A falácia da composição e o paradoxo do arrocho fiscal na política econômica
A Letônia mostra toda a miséria que a instituição de restrições politicamente auto-impostas traz para a ação pública. O governo letão abandonou os instrumentos de política pública que poderiam melhorar a vida dos seus cidadãos. Os líderes políticos ataram seus pés e mãos, a fim de que os mercados pudessem conseguir seus milagrosos ajustes espontâneos. Fixaram seu tipo de câmbio, estão cortando furiosamente seu gasto público e a economia segue se deteriorando. Algo parecido está ocorrendo na Grécia. Estes países estão experimentando o que a Argentina descobriu na crise de 2001-2002: o paradoxo do arrocho público. O artigo é de Marshall Auerback e Rob Parenteau.
Marshall Auerback e Rob Parenteau - Sin Permiso
Se vocês querem ver realmente as consequências reais da teoria econômica dura, da teoria econômica, esqueçam a Grécia e dirijam o olhar para a Letônia. A queda de 25,5% do seu PIB nos últimos dois anos – só no último ano, de 20% - já é o pior registro bianual da história. O país há pouco mostrou uma queda de 12% nos salários anuais no quarto semestre de 2009 em em relação ao mesmo período de 2008. O FMI prevê outros 4% de queda para este ano e prognostica que a perda total do PIB, do ponto máximo até o fundo do poço chegará a 30%. Para situar tudo isso num contexto mais amplo, a magnitude dessa perda de produto na Letônia é superior à registrada nos EUA na crise de 1929-30, na Grande Depressão.
A teoria econômica acadêmica dominante insiste que o caminho para o pleno emprego passa por salários mais baixos. Se se quer vender mais produtos do trabalho, reparta-se o seu preço, quer dizer, os salários. Trata-se de um argumento que incorre na clássica falácia de composição [tomar a parte pelo todo]. O que pode valer para uma empresa não é provável que valha para todas. Os cortes salariais repercutem no consumo, resultando simplesmente na destruição da capacidade agregada de gasto, a menos que a demanda evaporada se reconstitua por outras vias.
Embora a balança comercial da Letônia esteja melhorando (em boa medida por conta do colapso das importações resultante do colapso da demanda interna), o país é incapaz de pôr em curso uma política fiscal efetiva, por conta das restrições externas a seu sistema monetário, preso a um tipo de câmbio fixo. É verdade que o saldo em conta corrente está voltando a ser positivo, mas sugerir que qualquer país pode “deflacionar internamente” sua economia através de uma destruição salarial desta magnitude, a fim de alcançar uma situação assim é um argumento baseado em outra falácia de composição. Nem todo mundo pode, em comum acordo, incorrer em excedentes comerciais; particularmente, não se pode se suas políticas tendem a destruir a demanda mediante a destruição maciça dos salários.
Ainda mais importante: a própria estrutura de um sistema de câmbio fixo é um erro. Requer que uma nação tenha reservas em moeda estrangeira suficientes para facilitar a convertibilidade a 100% de sua base monetária (reservas abundantes em dinheiro). Sob esse sistema, o Banco Central tem que garantir a convertibilidade a uma taxa fixa de câmbio da chamada âncora cambial. O governo então se vê fiscalmente constrangido, e todo o gasto público tem de respaldar-se ou com receitas fiscais, ou com emissão de títulos da dívida. Fixar a própria moeda, assim, significa que o Banco Central deve administrar os tipos de juros de maneira tal que garanta a manutenção da paridade, de modo que a política fiscal se encontra limitada pelas exigências de reservas (e isso se deve a organizações como o FMIL: ata as mãos e os pés dos governos). A Letônia fixa sua moeda em 0,71 lats por euro, e se associou em 2005 ao Mecanismo Europeu de Câmbio, a fim de preparar sua entrada na Zona do Euro. Opera com um sistema similar ao da Argentina nos anos 90, que terminou por colapsar e conduziu à quebra de 2001 (a Argentina havia fixado seu câmbio ao dólar).
As previsões são de que a dívida da economia alcance 74% do PIB no fim deste ano e que, supostamente, se estabilize em 89% até 2014, no melhor dos cenários do FMI. Contudo, uma desvalorização elevaria as taxas de serviço da dívida substancialmente, dada a grande preponderância da dívida externa (cerca de 89% da dívida letã é em euros). Assim, o regime de câmbio fixo não só restringiu a margem de manobra fiscal do governo letão, como engendrou uma enorme fragilidade fiscal, porque os letões operavam de acordo com a ilusão de que o câmbio fixo era inviolável, animando os devedores a atuar, ignorando o risco da taxa de câmbio. Como há dez anos na Argentina, uma desvalorização levaria, com toda probabilidade, a uma quebra e à moratória da dívida externa. A Argentina conseguiu, nos dois anos que seguiram ao primeiro trimestre de 2001, uma recuperação de 25% de seu PIB, mas só depois de uma desvalorização de 190% (que chegou a ser até de 300%).
Como Michael Hudson e Jeff Sommers observaram, “essa dívida situa a Letônia muito longe dos limites de endividamento fixados em Maastricht para o euro. Mas conseguir a entrada na Zona do Euro tem sido o principal pretexto de que o Banco Central letão se serviu para adotar as penosas medidas de austeridade necessárias para manter o regime de câmbio fixo de sua moeda”. Observaram também que manter esse regime fixo tem significado o acúmulo de montanhas de reservas de divisas que de outro modo poderiam ter sido investidas na economia nacional. Também tem impedido o uso de políticas fiscais, pois por conta da âncora letã no euro, o país opera com as mesmas restrições com que estivesse sob as regras do Pacto Europeu de Estabilidade e Crescimento.
Sem margem para ajustar a taxa de câmbio, a única maneira de conseguir desvalorizar a moeda é engendrar uma depreciação real: reduzir os custos laborais e os preços para manter os produtos comercializáveis mais atrativos. Isso se descreve eufemisticamente como uma “desvalorização interna”: uma redução geral, súbita e coordenada, de salários e preços. Do que se trata é bem mais de uma “desvalorização infernal”. Equivale a uma deflação da receita nacional, pois os salários são destroçados para se conseguir que os preços dos bens comercializáveis caiam o suficiente, para que o saldo em conta corrente cresça o bastante para veicular a onda seguinte de crescimento. O pressuposto tácito é que uma espiral de deflação por dívida não afeta o país que a realiza quando a receita privada nacional se torna deflacionada. O argumento para justificar este remédio tóxico é que uma redução dos salários e das remunerações nominais pode ajudar a Letônia conseguir um recorde em suas exportações líquidas, conseguindo assim uma recuperação econômica que rapidamente atenuaria, ou ainda poria em curto-circuito qualquer dinâmica de deflação por dívida que pudesse vir a acompanhar o funcionamento das coisas por obra da desvalorização interna.
Há aqui, então, um país que, in nuce, mostra toda a miséria que a instituição de restrições politicamente auto-impostas traz consigo, para a sua própria ação pública. O governo letão abandonou voluntariamente os instrumentos de política pública que poderiam melhorar a vida dos seus cidadãos. Os líderes políticos ataram seus pés e mãos a fim de que os mercados pudessem conseguir seus milagrosos ajustes espontâneos. Fixaram seu tipo de câmbio, estão cortando furiosamente seu gasto fiscal líquido (sob o acordo com o FMI de contingenciamento de até 6,5% do PIB: uma contração fiscal despudorada), e a economia segue se deteriorando...
Algo parecido ao que se passa na Grécia, país que acaba de introduzir uma nova série de medidas de austeridade, a fim de obter o êxito de sua última emissão de títulos da dívida pública. A Grécia e outros países enfrentam agora a perspectiva de queda nas receitas do setor privado; esse é, afinal, o resultado direto e imediato do maior ajuste fiscal sobre as empresas e economias domésticas, e menor gasto público. A OCDE estima que o PIB nominal da Zona do Euro caiu mais de 3% em 2009.
A menos que os déficits comerciais dos países que praticam o ajuste fiscal obtenham rapidamente excedentes (a diminuição da renda no país leva a menor demanda de bens importados e a menores custos na produção levam a um aumento das exportações), a suspensões de pagamentos da dívida privada começarão a se multiplicar em cascata, por todo o sistema. Na semana passada, como tivemos ocasião de mencionar, a Moody degradou a situação de quatro bancos gregos. E isso é só o começo: os efeitos do ajuste fiscal não fizeram mais do que começar. Ao tomar essas medidas para evitar uma suspensão de pagamentos da dívida pública, sugerimos que o que fazem essas economias é exporem-se a mais suspensões de pagamentos da dívida privada.
Acreditamos que, por enquanto, os investidores privados ainda não viram essa conexão, mas ela vai se tornar nítida nos próximos meses. A Letônia, com um colapso do PIB de cerca de 25%, converter-se-á, a esse respeito, num emblema da região. Essa tensão na dívida privada repercutirá em maiores perdas – derivadas de empréstimos não honrados – para a banca alemã. O tão trabalhosamente alcançado excedente no saldo em conta corrente alemão seguirá desvanecendo. A Europa já está afogada no crescimento do endividamento, e se a análise aqui desenvolvida está certa, a percepção que os banqueiros têm da credibilidade do setor privado se tornará “piriforme”, como eles mesmos disseram, tão deliciosamente, em Londres.
E isso não é tudo. Todos e cada um desses países vão descobrindo o que aqui chamamos de o paradoxo do arrocho público. A Argentina o descobriu em 2001-2002. A Letônia e a Estônia acabaram de redescobrir. A Irlanda está em vias de fazê-lo e, nos próximos três meses, a Grécia, sem dúvida alguma, fará a sua própria. Bill Mitchell descreveu, em seu excelente blog (http://www.billmitchell.org), a natureza desse paradoxo de um modo que ilumina a essência do dilema que temos em mãos:
“Na Irlanda: o governo tirou da economia bilhões de euros na forma de cortes nos gastos dos serviços públicos, das aposentadorias e pensões e da assistência social, além de uma leva de trabalhadores do setor privado substituídos por trabalhadores colocados por agências ao custo de um salário mínimo...
E sabem o que se passa? A receita voltou a cair e janeiro, abaixo das previsões. Depois de dois cortes orçamentários sistemáticos, a receita segue no congelador.
Consenso dominante? Necessitamos de mais cortes (salvo para os banqueiros e para os altos funcionários que não terão que lidar com cortes salariais!). E o mercado internacional da dívida está feliz com a Irlanda.
Em breve poderemos competir com a China em matéria de níveis salariais e generosos incentivos fiscais para as empresas transnacionais. Enquanto isso, meus cumprimentos a todos os imigrantes irlandeses”.
Esse é o futuro da descoberta que Grécia, Espanha, Portugal e Itália farão...e o Reino Unido, e possivelmente o Japão...e talvez os EUA, ainda que consigam protelar para o próximo ano. Em todos esses países, se o setor privado já está encolhendo e o setor público segue encolhendo mais, então, a menos que aconteça um rápido crescimento do comércio exterior, coisa de que sequer se suspeita, os líderes políticos estão é incentivando aos esmorecidos rendimentos privados e à insatisfeita dívida privada a ingressarem no quebra-cabeças, pois assim se inverte o estímulo fiscal.
À medida que a renda cai, a receita também cai. Para alcançar as metas fiscais prometidas aos credores globais de obrigações, há que pôr em curso cortes ulteriores de gastos, o que, por sua vez, implica aumento de impostos. Como disse o blogueiro irlandês, isso não é uma mera teoria; já está ocorrendo. Mas os políticos da situação e os investidores não estão dispostos a reconhecer isso. Não obstante, para quem compreende que os equilíbrios fiscais não podem alterar-sem incidir nos fluxos de caixa e nos equilíbrios fiscais dos demais setores da economia, o paradoxo do arrocho público nesta conjuntura resultará evidente.
Não estamos defendendo generosidades de pensões e bem estar dos servidores públicos da Zona do Euro, nem aposentadorias antecipadas, práticas corruptas, etc. Essas são decisões que os cidadãos de cada nação devem tomar por si mesmos, preferencialmente com pleno conhecimento de suas consequências, a curto e a longo prazo. Não pretendemos ditar os compromissos que os cidadãos de cada nação têm de aceitar.
A questão que estamos levantando é se as taxas de alavancamento privado desses países lhes permitiriam resistir às pressões inerentes ao trânsito para um novo crescimento, na ausência de autonomia fiscal. A pretensão, agora dominante, de buscar a “sustentabilidade fiscal” em toda parte pode colocar essas economias numa via de suspensão de pagamentos da dívida privada, que é, afinal, insustentável para o conjunto da economia. Se se põe em curso o ajuste fiscal, então há que se conseguir, em grande escala e em seu devido tempo, uma renegociação ordenada da dívida privada e uma liquidação dos ativos privados. Nossa experiência diz-nos que isso não é fácil, como ilustrou em termos inequívocos a observação de alguns dos vários canais financeiros que acompanharam a débâcle do Lehman Brothers. O normal é que uma receita assim termine numa implosão financeira.
Até o honorável David Walker, diretor executivo do Instituto Peter G. Peterson, antigo contador geral e arqui-inimigo da parcimônia no gasto público e do gasto irresponsável, está começando a entender a natureza precária da situação atual. Num artigo escrito com Larry Mishel e publicado em 24 de fevereiro último, em Politico.com, Walker insiste na primazia da criação de postos de trabalho, na atual conjuntura, e reconhece que isso poderia na verdade ajudar ao seu objetivo de reduzir os déficits fiscais no longo prazo.
“O presidente Obama se encontra numa situação difícil no que concerne ao déficit. Os elevados déficits atuais terão que aumentar para contribuir na correção do desemprego. Ao mesmo tempo, muitos estadunidenses estão cada vez mais preocupados com a espiral de déficit e dívida. O que o presidente tem de fazer?
A resposta, desde uma perspectiva de políticas públicas, não é difícil: centrar-se agora no emprego é congruente com a correção futura de nossos problemas de déficit”.
Disso, queridos leitores, disso precisamente é que se trata, e não se tem informado sobre o assunto nem tampouco debatido publicamente. Já vimos este filme na Argentina, há uma década. Conseguiram sair do fundo do poço com uma desvalorização maciça da moeda "externa" de cerca de 300% e com um rápido incremento, igualmente maciço, de sua balança comercial. Mas os custos do atraso foram enormes: desde 1998-2001 a Argentina sofreu a maior recessão de sua história e levou à miséria 42% de suas economias domésticas.
E nem todos os países podem fazer o que fez a Argentina. Porque, uma vez mais, nem todo mundo pode conseguir simultaneamente excedentes comerciais; o primeiro que consegue tem vantagem sobre o que vem depois, etc. Além do mais, a Argentina repudiou explicitamente a dívida externa e desvalorizou “externamente” em 300%, num momento que coincidiu oportunamente com uma recuperação da economia mundial: condições muito distintas das que prevalecem hoje.
Até agora os EUA conseguiram se manter fora dos problemas dessa magnitude. Porém, à medida que as vozes do ajuste fiscal se intensificam, poderemos aguardar um futuro não muito desprovido das experiências letãs, grega e argentina. Ao povo da Islândia coube a tarefa de levantar-se pela primeira vez diante desta loucura neoliberal crescente. Num referendum histórico, mais de 90% da população rechaçou uma proposta de devolução de bilhões de libras esterlinas emprestadas pela Grã Bretanha e Holanda em compensação aos depositantes de um banco islandês quebrado.
Tivessem aceitado esse acordo, os cidadãos islandeses teriam arcado com uma dívida adicional de 16 mil dólares cada um, para poder compensar o Reino Unido e a Holanda com um montante de 5,3 bilhões de dólares, pela quebra de seus bancos locais. Isso, num país de só 300 mil cidadãos. O voto negativo já impulsionou as agências classificadoras de risco a degradarem o país totalmente, e deixaram um crédito prometido pelo FMI no limbo. Os “experts” proclamam que isso é um desastre para a Islândia, mas tanto eles como seus aliados na banca devem é estar mortos de medo com o resultado de um referendum que demonstra às claras que um cão de guarda dos resgates internacionais é verdadeiramente impotente quando o povo de uma nação receptora do resgate se nega a aceitar o presente envenenado de uma “salvação” econômica que não faz senão criar um país de cidadãos degradados à servidão por dívida.
Chegou a hora de seguirmos os caminhos traçados pelos liliputienses da Islândia: derrocar o Juggernaut (*) rentista, antes dele pôr fim a sua tarefa. É tempo de tirar o vampiro da nossa frente para podermos voltar a ver a luz do dia e deixar que alguma aparência de humanidade volte a florescer. Felizmente, a Islândia representa o futuro, não a Letônia.
(*) Nota dos autores - “Juggernaut” é o nome do misterioso chantagista do barco Britannia, no filme “Juggernaut – Inferno em Alto Mar", dirigido por Ian Holt, em 1974.
(**) Nota de tradução - No site www.interfilmes.com pode-se ler uma sinopse do filme que talvez ajude a entender o seu lembrete pelos autores: “Um maníaco desconhecido está ameaçando uma companhia de navegação de explodir o transatlântico de luxo Britannic, em alto mar com 1200 passageiros. Ele pede 500 mil libras esterlinas de resgate, caso contrário sete bombas explodirão a bordo. Um experiente esquadrão anti-bombas entra em ação, e será necessária muita habilidade para desarmá-las.
SOBRE OS AUTORES: Marshall Auerback, é analista econômico e membro conselheiro do Instituto Franklin e Eleanor Roosevelt, onde colabora com o projeto de política alternativa new deal 2.0 (www.newdeal20.org). Rob Parenteau é o proprietário do MacroStrategy Edge. Editor do Richebacher Letter, é pesquisador do Levy Economics Institute.
Nenhum comentário:
Postar um comentário