bush a margem de vitória. Por isso, contra a opinião de praticamente todos os especialistas no assunto, mantém-se uma política contraproducente para os interesses nacionais, por razões domésticas ou eleitorais".

Fazendo essa exceção, esclareceu que Obama já levantou restrições às remessas e às visitas a Cuba. Contou que na semana passada seu governo retirou um cartel que transmitia notícias anticastristas a partir da sede diplomática norte-americana em Havana. E encerrou dizendo que conhece a existência de "conversas subterrâneas" entre os dois governos.

"Cuba já está mudando. Tudo indica que ela caminha rumo a um modelo chinês, com livre comércio e controle político. Os EUA poderão conviver com isso? Ainda não sei. Os tempos do descongelamento são marcados por Cuba, como sempre, porque são necessários dois para dançar tango. Mas estou convencido de que, algum dia, provavelmente após a morte de Fidel Castro, chegará a normalização total como ocorreu com a China".

Depois vieram as fotos, o restaurante, a linguiça, o vinho e a entrevista, que retomou vários pontos que o insider havia apresentado no auditório.

Eis a entrevista.

Por que o governo de Obama não atua com mais decisão frente ao golpe de Honduras?

Eu não diria que houve um golpe, mas sim uma interrupção da democracia, como o que ocorreu com Bucaram, Mahuad e Gutiérrez no Equador ou Sánchez de Lozada na Bolívia. Eu acredito que os EUA foram muito claros, condenaram a remoção de Zelaya e levaram o assunto para a OEA, para corrigir o erro do governo Bush de ter apoiado o golpe contra Chávez em 2002.

Não me parece que tenham sido situações semelhantes. Zelaya foi removido de pijama.

Entendi que ele estava de pijama quando foram prendê-lo, mas que os militares deram-lhe tempo para se vestir, por isso não há fotos de Zelaya de pijama. Os militares agiram por ordem da Suprema Corte, mas fizeram mal ao expulsar Zelaya do país. O problema é que a Constituição hondurenha não contempla o juízo político do presidente. Exige-se mais firmeza dos EUA, mas eles fizeram o que tinham que fazer. Se aprendemos algo na América Central nos anos 80 é que as partes são as únicas que podem resolver um conflito. Em 1987, os presidentes da América Central se fecharam em uma casa de Esquipulas, nos arredores de San José, e assinaram um acordo de paz apesar da oposição dos EUA e do Grupo Contadora, que foram excluídos das negociações e também não foram nomeados garantidores do processo.

Na conferência, o senhor opinou que os governos de Chávez e Evo Morales não são sustentáveis e os diferenciou do governo de Rafael Correa. Por quê?

Porque seus modelos econômicos não são sustentáveis no tempo a menos que o preço do petróleo tenha um grande salto ou que façam mudanças que não vão fazer. Como eles exercem um estilo de democracia direta com muitas eleições, cedo ou tarde a situação econômica vai fazer com que percam uma eleição e terão que ir embora. Morales não é índio, não fala nem quechua nem aymara, mas representa a reivindicação histórica dos setores indígenas postergados. Por isso ele é tão popular: como não pertence a nenhum grupo étnico em particular, pode representar todos. O problema mais sério que ele tem é que ele quer ter no governo pessoas que votaram nele em vez de representantes dessas pessoas. Dou um exemplo: como seu quinto presidente da YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos) nomeou um professor de escola. Eu respeito os professores, mas não quero que chefiem companhias petrolíferas. O caso de Correa é diferente porque o Equador é o único país da região que era governado por um parlamentarismo que não deixava fazer nada e engolia os presidentes. Era preciso fazer alguma coisa para ordenar o país, e ele está fazendo.

O senhor também disse que o presidente que mais fez pela região nos últimos tempos foi Bush pai. Por quê?

É preciso lembrar o contexto: as democracias latino-americanas eram muito recentes, e a região havia entrado na pior crise econômica de sua história, e seus países acumulavam grandes dívidas. Bush pai foi o presidente com mais experiência internacional dos últimos tempos. Havia sido embaixador na China, embaixador nas Nações Unidas e diretor da CIA. Por isso, preferiu deixar que profissionais decidissem a política latino-americana. Obama é o primeiro presidente desde então a fazer o mesmo. Bush pai nomeou Bernie Aronson como subsecretário da área, um democrata com bons contatos com o Congresso, e conseguiu muitas coisas. Nesse período, deu-se a Iniciativa para as Américas, pela qual os EUA negociaram convênios bilaterais com todos os países da região, como os raios de uma roda. E também o plano Brady, para aliviar os países mais endividados. Além disso, ocorreu o Consenso de Washington, que se tratou de uma série de reuniões entre funcionários norte-americanos, governantes sul-americanos e representantes de bancos privados, para tentar resolver o problema da dívida. O erro foi chamá-lo Consenso de Washington. Se tivesse sido chamado Consenso de Brasília ou algo assim, ele não teria recebido tantas críticas. Durante esse mesmo período, também foi assinado o chamado Compromisso de Santiago, que permitia pela primeira vez a intervenção militar dos países da OEA para prevenir ou evitar golpes de Estado.

Também ouvi o senhor dizer que, na cúpula de Miami de 1994, os presidentes latino-americanos obrigaram Clinton a incluir na agenda o assunto da Alca, o tratado de livre comércio do hemisfério. Foi assim?

Claro. Esse assunto praticamente custou a eleição de Clinto em 1994, porque os sindicatos não queriam a abertura comercial e não o apoiaram. Então, os republicanos se somaram à onda protecionista e levaram a maioria nas duas câmaras. O então chefe de gabinete, [Thomas] McLarty, e a então secretária de comércio, [Charlene] Barshefsky, me contaram que se opunham à Alca por razões de política doméstica, mas que o presidente Clinton disse-lhes quase aos gritos que a cúpula era muito importante para ele e que os presidentes lhe haviam dito que não viriam se não houvesse uma proposta integral de livre comércio.

O senhor disse que o desdobramento militar na Colômbia faz parte da nova estratégia antidrogas. Não será também para combater a guerrilha?

Com certeza. Quando se assinou o plano Colômbia em 1991, o Congresso autorizou que os militares norte-americanos dessem "apoio e treinamento" na luta contra as forças insurgentes colombianas. O único antecedente na região de uma autorização similar ocorreu em 1977, para combater o tráfico de drogas e a guerrilha em Alto Huallaga, Peru.

Até que ponto as políticas de segurança determinam as relações internacionais dos EUA desde o 11 de setembro?

Pode-se dizer, sem lugar a dúvidas, que o Departamento de Defesa assumiu muito mais controle da agenda multilateral com a América Latina, especialmente nos temas relacionados à segurança. O Departamento de Estado mantém o controle só de palavra. O Departamento de Estado tem o menor orçamento de todos os ministérios. Nos anos 90, era de 20 bilhões de dólares, e o governo de Clinton cortou 30%. O Departamento de Defesa tem o segundo orçamento, atrás da Saúde e da Educação, 285 bilhões de dólares. O Departamento de Estado tem apenas 4.400 empregados e não têm redundância em nenhum posto. Se um empregado parte para um programa de treinamento, o departamento não tem ninguém para substituí-lo. Durante cinco anos, não houve exame de ingresso ao corpo diplomático, porque não havia orçamento. Para cada empregado do Departamento de Estado, há 25 militares fazendo tarefas semelhantes. É indispensável que ocorra uma mudança nessa dinâmica.

Na região, critica-se muito o relançamento da IV Frota. O que o senhor opina a respeito?

Que é um frota de papel. Não existe. Não há barcos, nem mais viagens, nem mais soldados, nem nada. Tratou-se so de um reordenamento administrativo.

E o que o senhor opina da Escola das Américas?

Primeiro, devo esclarecer que fui professor da última etapa da escola. No corpo docente, havia gente como Jorge Domínguez (politólogo e profesor de Harvard) e Luigi Enaudi (ex-subsecretario geral da OEA). É uma das quatro escolas pelas quais os oficiais norte-americanos devem passar para alcançar o grau de general. Desde a Segunda Guerra Mundial, passaram 61 mil oficiais pela escola, dos quais só mil estiveram por mais de um ano. Não acredito que, no curto tempo em que estiveram lá, eles tenham aprendido a ser golpistas ou assassinos. O Unabomber se formou em Harvard. Isso não quer dizer que ele tenha se convertido em assassino em série por causa dos quatro anos que passou nessa universidade. Com a Escola das Américas aconteceu o mesmo, mas [o ator] Martin Sheen montou uma grande campanha para convencer a opinião pública que ela é uma escola de assassinos.

Mas não é apenas o fato de que os militares golpistas tenham coincidido nessa escola, mas sim que, a partir da escola, adiantaram suas aventuras golpistas. O senhor conhecer alguma ditadura de direita na região que os EUA tenham apoiado?

(Pensa um pouco) – Não.

Qual é o objetivo estratégico dos EUA na região?

O objetivo é uma região de países compatíveis, em paz entre si, e com relações razoavelmente boas com os EUA, o que implica primeiro em democracia e, segundo, em um mercado aberto ao comércio e aos investimentos.

Como vão as relações com a Argentina?

As relações são normais, sem problemas. Não vejo nuvens escuras no horizonte.
Fonte:IHU

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