Por Jaques Jesus
A vitória de Barack Obama me deixou em alegre êxtase, como as milhões de pessoas em todo o mundo. Pela primeira vez na vida senti vontade de ter nascido nos Estados Unidos - provavelmente, neste momento de quase-congraçamento universal, quase todos nós sejamos norte-americanos. Esta é a brilhante resposta do povo aos algozes de Martin Luther King e de gerações e mais gerações de afro-americanos. Porém, a felicidade não é cega: em pleno mês da consciência negra estou orgulhoso dos norte-americanos e envergonhado do Brasil. Ganhamos com Obama, entretanto, mais uma vez perdemos o bonde da História. Seguem alguns escassos exemplos.
Um país com o Brasil, segunda maior nação negra do mundo, com metade da população sendo afrodescendente, mal tem representantes negros nos três Poderes, menos de 10% de deputados federais negros, e os Estados Unidos, com pouco mais de 12% de afro-americanos, agora elege um presidente. Nos EUA , Martin Luther King é lembrado em um feriado (nem mesmo o dia de eleição é feriado lá!). Aqui, o Dia da Consciência Negra, em memória ao martírio centenário de Zumbi dos Palmares, sequer é feriado nacional, e João Cândido, líder da Revolta da Chibata, ainda não teve seu nome inscrito no livro dos heróis nacionais. Quantos generais negros nós temos? Os Estados Unidos da América são um espelho sobre o racismo para o qual o Brasil não quer olhar.
Tenho notado os diversos comentários de formadores de opinião brasileiros acerca da extraordinária vitória de Obama, os quais, em geral tangenciando a temática racial, tendem a evitar o fato de que a elite político-ideológica brasileira, com sua falaciosa tese da democracia racial, com sua lerda política de combate ao racismo, com seu programa incipiente de inclusão da população negra, muito pouco contribuiu para que metade de sua população se sentisse de fato cidadã, de fato brasileira.
Como o Brasil dará certo, por mais que cresça economicamente, se as escolas ignoram a História e a participação crucial dos negros na formação desta nação? Há ideólogos que abusam do argumento da inexistência de raças, para tentar defender a não-aplicação de políticas afirmativas. Esse comportamento que alguns chamariam de hipócrita pode ser entendido como “cegueira colorida”, que é o comportamento de não querer enxergar diferenças socialmente construídas entre as pessoas, crendo-se que assim se estará evitando o racismo, o que não resolve o problema - preserva-o com força dissimulada.
Não podemos aceitar inertes que, com a carapuça de opositores de um pretenso conflito racial decorrente da oficialização no Brasil da política de cotas para negros, alguns intelectuais tenham a mesma opinião tendenciosa do diretor da Ku Klux Klan, Thomas Robb, para quem Obama não seria negro, mas “mulato, metade branco”, como se uma das identidades excluísse a outra. Essa é uma mesma premissa para conclusões diferentes, porém ambas erradas: para o diretor da hedionda entidade racista, de que os EUA perderam com a política de cotas; e para os ideólogos brasileiros, de que o Brasil perderá com a política de cotas porque fixaria identidades raciais artificialmente.
O Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão, após séculos de lutas da população negra e seus aliados. Hoje estamos batalhando pela aprovação de políticas governamentais para a promoção da igualdade racial, estamos muito atrasados. Desde a independência da Índia as ações afirmativas são constitucionais; já nos anos 40 se discutiu a necessidade, no Brasil, de mecanismos para inclusão de negras e negros nas universidades e em determinados espaços laborais; na década de 60 os EUA enfrentaram a discussão e começaram o processo das cotas que, agora, no século XXI, criou o ambiente para que um presidente pudesse ser eleito sem que fosse julgado em função da cor da sua pele. O importante não foi o efeito individual das políticas afirmativas, mas o seu impacto na coletividade, que aumentou a presença de negros em espaços de poder, diversificou positivamente sua visibilidade junto à elite nacional.
Quem elegeu Obama foi um Estados Unidos de várias matizes, de gente cujo olhar amadureceu após as cotas para negros, e não, como defendem alguns intelectuais brasileiros, um Estados Unidos que supostamente teria cansado dessas políticas. Se Obama foi reconhecido como um representante digno da diversidade estadunidense é porque se fez algo para que os cidadãos vissem diferentes pessoas em diferentes espaços, e não como ocorre no Brasil, de apenas reconhecerem negros de destaque nos esportes e nas artes — bom lembrar que há muito pouco tempo tivemos nossos primeiros ministros negros no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça.
O racismo não acabou nos EUA, porém, não se enganem. Com esta eleição, os EUA perderam muito do status de bode expiatório para os patéticos discursos que relacionam a miscigenação racial brasileira à inadequação deste país à oficialização de políticas afirmativas voltadas às populações sócio-historicamente discriminadas. É um imperativo moral dos parlamentares aprovarem o Estatuto da Igualdade Racial e o projeto de lei para criação de cotas no ensino superior. A uniformização dessas políticas, hoje pulverizadas junto a dezenas de instituições, não resolverá tudo, no entanto é imprescindível para que o Brasil idealize menos e realize mais igualdade racial na prática.
Um parêntesis final, de aplauso, para a vitória do piloto Lewis Hamilton no automobilismo, outro sinal vermelho para o Brasil, que também falha nos esportes de elite quando se trata da população negra, não por acaso a maioria da população pobre, da favelada, da carcerária. A nossa esperança não está mais no discurso laudatório ou na busca de heróis fora daqui, são outras nossas necessidades, e a responsabilidade é coletiva.
Jesus Jaques é psicólogo, mestre em Psicologia Social e do Trabalho. Foi assessor de Diversidade e Apoio aos Cotistas e coordenador do Centro de Convivência Negra da Universidade de Brasília.
Fonte: Blog do Zé Direceu.
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