Adital
Entrevista especial com Susel Oliveira.
Susel de Oliveira revela, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line por e-mail, detalhes das torturas pelas quais algumas mulheres vítimas da ditadura que o Brasil viveu por 20 anos passaram quando presas. "O fim da ditadura, diga-se de passagem, marcado pela política de conciliação e esquecimento, simbolizada na anistia ampla que beneficiou também os torturadores e os responsáveis direta ou indiretamente pelo regime militar, intensificou a atuação da chamada segunda onda do feminismo que irrompeu no final dos anos 1960 e na década de 1970. Feminismo que, já durante a ditadura, propiciou às mulheres ocuparem o mundo público, questionando o regime patriarcal, a divisão sexual do trabalho", aponta ela, que fala das relações de poder estabelecidas e rompidas a partir da repressão vivida naquele momento. Susel cita também documentos, como filmes e livros, em que as mulheres puderam contar o que viveram. "Trabalhos como, por exemplo, o de Elizabeth Ferreira Mulheres, militância e memória - e Ana Maria Colling A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil mostram quem, para a ditadura, as mulheres militantes encarnavam um papel duplamente transgressor: transgrediam enquanto agentes políticos ao se insurgirem contra a ditadura e também transgrediam ao romper com os padrões tradicionais de gênero", apontou.
Susel de Oliveira da Rosa é graduada em História pela Universidade Federal de Santa Maria. Na mesma área, fez o mestrado pela PUCRS e doutorado pela Unicamp, onde também fez o pós-doutorado e hoje é professora.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você analisa as relações de poder que se estabeleceram sobre as mulheres a partir da ditadura militar no Brasil?
Susel Oliveira - Em primeiro lugar, penso que é interessante termos em mente que os conflitos armados, as guerras, a militarização da sociedade etc. reforçam e atualizam os estereótipos sexistas. Se, longe dos conflitos, as mulheres não têm os mesmos recursos econômicos, direitos políticos, autoridade e controle sobre seu entorno e suas necessidades que os homens, nas situações de conflito, isso se exacerba, aumentando a discriminação e a violência.
O Relatório da Anistia Internacional de 2004, elaborado por Irene Khan, ‘Vidas Rotas: Crímenes contra Irene Khan mujeres en situaciones de conflicto’ mostra a extensão dessa realidade no mundo contemporâneo (situação das mulheres no Afeganistão, estupros generalizados no Sudão, situação semelhante no Congo e na Colômbia, violações constantes nos acampamentos para refugiados, entre muitos outros. Sem contar a violência cotidiana, em casa, na rua, no trabalho). Nesses casos, não falamos em relações de poder, mas em estados de dominação, como diria Michel Foucault.
Podemos falar da disseminação da tortura, do desaparecimento e dos sequestros perpetrados pelas forças repressivas durante a ditadura militar, que atingiram os militantes em geral, adquirindo um caráter específico em relação às mulheres por meio da violência baseada no gênero. Torturar através de violação, mutilação, humilhação, insultos e ameaças sexuais caracteriza a tortura baseada no gênero, sistematicamente utilizada contra as mulheres, apesar de, muitas vezes, homens e meninos também serem vítimas desse tipo de tortura; acrescentando-se especificamente às mulheres os choques elétricos em grávidas e introdução de objetos na vagina.
Lúcia Murat
Uma ex-presa política brasileira relata, no filme-documentário Que bom te ver viva, de Lúcia Murat, que foi despida já no momento da prisão. Prisão que se deu após uma perseguição policial em que foi presa juntamente com outros companheiros do grupo ao qual pertencia. Além de ser obrigada a ficar nua, os policiais a revistaram ali mesmo, na frente de todos, invadindo sua vagina, no intuito de encontrarem alguma arma escondida. Ou seja, o objetivo era degradá-la, uma humilhação destinada especificamente às mulheres. A mesma ex-presa política conta ainda que estava grávida quando foi conduzida ao DOI-CODI: perdeu seu filho lá mesmo, em função das torturas. Esse é um dos inúmeros relatos que acentuam a especificidade da tortura dirigida aos corpos femininos. Torturas cometidas pelos agentes do Estado, aqueles que Martha Huggins em Operários da Violência denomina de perpetradores de atrocidades que tinham o aval de uma imensa gama de facilitadores de atrocidades. Funcionários de um Estado de exceção que, durante a ditadura militar, tinham licença especial para matar, torturar ou estuprar. Agentes que viam as mulheres militantes como desviantes, aquelas que renegavam sua natureza ousando ocupar o espaço da luta política.
IHU On-Line - Que tipo de rupturas aconteceram - e quais não aconteceram - com o fim da ditadura em relação às mulheres?
Susel Oliveira - O fim da ditadura, diga-se de passagem, marcado pela política de conciliação e esquecimento, simbolizada na anistia ampla que beneficiou também os torturadores e os responsáveis direta ou indiretamente pelo regime militar, intensificou a atuação da chamada segunda onda do feminismo que irrompeu no final dos anos 1960 e na década de 1970. Feminismo que, já durante a ditadura, propiciou às mulheres ocuparem o mundo público, questionando o regime patriarcal, a divisão sexual do trabalho. Feminismo (melhor dizendo feminismos, pois são plurais) que rompeu com os padrões, valores e códigos tradicionais impostos às mulheres, sinalizando com a possibilidade de outros modos de existência para além da divisão da humanidade em formatos binários.
As mulheres que participaram da luta contra a ditadura militar de diversas formas, continuaram lutando nas décadas pós-ditadura. Muitas dessas mulheres, ainda durante a ditadura, mesmo sendo de esquerda, ousaram romper com as posturas tradicionais e misóginas reproduzidas por boa parte da própria esquerda a que pertenciam.
IHU On-Line - A mulher é muito ligada à cultura da memória, mas, no Brasil, quando se fala em ditadura, dizem que vivemos a memória do esquecimento. Como você vê a cultura da mulher brasileira que viveu a ditadura nesse contexto?
Susel Oliveira - O esquecimento marca a trajetória de exceção do Estado e da política no Brasil. Esquecimento que toca em especial a trajetória das mulheres, já que dos relatos que dispomos, a maioria diz respeito aos homens. No entanto, na contramão dessa política de esquecimento, podemos citar inúmeros trabalhos e atuações de mulheres.
Mulheres como Maria Amélia Telles, ex-militante do PCdoB que foi presa no início dos anos 1970 junto com seu marido. Seus filhos, ainda pequenos, foram levados para as salas de tortura. Amelinha, como conhecida, coordena atualmente a União de Mulheres de São Paulo e, junto com a família, moveu uma ação inédita no país que declarou Brilhante Ustra como torturador. Escreveu também Breve história do feminismo no Brasil; O que é violência contra a mulher e O que são direitos humanos da mulher, entre outros.
Criméia há 30 anos e hoje
Outras como Criméia Schmidt de Almeida que, na época da ditadura militar, também fazia parte do PCdoB e participou da Guerrilha do Araguaia. Criméia foi presa grávida e teve seu filho em meio às torturas e ameaças da repressão. Ela, atualmente, faz parte da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e é uma das responsáveis pela publicação Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), lutando ativamente pela abertura dos arquivos da repressão.
Danda Prado é outro exemplo, também era ligada ao Partido Comunista e exilou-se na França no início dos anos 1970, onde participou ativamente dos movimentos feministas franceses, fundando o Grupo Latino-Americano das Mulheres em Paris e fazendo circular no Brasil e na América Latina, em conjunto com outras companheiras, o periódico Nosotras. De volta ao país, após a anistia, Danda continuou participando ativamente dos grupos feministas e publicou livros como Esposa, a mais antiga profissão; Cícera um destino de mulher; O que é aborto, O que é família, entre outros, todos denunciando a situação da mulher num mundo patriarcal.
E também mulheres como Rosalina Santa Cruz, Flávia Schilling, Nilce Azevedo Cardoso, Susana Lisboa, entre inúmeras outras que viveram os tempos sombrios da ditadura militar, inventado para além das capturas biopolíticas. Suas narrativas femininas, vale dizer, não lamentam o destino da revolução. São narrativas que privilegiam o devir revolucionário para Deleuze, o único capaz de conjurar a vergonha de ser um homem e responder ao intolerável em mulheres que permanecem empenhadas com o mundo até hoje. Mulheres que carecem de uma concordância feliz e natural com o mundo, para usar aqui uma expressão da Hannah Arendt.
IHU On-Line - Durante a ditadura, os gestos das mulheres se diferenciavam de que forma dos homens?
Susel Oliveira - Creio que, em nossas pesquisas, não se trata de marcar as diferenças que reafirmam a ordem dimórfica que divide e estabelece papéis entre homens e mulheres, pois, sexo e gênero são categorias construídas que precisam ser questionadas. Mas vou aproveitar a sua pergunta para falar de como a repressão diferenciava homens e mulheres, reafirmando essa ordem misógina e dimórfica do mundo.
Trabalhos como, por exemplo, o de Elizabeth Ferreira Mulheres, militância e memória - e Ana Maria Colling A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil mostram que, para a ditadura, as mulheres militantes encarnavam um papel duplamente transgressor: transgrediam enquanto agentes políticos ao se insurgirem contra a ditadura e também transgrediam ao romper com os padrões tradicionais de gênero. Ou seja, as mulheres não eram acusadas apenas de serem terroristas, mas de serem terroristas e mulheres, pois ocupavam um espaço público destinado aos homens. Dessa maneira, a figura da mãe ou da santa cedia lugar rapidamente à figura da bruxa e da prostituta. Desde o momento da prisão até o horror da sala de torturas, estavam nas mãos de agentes masculinos fiéis às performances de gênero, que utilizavam a diferença como uma forma a mais para atingir as mulheres.
"A primeira coisa que faziam era te colocar nua", relata uma ex-presa política no documentário Memória para uso diário, produzido com o apoio do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, acrescentando que quase todas as mulheres foram estupradas, embora a maioria não fale sobre isso. Embora a nudez e a tortura nos órgãos genitais fossem constantes para homens e mulheres no momento da tortura, o estupro foi utilizado especificamente contra mulheres. Estupro que tem sido utilizado como arma de guerra, sem distinção de idade, raça ou estilo corporal. Como enfatiza Tania Swain: "este tipo de violência especificamente dirigido contra os corpos e integridade física e mental das mulheres, porque são mulheres, pois, se não são propriedade de um homem, pertencem, no sistema patriarcal, a todos eles"
* Instituto Humanitas Unisinos
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