quarta-feira, 5 de agosto de 2009

ECONOMIA - A crise capitalista e a esquerda: rompendo velhos paradigmas.

IHU On-line

Conjuntura da Semana Especial.

A análise da conjuntura da semana dedica-se ao exame da crise capitalista tendo como referência a revista IHU On-Line nº. 301 – O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes. Contribuem ainda para essa análise as revistas IHU On-Line: nº. 276 – A crise financeira internacional. O retorno de Keynes; nº. 278 – A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx; nº 287 – A crise capitalista e a esquerda; nº 291 – O mundo do trabalho e a crise sistêmica do capitalismo globalizado e a revista nº 295 – Ecoeconomia. Uma resposta à crise ambiental?

A análise é elaborada, em fina sintonia com o IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Sumário:

Natureza da crise: ‘O velho está morrendo e o novo ainda não nasceu’
A dicotomia entre capital produtivo versus capital financeiro já não existe mais
O trabalho no centro da crise
O centro da nova economia: o imaterial
O ‘comum’ como base da exploração capitalista e de um projeto libertário
A crise ecológica
A irracionalidade do produtivismo socialista ou capitalista está no banco dos réus
A crise e os fundamentos para um projeto emancipatório

Eis a análise.

Natureza da crise: ‘O velho está morrendo e o novo ainda não nasceu’

O mundo está confrontado com a maior crise que o capitalismo já assistiu. As análises, interpretações e diagnósticos sobre a crise econômica mundial, via-de-regra, a caracterizam como uma crise cíclico-sistêmica, isto é, por um lado, as crises não são fenômenos estranhos ao capitalismo, mas são uma das suas características fundamentais, como afirmava Marx; por outro lado, em alguns momentos, essas crises cíclicas assumem um caráter sistêmico, ou seja, contaminam o conjunto da economia global e atingem indistintamente o capital financeiro e produtivo.

O caráter cíclico-sistêmico da atual crise estaria associado à ressaca da aplicação do receituário neoliberal. A excessiva liberalização das finanças, livre de qualquer regulamentação, desgarrada do capital produtivo – o dinheiro que gera dinheiro do nada, descolado da matriz produtiva – estaria na gênese da crise.

A interpretação da crise, como sendo de natureza cíclico-sistêmica resgatou e trouxe para o centro do debate dois clássicos da economia política: Marx e Keynes. Embora, ideologicamente opostos, os dois têm em comum o fato de que dissecaram a estrutura do capitalismo industrial em momentos históricos distintos apontando as suas contradições e limites. Nesta perspectiva, o marxismo e o keynesiano têm sido utilizados profusamente para explicar a crise. Dois números da revista IHU On-Line foram dedicadas à analise da crise tendo como referência o instrumental teórico de Marx e Keynes: A crise financeira internacional. O retorno de Keynes, edição n. 276 - 06-10-2008 e A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, edição n. 278 - 20-10-2008.

A interpretação da crise por um grupo de autores (1) que procura avançar para além de Keynes e Marx é a novidade da revista IHU On-Line intitulada O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes, edição 301, 20-07-2009.

Trata-se de uma análise inovadora e singular que foge ao usual do que se tem ouvido, visto e lido até o momento. Poder-se-ia afirmar que conspira a favor dos autores entrevistados pela revista do IHU, a própria metodologia sugerida por Marx, ou seja, a exigência do método dialético de que a teoria deve ser modelada segundo os contornos da realidade abordada. Esses autores partem do princípio de que a essência do capitalismo está radicalmente modificada e, portanto, Keynes e Marx, autores da sociedade industrial, seriam insuficientes para dar conta de um capitalismo que está em profunda mutação. Nesta perspectiva, as categorias largamente utilizadas para compreender e dissecar o capitalismo industrial já não daria conta da análise e da compreensão da crise ulterior a esse capitalismo industrial, agora de configuração cognitiva.

Pior ainda, procurar compreender a crise a partir das chaves de leitura da sociedade industrial impossibilita a formulação de um projeto radicalmente emancipatório; corre-se o risco de, em nome do combate ao capitalismo, fortalecê-lo. Aliás, esse é o enigma com que se defronta a esquerda mundial. A crise evidencia um vazio teórico da esquerda. A sua ousadia se resume, quando muito, à reprodução das ideias keynesianas. O máximo que a esquerda vê na crise mundial é a possibilidade de fortalecimento do Estado, algo para o qual nem a direita oferece resistências. O desafio para aqueles que desejam “outro mundo” não seria o de apenas “reformá-lo”, mas antes de tudo “revolucioná-lo”. Para tanto, faz-se necessário uma correta análise do que efetivamente manifesta as entranhas da crise em curso.

A retomada e a repercussão do exame da natureza da crise apresentada na revista IHU On-Line publicada em julho, é instigante exatamente porque se apresenta como análise diversa do que se tem debatido e, sobretudo, em função de que aponta para pistas do que poderia se denominar de um pensamento radical para enfrentá-la.

O espírito que orienta os autores entrevistados pela revista é a intuição formulada por Gramsci, resgatada por Zygmunt Bauman, de que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu: neste interregno surge uma grande variedade de sintomas mórbidos”. O mesmo é dito com outras palavras por Carlo Vercellone: “a crise atual é uma grande crise, um momento trágico, no qual o antigo morre, o novo não chega a ver a luz do dia, e nesse claro-obscuro surgem os monstros. Mas, se nada será como antes, é preciso admitir a dificuldade de definir com precisão os cenários de uma eventual saída da crise”.

Esta é a intuição que orienta essa análise de conjuntura: a percepção de que a crise manifesta que o velho mundo – a sociedade industrial – está morrendo, porém o novo ainda não nasceu. O novo está em disputa e é dessa disputa que sobrevirá ou não um projeto emancipatório. Nesse sentido é preciso abandonar a nostalgia do retorno à sociedade industrial e a sua promessa do pleno emprego. Essa sociedade não retornará.

Ainda mais, a crise não é apenas econômica, mas antes de tudo ela é expressão de outras crises: do trabalho, isto é, do modo produtivo da sociedade industrial em vias de esgotamento e do seu efeito reverso, a crise ecológica. Na visão de Boutang, “a crise é mundial num tríplice nível: social, ecológico e cognitivo”.

A dicotomia entre capital produtivo versus capital financeiro acabou?

A novidade apresentada pelos autores está no fato de que, distintamente das análises apresentadas comumente, afirmam que a crise atual questiona a dicotomia entre a economia real e a economia virtual/financeirização. “O que a crise estourou completamente foi a dicotomia – ainda cara a muitas esquerdas – de economia real versus economia financeira. Hoje nossas vidas estão inteiramente no processo de financeirização: quando usamos o cartão de crédito ou o cheque especial, quando recorremos a empréstimos para ter acesso a necessidades fundamentais (casa, formação, mobilidade, e principalmente a saúde), quando uma parte dos salários é paga em stock option (ações) ou as pensões se tornam fundos de investimentos”, destaca o historiadir Gigi Roggero.

Segundo ele, “para a economia clássica e moderna, a financeirização e a crise intervinham no final do ciclo, após a expansão da economia real ligada à afirmação de um modelo produtivo. Hoje, a financeirização não só recobre o ciclo econômico inteiro, mas põe em discussão a própria categoria de ciclo”. Logo, diz Roggero, “a crise, longe de estar confinada a uma fase descendente do ciclo e de preparar uma nova expansão, tornando-se impulsionadora de uma dinâmica de crescimento, não é mais somente um dado estrutural do desenvolvimento capitalista, mas torna-se seu elemento permanente e insuperável”.

O mesmo afirma Carlo Vercellone: “A crise não é de desregulação (...) Sou resolutamente crítico em face da tese dominante, segundo a qual a crise atual seria uma crise de origem financeira que só teria afetado num segundo tempo a economia dita real”.

Segundo o economista italiano, o erro de análise “inspira-se numa concepção autenticamente keynesiana, ou marxo-keynesiana”. “Para esta análise, afirma Vercellone, o sentido e o cacife da crise atual se encontraria no conflito entre a vocação rentável do capitalismo financeiro e o ‘bom’ capitalismo produtivo, portador, este, de uma lógica de acumulação favorável ao crescimento da produção e do emprego”.

Vercellone destaca que essa leitura é errônea por três razões estreitamente interligadas:

1ª) a denúncia do papel perverso das finanças é desconectado de uma análise das profundas transformações da organização social da produção e da demanda social. Estas não estão mais fundadas na produção de bens padronizados, mas sobre o lugar cada vez mais central do conhecimento e do imaterial, e notadamente do que eu chamo de produções do homem para o homem (saúde, educação, cuidados, pesquisa). É o esquecimento dessas dimensões essenciais que pode nutrir a ideia errônea, segundo a qual a saída da crise se encontraria num relançamento keynesiano do modelo fordista do pleno emprego e da produção/consumo de massa;

2ª) ela nega a importância das mutações que, neste quadro, conduziram ao esgotamento do papel hegemônico da lógica do capitalismo industrial e a uma vocação especulativa e rentável mais pronunciada do próprio capital produtivo. Nesta evolução, a financeirização do capital produtivo não é, aliás, senão uma das expressões de uma verdadeira multiplicação das formas rentáveis de valorização do capital (patentes, marcas, etc.).

3ª) ela faz da crise atual o simples resultado da repetição, desde os anos 1980, de crises financeiras graves, obedecendo a uma lógica cíclica e repetitiva, endógena às próprias finanças e à sua tendência de se autonomizar e a desestruturar do exterior “a economia dita real”.

A relação entre capital produtivo versus capital financeiro já não existe mais, afirma Vercellone. Segundo ele “insistir nas finanças como se se tratasse de um poder autônomo quase absoluto, tende a fazer esquecer a compenetração entre capital financeiro e capital produtivo e as outras causas socioeconômicas que estão na origem da crise sistêmica do capitalismo contemporâneo”.

Esclarecendo melhor. O que agora precisa ser compreendido é que a financeirização não é mais um processo externo à produção. Constitui, ao contrário, sua forma econômica real. “É, portanto, estreitamente conexa às transformações produtivas e do trabalho das últimas décadas, o que definimos como o afirmar-se de um ‘capitalismo cognitivo’”, diz Roggero.

Nesse sentido, “a financeirização – longe de contrapor-se à economia real – é a forma da economia capitalista apta para exercer o comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo”, afirma Gigi Roggero; ou seja, a financeirização da economia já se configura como um novo estágio de apropriação do capital pelo trabalho imaterial que se realiza. Aí está o cerne da crise.

Na visão do economista francês Yann Moulier Boutang, “o capitalismo, com efeito, está em crise. Uma formidável crise de transição; a certidão de óbito da economia fordista foi assinada pela falência da General Motors. A crise financeira assinala, como de hábito, esta mutação acelerada. A capitalização na Bolsa da GM caiu de 10 bilhões de dólares em 2007 para zero dólar em março de 2009, enquanto a da Google atravessa a crise a 100 bilhões de dólares”. “A economia material, a mais material, está em crise total”, destaca.

Na opinião de Andrea Fumagalli, economista, o que é preciso compreender é que “atualmente os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle de espaços externos aos negócios tradicionais”.

O trabalho no centro da crise

Atente-se para a sofisticada análise de Vercellone: “A própria noção de capital imaterial é um sintoma da crise da categoria de capital constante que se afirmou com o capitalismo industrial, em que o capital constante se apresentava como trabalho morto, cristalizado nas máquinas, impondo ao trabalho vivo sua dominação. Malgrado a torção introduzida por termos, como capital intelectual, capital intangível ou ainda capital humano, este capital é, pois, na realidade, o que nós chamamos a intelectualidade difusa ou ainda a inteligência coletiva. Este capital escapa, portanto, a toda medida objetiva”.

(...) “A valoração do capital intelectual e, portanto, do trabalho não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda. Isso contribui para explicar por que as finanças desempenham um papel chave no capitalismo cognitivo. Mas este fato contribui também para explicar por que a sucessão de crises financeiras e econômicas graves, à qual assistimos, não foi simplesmente o produto da má regulação das finanças”.

Em suma, “a financeirização transformou-se na forma adequada e perversa de um sistema que se reproduz na captura do comum. ‘Comum’ aqui entendido como algo que é continuamente produzido pela cooperação do trabalho/saber vivo. E o comum tem um duplo estatuto: é prática cooperativa de liberdade e igualdade, mas é também aquilo que é continuamente desfrutado pelo capital”, destaca Roggero.

O raciocino de Vercellone e de Roggero acerca da natureza do capital financeiro é acompanhado por Fumagalli: “com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de valorização perde todas as unidades de mensuração quantitativa ligadas à produção material. Essas medições eram, de certa forma, definidas pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, mensurável com base na tangibilidade da produção e no tempo necessário para a produção. Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a ser desencadeada em diferentes formas de trabalho ou mão de obra que cortam as horas de trabalho efetivamente verificadas para coincidir cada vez mais com o tempo geral da vida.

Segundo ele, “atualmente, o valor do trabalho ou da mão de obra está na base da acumulação capitalista e é também o valor do conhecimento, dos afetos e das relações, do imaginário e do simbólico. O resultado dessas transformações biopolíticas é a crise da medição tradicional do valor do trabalho ou da mão de obra e, junto com ela, a crise da forma do lucro. Uma solução ‘capitalista’ possível era a medição da exploração da cooperação social e do intelecto geral por meio da dinâmica dos valores de mercado. Dessa maneira, o lucro era transformado em renda, e os mercados financeiros se tornaram o lugar onde o valor do trabalho ou da mão de obra era determinado, transformado num valor financeiro que não é outra coisa do que a expressão subjetiva das expectativas de lucros futuros gerados por mercados financeiros que, dessa forma, reivindicam renda”.

“A atual crise financeira, destaca Fumagalli, assinala o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma unidade de medição do trabalho ou da mão de obra, ao menos no atual fracasso do capitalismo contemporâneo em termos de governança cognitiva. Consequentemente, a crise financeira é também uma crise da valorização capitalista”.

O centro da nova economia: o imaterial

A leitura proposta por Vercellone, Boutang, Roggero, Cocco – na revista do IHU –, e também por Andrea Fumagalli é de que se faz necessário a compreensão de que a atual crise está intimamente ligada a uma radical mutação do capital: a emergência da economia do imaterial e do trabalho imaterial. O imaterial está ancorado no centro da nova economia, sendo que o principal elemento que caracteriza a economia do imaterial é a passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo.

Impulsionada pela revolução informacional, a economia transfere importância, em termos de valorização, para os ativos imateriais, aqueles relacionados ao universo da intangibilidade, ou seja, dizem respeito ao conhecimento, a ideias, a conceitos e ao relacionamento entre pessoas. Esses ativos são recursos cada vez mais utilizados no processo produtivo.

A economia do imaterial ativa, por sua vez, cada vez mais, o trabalho imaterial, no qual o conhecimento, a comunicação e a cooperação [Negri/Hardt] – recursos imateriais – tornam-se decisivos no processo produtivo. Sob a hegemonia do trabalho imaterial “a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medida pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, e sim a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e que se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais” - Hardt, Negri, 2005: 156 – Multidão (2).

É nesse contexto que deve ser compreendida a afirmação de Roggero, de “que a financeirização – longe de contrapor-se à economia real – é a forma da economia capitalista apta ao comando sobre o trabalho cognitivo e sobre a produção do saber vivo”, ou ainda a de Vercellone quando diz que “a valoração do capital intelectual e, portanto, do trabalho não pode, pois, ser senão a expressão completamente subjetiva da antecipação dos lucros futuros efetuada pelos movimentos financeiros que, dessa maneira, se apropriam de uma renda”.

O que urge compreender é que a sociedade industrial ainda é preponderante, mas a essência da forma de organizar a sua produção é empurrada cada vez mais para a periferia do núcleo propulsor do novo capitalismo. A forma de organizar o trabalho, as relações econômicas e sociais da sociedade industrial estão sendo deixadas para trás.

A irrupção da economia imaterial ainda é vista com reservas, uma vez que convive com a sociedade industrial. Cabe lembrar aqui Marx. Quando ele estudou o trabalho industrial e a produção capitalista eles representavam apenas uma parte da economia inglesa, uma parte menor das economias alemã e de outros países europeus e apenas uma fração infinitesimal da economia global. Em termos quantitativos, a agricultura certamente ainda era dominante, mas Marx identificava no capital e no trabalho industrial uma tendência que funcionaria como motor de futuras transformações.

O mesmo está acontecendo agora. O capitalismo industrial cede lugar ao capitalismo cognitivo e isso apresenta profundas implicações. Segundo Cocco, “no capitalismo cognitivo globalizado, o trabalho foi ‘saindo’ do chão de fábrica, descolando-se do emprego e, com isso, perdendo sua capacidade de funcionar como padrão de mensuração (tempo de trabalho, custo do trabalho) das atividades produtivas e de consumo. (...) Saindo do chão de fábrica, o trabalho se difunde nos diferentes estatutos do emprego (informal, precário, temporário) e na vida (quando temos um emprego é nossa alma que é mobilizada e quando não temos um emprego, trabalhamos por conta própria, como prestador de serviço e/ou como consumidor). A produção passa a se organizar dentro das próprias redes de circulação”.

Portanto, destaca Cocco, “o que caracteriza o capitalismo cognitivo, financeiro e globalizado é a desconstrução da relação salarial como operador do processo de produção e, ao mesmo tempo, sua manutenção como convenção extenuada de reconhecimento – necessariamente insuficiente – do trabalho".

(...) "A crise, como bem sabemos, tem em seu bojo esta contradição: o trabalho é cada vez mais difuso e o salário cada vez mais estilhaçado no espaço e no tempo: só a relação de débito-crédito permitiu deslocar esse impasse para frente e manter os níveis de consumo necessários à realização dos lucros e a manter a pressão das lutas sociais, até a bolha do subprime estourar. A crise do padrão de valor baseado no trabalho assalariado (no tempo de trabalho) acaba aparecendo pelo que é: um subvalor, uma desclassificação do valor”.

Com efeito, afirma Cocco, “a crise permite (ou até obriga) uma ressignificação da relação entre consumo e produção que passa necessariamente pelo enfrentamento do enigma do valor, ou seja, pela redefinição da convenção que junta dialeticamente trabalho e emprego, trabalho e capital”.

“É nesse sentido – diz ele, em concordância com os autores abordados anteriormente –, que a crise é crise da ilusão financeira. Só que a ilusão não está do lado financeiro, mas daquele de uma produção real que não tem mais um padrão objetivo de valor e de exploração (o tempo de trabalho) de referência e o procura nas finanças. As finanças ofereciam uma dupla – ilusória – solução: a manutenção dos níveis de consumo por meio da expansão do crédito e a afirmação de um padrão de valorização atrelado ao processo de titrização (o fato de fatiar os ativos de crédito e espalmá-los no sistema bancário mundial, multiplicando as transações a partir de uma mesma e única operação de crédito-débito), que sustentava essa expansão do crédito”.

“Por trás da ‘ilusão’ financeira há algo ainda pior e mais ilusório: a mistificação da acumulação capitalista organizada diretamente sobre a cooperação social e suas dinâmicas cognitivas, quer dizer, sobre um trabalho que corresponde às formas de vida que produzem formas de vida, diretamente dentro de uma cooperação social que não cabe mais na relação salarial. A crise obriga a pensar outra convenção. Dito de outra maneira, os conflitos que atravessam a crise dizem respeito à constituição de outras convenções, de outra sociedade e de outra economia”, destaca Cocco.

Para Boutang, “a passagem do capitalismo cognitivo, constitui uma metamorfose (...) uma sacudida. A partir de 1975, a crise acompanhou uma imaterialização crescente da economia, isto é, um deslocamento do valor econômico para a captação das externalidades, desta vez positivas. No capitalismo cognitivo emerge o trabalho mais produtivo, criador de riquezas e suscetível de um novo modo de apropriação que é a cooperação dos cérebros conectados em rede numérica e a inteligência. Esta última é tanto mais valorizada quanto a revolução numérica: codifica as funções repetitivas realizadas pelo cérebro e as desvaloriza em proveito da repetição inventiva (Tarde)”.

O caráter da transformação, diz Boutang, é que “para explorar o que eu chamo de cognitariado ou de cibertariado, é preciso liberar espaços comuns e promover a gratuidade. Em síntese, fazer viver espaços comunistas que são também limites internos sérios às regras clássicas de propriedade privada. A lógica livre, o gratuito, o modelo Google, são uma ilustração dessa mistura destoante de comunismo do capital e de lucrabilidade excepcional em relação ao velho capitalismo industrial que é dinossaurisado (= tornado semelhante aos dinossauros). Os bens como conhecimentos, ou cognitivos, que determinam cada vez mais a riqueza efetiva da humanidade, apresentam por sua natureza as características dos bens públicos. Sua transformação em bens mercadológicos é cada vez mais difícil. O capitalismo cognitivo não é somente o novo estandarte da modernidade (como o capitalismo industrial o foi em relação ao escravagismo da economia de plantação), ele faz a leitura de uma visão radicalmente diversa da humanidade”.

Agora, diz Boutang, “no denominador do endividamento dos agentes econômicos, isto é, em garantia do caráter reembolsável do empréstimo, já existe faz horas outra crise do que a base miserável do capitalismo industrial produtor de gás carbônico ou de petróleo; há a polinização das biotecnologias, das nanotecnologias, o poder produtivo das multidões e não mais aquela das massas seriais do período moderno fordista. O capitalismo industrial havia descoberto o poder do povo, como a armada revolucionária se comprovara mil vezes mais eficaz do que a armada do antigo regime. Pois bem, o poder das multidões trabalhando em rede numérica marca novamente o salto para outra ordem (como diria Pascal)”.

“Não é por acaso, lembra Roggero, que círculos próximos ao The Economist tenham proposto recentemente a fórmula ‘comunismo do capital’. É, em outros termos, a captura e a transfiguração do comum no signo da renda, entendida – marxianamente – como o poder de apropriação de uma parte crescente dos valores criados pela cooperação social sem uma intervenção direta do capital”.

É bom esclarecer: “quando falamos de cognição do trabalho – destaca Roggero –, não entendemos a intelectualização linear da força de trabalho como uma dinâmica progressiva que conduzirá objetivamente à libertação do capitalismo ao desaparecimento do trabalho industrial. A cognição é, em vez disso, um processo de transformação complexa, filigrana de ‘iluminação geral’ por meio da qual se pode ler toda a composição do trabalho e os novos processos de hierarquização”.

Segundo Roggero, “não é, realmente, a mesma coisa trabalhar numa fábrica ou num centro de pesquisa universitário. Todavia, é comum a linha em torno da qual se organiza a nova divisão cognitiva do trabalho, ou seja, a finalização à produção de saberes, à inovação permanente e à valorização do desenvolvimento tecnológico. Nas novas coordenadas espaço-temporais globais, também a clássica imagem da divisão internacional do trabalho – calcada na dialética entre centro e periferia – entra em crise: de São Paulo a Johanesburgo, de Xangai a Berlim, de Hyderabad ao Vale do Silício se pode observar – com gradações extremamente diferentes – todo o espectro das formas contemporâneas da produção e do trabalho”.

Em resumo, diz ele, “o capital deve renunciar à tendência de organizar o ciclo produtivo num patamar hierárquico superior, para limitar-se a capturar os processos de auto-organização da cooperação social, ou então, àquilo que chamamos a produção do comum. Se pensarmos, para limitar-se a um exemplo conhecido, na internet, o que é a web 2.0, senão a captura capitalista de um processo cooperativo que não pode mensurar e que a excede estruturalmente?”.

Os autores insistem no fato de que na nova forma de se organizar o trabalho e ativá-lo, busca-se a reconquista da parte do trabalho vivo que o desenvolvimento histórico do capitalismo – capitalismo industrial – tentou aniquilar. Ao capitalismo cognitivo interessa a mercadoria do corpo não apenas como unidade biológica, mas como corporalidadade social, ou seja, aquilo que ele reúne em si, como parte integrante de uma capacidade produtiva maior, que se reúne no general intellect (Marx) – o cérebro social.

São o conhecimento, a competência linguística, a cooperação singular que agregam valor ao processo produtivo. Como destaca Vercellone, “a maior transformação que, após a crise do fordismo, marca uma saída do capitalismo industrial, encontra-se precisamente no forte retorno da dimensão cognitiva e intelectual do trabalho”.

A nova forma de organizar o trabalho colocou no centro do processo produtivo os recursos imateriais. A lógica do capital é apropriar-se desses recursos que se desenvolvem como qualidades subjetivas e subordiná-las ao seu projeto de acumulação. O caráter “revolucionário” do trabalho imaterial, segundo os autores citados e outros – Hardt, Negri, Virno e Gorz (3) –, repousa sobre o fato de que as formas centrais de cooperação produtiva já não são criadas apenas pelo capitalista como parte do projeto para organizar o trabalho, mas, emergem das energias produtivas do próprio trabalho, ou seja, o sujeito do trabalho joga um papel decisivo como parte integrante da própria forma de organizar o trabalho.

É por aqui que se podem lançar pistas de um projeto emancipatório, de uma resposta biopolítica ao biopoder do capital.

O “comum” como base da exploração capitalista e de um projeto libertário

Sob a perspectiva do sujeito do trabalho no capitalismo cognitivo – na sociedade pós-industrial –, “devemos entender a produção de valor em termos do comum, assim também devemos tentar conceber a exploração como a expropriação do comum. Em outras palavras, o comum tornou-se o lócus da mais-valia. A exploração é a apropriação privada de parte do valor produzido como comum, ou de todo ele. As relações e comunicações produzidas são comuns por sua própria natureza, e no entanto o capital consegue apropriar-se em caráter privado de parte de sua riqueza" – HARDT e NEGRI, 2005: 198-199 (4).

Ou seja, sob a hegemonia do trabalho imaterial, a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medido pelo tempo de trabalho individual ou coletivo e, sim, a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais. As formas centrais de cooperação produtiva já não são criadas apenas pelo capitalista como parte do projeto para organizar o trabalho, mas emergem das energias produtivas do próprio trabalho. O comum aqui, constitutivo ao trabalho imaterial, é a produção de comunicação, de relações sociais e de cooperação, aspectos esses de difícil mensuração, porque partilhados.

A nova forma de organizar a produção, tendo em sua base o trabalho imaterial, ativa uma cooperação subjetiva que já se encontra presente nos trabalhadores, resultante do seu saber vernacular, do conhecimento acumulado, do seu trânsito social, das relações que se constroem no cotidiano. Essas qualidades subjetivas ativadas singularmente, mas também coletivamente, enriquecem o processo produtivo, que vai se fazendo sempre mais no modo cooperação – junção comum das potências produtivas de uma multiplicidade de sujeitos. É desse amálgama que resulta o comum, aquilo que é próprio da singularidade da cada um, mas que assume um caráter de identificação com o outro.

É no comum que se encontra a base de exploração, mas ao mesmo tempo, a subjetividade de resistência que se configura na multidão. O capital investe na bios do trabalhador e, também por isso, se afirma que a resposta à dominação pode ser biopolítica – as mesmas capacidades ativadas pelo capital podem voltar-se contra ele. A possibilidade do singular, daquilo que é de cada trabalhador, somar-se à singularidade do outro trabalhador, está no comum. Há elementos da singularidade que são comum e o the commun é a argamassa da multidão, daquilo que um dia foi a classe. A classe, no caso, transforma-se em multidão, porque a possibilidade de superação e oposição ao capital far-se-á cada vez mais pela capacidade dos trabalhadores – todos os trabalhadores e não apenas os assalariados – tornarem comum, num projeto coletivo, os recursos imateriais que hoje são apropriados e/ou expropriados pelos donos do capital.

A crise ecológica. A irracionalidade do produtivismo socialista ou capitalista está no banco dos réus
Segundo Yann Moulier Boutang, a ecologia representa um dos níveis da presente crise. “A crise é mundial num tríplice nível: social, ecológico e cognitivo”. E “o nível ecológico é o mais visível. Ele começa a inscrever-se no horizonte imediato dos consumidores, dos produtores, mas também dos viventes enquanto tais e, mais simplesmente, na ideologia e na opinião que se pode ter sobre o futuro em longo prazo do planeta azul. O diagnóstico é simples: o capitalismo (...) descarregou sistematicamente os custos reais numa ‘natureza’ supostamente ilimitada e sem preço, no sentido trivial do termo. Não sem preço, então, ou fora de preço, ou a um preço altíssimo, mas sem preço como aquilo de que se pode dispor sem ter vergonha, sem jamais pagar o que quer que fosse. Aparece, agora, que esses traços esboçados chegam numa perspectiva de longo prazo e que as gerações futuras correm o risco de pagar os custos; o pior é que o próprio habitat (a biosfera) está em causa. Por não ter levado em conta as externalidades negativas do capitalismo, que se apresenta todo ‘racional’ e ‘weberiano’, o mesmo devastou o planeta de maneira selvagem. A irracionalidade do produtivismo socialista ou capitalista está atualmente no mesmo banco dos réus”.

A irreconciliação entre o modelo ocidental de desenvolvimento e a ecologia tem sido uma das nossas atenções na análise da realidade. E a crítica a esse modelo sempre procurou desvendar, entre outros, esse limite ecológico, que, na realidade, já vinha sendo levantado desde, ao menos, os anos 1960. Se há um eixo em torno do qual se produziu um (rápido) crescimento de consciência na última metade do século passado, esse sem dúvida foi a questão ecológica. No entanto, hoje, mais do que nunca, necessitamos imediatamente passar da consciência à ação. A frustração parece residir na incapacidade de agir – ou ao menos na velocidade pretendida e exigida – diante dessa urgência.

O Relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), divulgado no começo de 2007, foi inequívoco em apontar a responsabilidade da ação humana na mudança climática. E, de lá para cá, os novos e sempre mais abundantes pesquisas e estudos têm confirmado essa evidência. E um imperativo vai se impondo com crescente força: “Ou mudamos ou morremos”, como afirma Leonardo Boff.

As circunstâncias que envolvem a próxima Cúpula do Clima, a ser realizada em Copenhague, em dezembro próximo, para estabelecer padrões e política que reduzam a emissão de gases de efeito estufa, assim como as políticas conduzidas pelo governo Lula especialmente nos campos da energia (hidrelétricas, usinas nucleares) e da agricultura (monocultura, agronegócio) – e que afetam diretamente a questão ambiental – são demonstrativas desse descompasso com as novas exigências do tempo presente.

Essas exigências implicam, certamente, mudanças no modo de consumo. Entretanto, para além disso, transformações no paradigma de desenvolvimento se fazem necessárias. Esse debate precisa, por um lado, fazer a crítica do atual modelo, no sentido de apontar os limites do atual modo de organização, produção e consumo e, por outro, desenvolver uma economia que seja capaz de “reconhecer os sérios limites naturais à expansão das atividades econômicas e rompa com a lógica social do consumismo”, como destaca o economista José Eli da Veiga, professor da USP.

A crítica parte da constatação de que “vivemos em um planeta finito e com recursos naturais igualmente finitos. No entanto, o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos. É evidente que este modelo não funciona por muito tempo.” Ao mesmo tempo, a principal limitação do cenário atual consiste nisso: no “fato de estarmos regidos pela lógica dominante da possibilidade de crescimento infinito.

Toda a nossa economia, todo o nosso modelo mental e, consequentemente, todas as nossas criações no plano social e econômico se baseiam em uma possibilidade que não existe, que é a de o crescimento reger todo o nosso caminhar”, como afirma Paulo Durval Branco, em entrevista para a Revista IHU On-Line n. 295, de 01 de junho de 2009, dedicado ao tema da Ecoeconomia, cuja leitura contribui para o aprofundamento desta questão.

Em consequência, nos últimos anos, de maneira sempre mais clara, impôs-se a realidade da insuficiência planetária para dar conta do consumo atualmente existente. A chamada “pegada ecológica”, que mede o “peso” ambiental de nosso modo de vida, está acima da capacidade regenerativa da bioesfera.

Na impossibilidade de continuar a trilhar esse caminho, “precisamos construir uma nova sociedade, com um novo modelo econômico. (...) não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária”, argumenta Henrique Cortez.. E finaliza dizendo que está em questão “o que realmente deve ser entendido como desenvolvimento, como deve ser medido e incentivado”.

Segundo Paulo Durval Branco, a economia ecológica se apresenta como alternativa “porque ela parte de premissas corretas. Uma delas é a impossibilidade do crescimento como um retorno exclusivo do processo econômico. Então, a ecoeconomia supõe o sistema econômico como parte de um sistema maior, que é a biosfera”.

O que, portanto, está cada vez claro, é que o capitalismo industrial se choca com coerções ecológicas cada vez mais incontornáveis. “A economia material, a mais material, está em crise total. Seu modelo social é obsoleto e repousa sobre uma deslocalização violenta. Ecologicamente, ela está na ponta do rolo compressor, pois o mundo industrial anda no muro absoluto com sua generalização na China, na Índia, no Brasil, na Nigéria, na África do Sul, no México. Energia carbo-fóssil, mas também matéria-prima; poluição dos solos com uma destruição da biomassa, dos mananciais aquíferos, poluição alimentar com uma alimentação totalmente agroquímica há 30 anos, que começa a produzir os seus efeitos”, destaca Boutang.

A crise ecológica marca, segundo Carlo Vercellone, “na escala planetária, os limites estruturais do modelo liberal produtivista. Desse ponto de vista, uma política de saída da crise não pode, pois, de nenhuma forma, basear-se exclusivamente num plano de retomada do consumo privado e dos negócios privados. Ela requer, antes, uma verdadeira socialização do investimento nas atividades que permitam repensar o urbanismo, a agricultura, a promoção da economia de energia e que, por natureza, escapam, em grande parte, à lógica comercial e mercadológica”.

Vercellone traz para o debate outro elemento de suma importância – evidente, mas desprezado: o de que a lógica mercadológica é incapaz, no quadro do capitalismo cognitivo, de resolver os problemas ambientais.

Neste contexto de crise, é preciso aprender com as tradições originárias milenares dos povos indígenas da América Latina. Segundo a análise do índio aymara boliviano Fernando Huanacuni, “nós pensamos que o socialismo, o comunismo e o capitalismo são iguais. Porque só pensam no humano, são individualistas, são homogeneizadores e materialistas”. Os sistemas ocidentais – socialismo, comunismo e capitalismo –, forjados ao longo dos últimos 150, 200 anos, estão em crise. E isso porque a lógica, a racionalidade que lhes dá sustentação está em crise. Já não dão mais conta dos novos desafios porque todos eles têm a mesma matriz em comum.

Como prossegue Fernando Huanacuni, nenhum deles leva em consideração o meio ambiente: “Quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos. Comunidade é tudo: animais, plantas, pedras. E não para vender. Por exemplo, no governo boliviano, existem marxistas. Bom, nosso país tem uma reserva muito grande de lítio e sua exploração é alvo de muitas especulações. O lítio pode deixar a Bolívia poderosa. Mas o mundo indígena não quer explorar o lítio. O marxista quer, tem somente um pensamento material. Nós preferimos não explorar porque é importante para o equilíbrio da vida. Mas o marxista não pensa assim. Para mudar o sentido de um rio, o marxista vai colocar tratores e pronto. O indígena vai dizer ‘não, calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos ancestrais e vejamos se é bom’. O marxista vai dizer ‘claro que é bom, aqui vamos produzir’. Ele não vê importância no espiritual, não o sente. Por isso ainda não está entendendo”.

Essa análise do indígena boliviano corrobora uma das teses apresentadas na presente análise: a de que insistir nas propostas de matriz keynesiana e marxista não nos ajudam a sair da crise, porque são mais parte do problema do que da sua solução, uma vez que bebem na mesma fonte: o desenvolvimento econômico como saída para a crise. A crise ecológica já não comporta mais soluções que a ignorem.

Para finalizar, duas observações: a primeira, no contexto da crise mundial e da emergência do capitalismo cognitivo, vale a pena ler (ou reler) o último artigo escrito em vida por André Gorz, onde já analisava com argúcia singular os movimentos subjacentes aos acontecimentos que desembocariam na mais recente crise do capitalismo; a segunda, viemos chamando a atenção para o fato de que o tratamento dado à questão ecológica se tornou, hoje, central para um desenvolvimento sustentável. De uma ou de outra maneira ela se impõe e não pode mais ser escamoteada sem consequências, uma vez que ela se tornou uma questão econômica, social e política.

A crise e os fundamentos para um projeto emancipatório

É preciso se desfazer de qualquer ilusão. O retorno à sociedade industrial e a sua promessa do pleno emprego não retornará mais, tampouco o retorno à sociedade fordista é desejável tendo presente a crise ecológica.

Como destaca Roggero, é preciso “libertar-se de qualquer tentação nostálgica, para a assim chamada “economia real” ou para os estados-nação. Essa é uma resistência conservadora. O que nos interessa é, ao contrário, uma resistência transformadora. Não penso que seja possível um New Deal, como nos anos 1930. O sistema é irreformável. Então, a questão é um New Deal das lutas e dos movimentos que se ponha num plano imediatamente constituinte ou de construção de um novo welfare do comum, o commonfare, ou seja, uma reapropriação da riqueza social e das instituições atualmente congeladas na dialética entre público e privado. Em outros termos, o problema não é devolver a economia para as mãos do Estado, mas reapropriar-se também das instituições financeiras, determinando comando e decisão coletiva dentro delas próprias”.

Segudo Roggero, “acabou finalmente a ideia de que o socialismo tem a tarefa histórica de salvar o capitalismo de suas crises cíclicas, superando dialeticamente a endêmica irracionalidade por meio de uma racionalidade superior do desenvolvimento, ou, em outros termos, encarregando-se de realizar as promessas de progresso que o capitalismo não está estruturalmente em condições de manter”.

Portanto, diz ele “concluiu-se, felizmente, a época na qual socialismo e capitalismo se espelhavam na presumida objetividade das hierarquias do trabalho, da técnica e da produção. O ‘comunismo do capital’ deve capturar continuamente a produção do comum. Mas o comum não é realmente a inversão dialética e especular do ‘comunismo do capital’. Ele é, ao mesmo tempo, a livre organização da potência do trabalho vivo, e a destruição dos dispositivos da captura capitalista. O comum não está inscrito no progresso racional da história, mas nos conflitos e nas práticas cooperativas da nova composição do trabalho global”.

“Pensamos que atualmente não há condições de implementar uma espécie de New Deal institucionalizado (como foi possível na década de 1930), isto é, um New Deal resultante de uma conciliação política entre o trabalho e o capital”, afirma Andrea Fumagalli, corroborando o pensamento de Roggero.

Segundo Fumagalli, “segue-se que podemos nos deparar com duas soluções possíveis: a primeira é um aumento na instabilidade geopolítica internacional (rumo a uma nova guerra global?), especialmente a fim de definir um novo equilíbrio hierárquico econômico global, em que os EUA perderão o controle unilateral das finanças e da tecnologia. A segunda é que um New Deal, que se baseie numa forma nova de distribuição de renda (por exemplo, renda básica) e ultrapasse a dicotomia entre propriedade privada e estatal rumo a uma propriedade ‘comum’, seja imposto pela força do movimento social, isto é, um New Deal a partir de baixo. Uma terceira oportunidade pode residir no desenvolvimento de uma nova trajetória econômica, técnica e social, que normalmente é chamada de ‘economia ecológica’, capaz de resolver qualquer problema com um salto forte no futuro”.

Para o professor da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Andrea Fumagalli, “essa crise pode ser uma grande oportunidade para os movimentos sociais globais. A razão disso reside no fato de que, no capitalismo cognitivo, não há espaço para uma reforma política institucional que seja capaz de reduzir a instabilidade que o caracteriza. Nenhum New Deal inovador é possível a não ser aquele impelido pelos movimentos sociais e pelas práticas da institucionalidade autônoma mediante a reapropriação de um sistema de bem-estar saqueado por interesses privados e congelado na política pública”.

Continua ele: “algumas das medidas que podem ser identificadas, desde a regulamentação dos salários baseada na proposta de uma renda básica até a produção com base na livre circulação do conhecimento, não são necessariamente incompatíveis com os sistemas de acumulação e subsunção do capital, como sugeriram vários teóricos neoliberais. De qualquer modo, novas campanhas de conflito social e reapropriação da riqueza comum podem ser iniciadas com a finalidade de solapar a própria base do sistema produtivo capitalista, isto é, a coerção do trabalho ou da mão de obra, a renda como ferramenta de chantagem e dominação de uma classe sobre outra e o princípio da propriedade privada dos meios de produção (ontem eram as máquinas, hoje também é o conhecimento). Em outras palavras, podemos afirmar que no capitalismo cognitivo uma possível conciliação social de origem keynesiana, mas adaptada às novas características do processo de acumulação, é apenas uma ilusão teórica, sendo inviável de um ponto de vista político”.

Para Fumagalli, “estamos num contexto histórico em que a dinâmica social não deixa espaço para o desenvolvimento de práticas reformistas e, acima de tudo, de ‘teorias’ reformistas. O que se segue disso é que, percebendo que é a práxis que orienta a teoria, só o conflito e a capacidade de criar movimentos multitudinários podem permitir – como sempre – o progresso social da humanidade. Só o reavivamento de conflito social forte supranacional pode criar as condições para superar o estado atual de crise. Deparamo-nos com um aparente paradoxo: para tornar possíveis novas perspectivas reformistas e a estabilidade relativa do sistema capitalista, é necessária uma ação conjunta de natureza revolucionária, capaz de modificar os eixos sobre os quais se baseia a própria estrutura de comando capitalista”.

Segundo ele, “precisamos, portanto, começar a imaginar uma sociedade pós-capitalista, ou, melhor ainda, a reelaborar a batalha pelo bem-estar [welfare] na crise como organização imediata das instituições do comum. Isso não elimina definitivamente as funções da mediação política, mas remove-as definitivamente das estruturas representativas e absorve-as no poder constituinte de práticas autônomas. Em outras palavras, estamos lidando com a transformação do “comunismo do capital” no “comunismo do intelecto geral” como força viva da sociedade contemporânea, capaz de desenvolver uma estrutura de “estar-comum” [commonfare] e de estabelecer-se como uma condição efetiva e real da opção humana pela liberdade e igualdade. Entre o “comunismo do capital” e as instituições do comum não há especulação ou relação linear de necessidade: trata-se, em outras palavras, de reapropriar-se coletivamente da riqueza social produzida, rompendo os dispositivos da subsunção e do comando capitalista na crise permanente”.

Na opinião de Giuseppe Cocco, na linha do raciocínio de Roggero e Fumagalli trata-se de se desfazer das ilusões da sociedade industrial. A resposta à crise não está em retomar o programa de uma sociedade em vias de esgotamento. Segundo Cocco, “o aumento do desemprego se transforma em um drama social – inclusive nesse caso da crise – porque o ‘emprego’ continua sendo a forma ‘convencional’ de reconhecimento do trabalho e, por consequência, de determinação das condições de acesso à renda (isto é, ao salário) e ao próprio sistema de proteção social, ao passo que o trabalho se mobiliza de outras formas”.

Em segundo lugar, diz ele, “a dimensão sistêmica da crise do capitalismo globalizado e financeiro tem sua origem exatamente nesse descompasso crescente. Por um lado, a vigência da ‘convenção’ dominante que continua a identificar o trabalho ao emprego (assalariado, de tipo industrial), portanto, a subordinar a distribuição de renda à forma-salário (ter um emprego); por outro, no capitalismo que valoriza os elementos cognitivos (design, marketing, logística) dos bens, o trabalho investe a vida: nossas atividades de consumo (nos hipermercados, na internet, nos caixa-eletrônicos dos bancos), de comunicação (nos transportes e nos telefones celulares) e de produção (no chão de fábrica e nos call centers, onde é nossa alma que é explorada)”.

“Ou seja, afirma Cocco, por um lado, a convenção dominante apenas reconhece o trabalho que acontece sob a forma de emprego e nós temos a impressão de que o trabalho diminui, porque pensamos na ‘transação’ salarial que é objeto de uma contínua diminuição; por outro, o trabalho, que se difunde na sociedade e confunde com a própria vida, não é reconhecido, a não ser nos estilhaços sem fim da fragmentação social, do trabalho precário. Eis a crise do subprime: uma força de trabalho precária e mal paga de jovens e imigrantes precisa de moradia de qualidade para acrescer o que a ideologia neoliberal chamou de ‘empregabilidade’, quer dizer, seu ‘capital social’. Só consegue pelo mercado, isto é, comprando uma casa que sua renda não alcança pagar e deve, pois, recorrer a um crédito cujas prestações não consegue pagar e, enfim, a um empréstimo para pagar o empréstimo inicial (subprime): o debito já é impagável”.

Para Cocco, “a contradição fundamental é mesmo aquela desenhada pela difusão social do trabalho vivo e a permanência da convenção do emprego. Por um lado, o trabalho vivo, nossa própria vida, é mobilizado e essa mobilização não é reconhecida: a distribuição de renda continua atrelada ao fato de ter ou não um emprego. Assim, nós precisamos investir na qualidade produtiva dessa ‘nossa’ vida, mas isso é ao mesmo tempo considerado um “custo” que deve ser eliminado”.

Para ele “a resistência sindical é fundamental para afirmar que não cabe aos trabalhadores e aos pobres “pagar” por essa crise. Os sindicatos dos trabalhadores têm nessa conjuntura uma importância estratégica, juntamente aos outros movimentos sociais. Mas, essa dimensão será realmente estratégica se conseguirão juntar a defesa do emprego com a defesa da distribuição de renda independentemente do emprego”.

“Nesse sentido, afirma Cocco, a reabertura de um horizonte pós-capitalista traz, em seu cerne, a necessidade de se pensar a democratização, a conquista pelo trabalho vivo, das próprias finanças. Se os operários de fábricas visaram conquistar o palácio de inverno e socializar os meios de produção (a revolução russa), os trabalhadores imateriais hoje devem conquistar (quer dizer constituir) a dimensão comum, radicalmente democrática, da moeda e da ‘empresa’, a começar pelos fundos de pensão!”

Para Boutang, na perspectiva de um projeto emancipatório, há atualmente três fontes do pensamento radical a combinar:

a) a tradição revolucionária, muito mais do que a tradição comunista (pois a tradição revolucionária é mais rica, mais variegada, mais estriada, pois ela brota de todas as famílias históricas das diferentes heresias, das diferentes cores de pele;

b) a tradição de libertação (a que provém da luta contra o capitalismo escravagista mercantilista, da luta das mulheres, da luta dos povos mestiços e aborígenes que se exprime na poderosa corrente pós-colonial latino-americana;

c) a tradição ecologista, que tem a vocação de reconstruir a armadura da relação com uma nova racionalidade.

Uma grande tarefa espera a esquerda se ela quiser cumprir o seu papel: romper os velhos paradigmas, ou como destacava Gorz (5) “ousar o êxodo” de suas análises nostálgicas.

Notas:

1 - Esses autores, em sua maioria, provêm da tradição do “operaísmo” italiano. Entre eles, destacamos aqui: Marco Bascetta, Federico Chicchi, Andrea Fumagalli, Stefano Lucarelli, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, Cristina Morini, Antonio Negri, Gigi Roggero e Carlo Vercellone. Giuseppe Cocco.
2 - NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2005;
3 - NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2001; NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2005; GORZ, André. O imaterial. São Paulo: Annablume, 2005; VIRNO, Paolo. Grammaire de la multitude. Quebéc: Conjectures & l’éclat, 2002.
4 - NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 2005;
5 - GORZ, André. Misérias do Presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004.
Fonte:FNDC

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