quinta-feira, 13 de agosto de 2009

EUA - O "mea culpa" do guerreiro frio.

Argemiro Ferreira

Ao morrer em 2005, com 101 anos, o cientista político e diplomata George F. Kennan (sua foto acima é da década de 1940; abaixo, à direita, nos anos 1990) já tinha sido retratado como um dos “cinco sábios” que construiram o mundo pos-II Guerra Mundial (os outros eram Averell Harriman, Dean Acheson, John J. McCloy, Charles Bohlen e Robert Lovett). Foi clara a influência dele no rumo da política externa dos EUA e da guerra fria mas teve o mérito incomum de reconhecer os erros cometidos (mais sobre ele AQUI).

Com pouco mais de 40 anos de idade, em seguida à vitória aliada contra o eixo nazi-fascista e aos ataques atômicos ao Japão, ele concebeu a estratégia do containment – a contenção global do comunismo em qualquer parte do mundo, por meios políticos, diplomáticos e ações da espionagem (AQUI, um texto do Departamento de Estado sobre a teoria). Isso levaria à criação do setor de operações clandestinas da CIA, que derrubou governos e eliminou governantes e líderes pelo mundo).

Kennan julgava-se mais intelectual (amante da poesia e da ficção) do que homem de ação, mas entrou para a história como conspícuo guerreiro frio – um dos primeiros. Isso se deu em parte devido ao despacho diplomático de 8.000 palavras (conheça-o AQUI) que enviou de Moscou, onde servia como embaixador adjunto, ao Departamento de Estado, transformado depois num artigo para a revista Foreign Affairs, assinado com o pseudônimo “X”.Kennan_050318
O containment contra a URSS

O despacho chegou a Washington em fevereiro de 1946. Foreign Affairs publicou o artigo, sob o título “As Fontes da Conduta Soviética”, em julho de 1947 (leia a íntegra AQUI). Kennan era então adjunto do embaixador Averell Harriman – que, como ele, achava estarem a diplomacia e o governo dos EUA iludidos sobre a cooperação da URSS, aliada na guerra. Para os dois, era preciso sacudir e alertar os americanos para uma possível ameaça.

O presidente Harry Truman tinha chegado ao poder em 1945, quando a morte de Franklin Roosevelt traumatizou o país. Parte da equipe herdada por ele defendia uma continuação da política rooseveltiana de cooperação com os russos. Outros reclamavam imediata mudança de rumo. Estes apressaram-se então em fazer dos argumentos de Kennan a justificativa intelectual do endurecimento que pregavam.

Walter Lippman, o mais influente analista de política externa na mídia daqueles dias, contestou Kennan. Interpretou seu containment como também fizera a linha dura – sob o ângulo militar. Mais tarde, em entrevistas e nas suas memórias, Kennan admitiria ter sido ambíguo na linguagem ao propor uma contenção firme, vigilante e a longo prazo do “expansionismo russo”. Reconheceu que o texto, ambíguo, de fato comportava aquela interpretação.

Em entrevista à rede pública de TV (PBS), Kennan reafirmou em 1996 (leia AQUI) que não encarava os soviéticos como primariamente uma ameaça militar. “Não eram como Hitler”, disse. Explicou ainda que o “mal entendido” deveu-se ao trecho do artigo no qual dizia que “onde quer que eles (a liderança russa) nos confrontem no mundo, temos de fazer todo o possível para contê-los, e não permitir que se expandam mais” (mais em entrevista AQUI à CNN).
Da doutrina Truman à OTAN

Na entrevista à PBS Kennan admitiu que devia ter acrescentado “não suspeitar que eles tinham qualquer desejo de nos atacar. Isso foi logo depois da guerra e era absurdo supor que iam se voltar contra nós, atacar os EUA. Então não achei que tinha de dar essa explicação. Obviamente eu devia, sim, ter explicado.” Lippman, que o criticou, como também a linha dura, interpretaram o texto da mesma forma.

Century_EndingGraças a isso, o artigo acabou usado para justificar a doutrina Truman (cujo passo inicial foi a ajuda à Grécia e à Turquia, para deter os comunistas), o Plano Marshall que viria em seguida e a criação da aliança atlântica (OTAN, Tratado do Atlântico Norte). E forneceu rationale aos duros. Mas não era a intenção de Kennan, que fez mea culpa em seus livros de memórias, desapontado com os efeitos do que escrevera antes (o da capa ao lado foi o último que publicou, At a Century’s Ending – Reflections, 1982-1995 - mais sobre ele AQUI).

Para ele, a coisa não devia ter sido tão simplista como quis a linha dura. Já na década de 1950 rejeitou a enorme escalada armamentista da guerra fria, tanto das armas convencionais como das nucleares. Era tarde demais, mas Kennan foi contrário à obsessão belicista a que se recorreu a pretexto da “ameaça vermelha”, montando o palco para os excessos anticomunistas (histeria, macarthismo, caça às bruxas, etc).

Depois do alerta para a conduta soviética, enquanto servia sob Harriman na embaixada dos EUA em Moscou, Kennan voltou aos EUA em 1946. Integrou a Escola Nacional de Guerra, a equipe de planejamento de políticas e, em seguida, tornou-se conselheiro do secretário de Estado Dean Acheson. Divergiu do papel militar na Coréia e outras questões até deixar o governo e optar pela área acadêmica – em Princeton.
Conservador, independente, racional

Kennan_050317Ele ainda teve novo período na embaixada dos EUA em Moscou, em 1952, mas breve, de apenas cinco meses (na foto à esquerda, a entrega de credenciais, ao lado de Nikola Shvernik e A.F. Korkin, membros do Presidium do Soviet Supremo). Desta vez como embaixador pleno. Serviu apenas para aumentar seu desencanto com a diplomacia, pois não se entendia com o então secretário de Estado John Foster Dulles, no governo Eisenhower. Amigos e colegas, como o cientista Robert Oppenheimer e outros diplomatas, tornaram-se então alvos do senador Joe McCarthy, sem que Dulles e Eisenhower ousassem defendê-los.

Teve ainda passagem rápida pela embaixada dos EUA na Iugoslávia, no governo Kennedy. De volta à Princeton em 1963, Kennan não mais deixou a Universidade. Suas reflexões posteriores, especialmente em livros (escreveu quase duas dezenas, inclusive suas memórias), expuseram posições ousadas e independentes para sua postura conservadora – como a oposição ao envolvimento no Vietnã.

Na coragem e no bom senso esse conservador soube fugir aos padrões. Assumiu os próprios erros e até chamou atenção para eles. Em momento crítico da história soube perceber que suas advertências tinham sido ouvidas pelas razões erradas e sua percepção do perigo soviético fora levada a extremos. A franqueza usada então foi a mesma com que antes tinha criticado os que confiavam demais na amizade russa.
Blog do Argemiro.

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