Nos últimos meses, nós ambientalistas testemunhamos uma forte ofensiva dos ruralistas em diversas questões ambientais, especificamente com relação à legislação. A ofensiva deu-se em diversas frentes e escalas, o que leva a crer que possa ter sido coordenada. Por exemplo, a Assembléia Legislativa do estado de Santa Catarina votou, em março deste ano, um novo, mais permissivo e manifestamente inconstitucional Código Ambiental para seu estado.
Inconstitucional porque uma lei estadual não pode ser menos rígida que a lei federal, no caso o Código Florestal Brasileiro. E isto apesar da grande tragédia das chuvas em novembro do ano passado no estado, causada, dentre outras coisas, pelo desrespeito às normas ambientais na forma de desmatamentos irregulares e ocupação desordenada das encostas e Áreas de Preservação Permanente. Eu gostaria de saber o que pensam as pessoas novamente atingidas por esta segunda rodada de chuvas sobre o afrouxamento da legislação ambiental.
No Congresso Nacional, há diversas tentativas de ataque, buscando sempre a redução das exigências ambientais em diversos níveis. Ouvimos ainda diversas manifestações, na verdade, patéticas, segundo as quais o Código Florestal e a legislação ambiental como um todo seriam "entraves à produção de alimentos". E as infelizes declarações vieram não apenas de ruralistas, mas também em alguns casos de ministros de Estado, como Reinold Stephanes, da Agricultura. É curioso que este não parece ter sido o caso até agora, dada a fenomenal expansão da agricultura no Brasil nas últimas décadas. Mas querem expandi-la ainda mais rápido. Até que ponto isso pode continuar? São alimentos que servem para erradicar a fome do povo brasileiro? Quais setores nacionais e internacionais ganham com isto? Todas estas questões fundamentais são omitidas do debate.
No Senado (e também na imprensa) tais manifestações foram capitaneadas pela senadora Kátia Abreu, do ex-PFL, líder da bancada ruralista na casa e presidente da Confederação Nacional da Agricultura (aliás, se tal sobreposição de funções e interesses não é impedida formalmente pela legislação, certamente o é pela ética, pois é pressuposto que uma senadora defenda os interesses de todo seu estado e não os de uma classe).
O presidente Lula, como é comum acontecer em questões ambientais, variou sua posição entre omissa, dúbia ou pendente para o lado dos ruralistas, com quem mantém um namoro desastroso para o meio ambiente desde o início de seu primeiro mandato. Já o ministro Minc, entre uma troca de colete e outra, cai cada vez mais no abismo do ridículo em que está se metendo, sem conseguir nada de substancial para a preservação.
Mas o assunto aqui é sobre certas conseqüências deste comportamento dos ruralistas. Já repararam os leitores que, ao contrário dos ambientalistas, os ruralistas apresentam uma enorme coesão ideológica e tática? Felizmente noto algumas mudanças, tímidas ainda, é verdade, mas a coisa está tão feia em relação ao meio ambiente que finalmente começaram a aparecer algumas ações coordenadas entre as principais ONGs ambientalistas.
Já a ação conjunta dos ruralistas é, como tem sido desde sempre na história do país, um grande feito dos líderes do setor, representantes principalmente do grande agronegócio industrial. Conseguem reunir num mesmo saco desde o pequeno sitiante dos estados do Sul ou da Amazônia, até os mega-latifundiários do Centro-Oeste e Norte do país, passando por todos os matizes intermediários (excluídos obviamente os assentados, os membros de comunidades tradicionais e os povos indígenas). Através de mecanismos de identificação ideológica, fazem todos eles enxergarem-se como "ruralistas" e como participantes da agricultura nacional. Nos eventos do setor (feiras, shows rurais e exposições), este comprometimento ideológico é reforçado. Nas variadas palestras e declarações feitas durante esses eventos, a agricultura é sempre cantada em prosa e verso e ressalta-se sua participação no PIB nacional, o volume das exportações etc. Obviamente que nunca é avaliado quem ganha e quem perde em todo o processo.
No curto prazo, as ações negativas dos ruralistas em relação ao meio ambiente podem parecer benéficas, com aumento temporário de produtividade para os produtores e barateamento dos alimentos para o consumidor final. Mas, quando raciocinamos em termos de meio ambiente, o foco deve ser direcionado para um prazo maior do que os próximos poucos anos. Em termos do planeta como um todo, já está mais do que claro que a forma de agir do setor agrícola tem um efeito negativo, o que terminará por refletir para a própria sociedade. Mas o que é amargamente irônico é que o falso milagre pregado pelos ruralistas pode inclusive ser negativo a parcelas do próprio setor no longo prazo. Vejamos. Diversos estudos científicos têm demonstrado a grande importância da floresta amazônica no regime de chuvas no sul e sudeste do país, regiões parcialmente dependentes de uma "exportação" de água da floresta.
Com a derrubada da vegetação da região norte, este envio de água diminuirá, alertam os especialistas, o que, dependendo da cultura em questão, pode significar menor produtividade agrícola ou maiores custos (com irrigação, por exemplo), que significam menores lucros e/ou migração forçada para outros locais. Logo, todos os agricultores do sul e sudeste, inclusive os setores mais tecnificados e intensivos em capital (soja, cana-de-açúcar e laranja), ao apoiarem as estúpidas propostas de afrouxamento da legislação ambiental, estão, em tese, atirando contra o próprio pé. Outro problema, este mais generalizado, é que o desmatamento e a má gestão dos recursos naturais interferem diretamente na produtividade, também no médio e longo prazo, por razões diversas: erosão e voçorocas (com perdas enormes de solo por ano no Brasil); sobre-exploração do solo; perda de recursos hídricos (com desmatamento de matas ciliares).
Neste caso, o efeito é muitas vezes sentido não apenas pelo próprio agricultor, mas também por outras pessoas, embora num raio de ação menor que o descrito acima. O pior de tudo é que temos exemplos históricos e arqueológicos que mostram que o mau cuidado com o solo e o ambiente como um todo gerou no passado problemas na própria agricultura e até a extinção de sociedades, como ocorreu com os habitantes da ilha de Páscoa e os maias no México.
Mas mesmo possuindo mais conhecimento hoje em dia e mesmo que este conhecimento fosse divulgado para os próprios interessados, ainda assim não creio que os ruralistas tomariam alguma medida que fosse racional (ou qualquer outro setor com mentalidade de curto prazo, na verdade, como o setor industrial, do turismo ou os governos). Primeiro, porque o homem geralmente consegue enxergar só o curto ou curtíssimo prazo (uma das causas básicas de diversos dos problemas ambientais). Assim, ele tende a olhar apenas seu lucro imediato, mas com isso acaba matando a galinha dos ovos de ouro. Segundo, porque, mesmo que o ser humano realmente compreendesse a magnitude do problema ambiental, ou irá crer que a tecnologia dará um jeito ou simplesmente imaginará que, após devastar um lugar, será possível sempre mudar-se para devastar outro. E terceiro, porque, como não se sabe exatamente quanto tempo irá demorar para que os efeitos desta ação suicida sejam sentidos, as mudanças paulatinas não servirão para acender o sinal vermelho em nossas cabeças.
Por isto que nós ambientalistas temos que combater os princípios defendidos pelos setores ruralistas com todas as forças possíveis, procurando aparar nossas arestas e trazer mais grupos à causa. Uma possibilidade seria conscientizar os movimentos sociais, particularmente os ligados a questões agrárias, e assim romper parte da aliança. A alternativa mórbida, deixar que todo o setor agropecuário quebre a cara para rir por último, não é a melhor saída, pois o impacto será sentido por todos e, na verdade, iremos chorar juntos.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é docente da Universidade Federal de Alfenas.
Fonte:Correio da Cidadania
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