domingo, 14 de dezembro de 2008

FARCS - Sobrevivente do ataque a Raúl Ryes conta sua versão.

Universitária relata ataque contra Farc no Equador

Custa crer que a senhora Ingrid Betancourt tenha concordado com tamanho crime, a violação da soberania do país-irmão Equador, em seu infame tour pelos países da América Latina. Um relato do diário mexicano La Jornada.

Verónica e Lucía adormeceram, vencidas pela longa caminhada na selva. De repente, Lucía despertou bruscamente em meio a um tremor, um estrondo, um estampido horrendo. Olhou em volta. Uma árvore incendiava-se diante dela. Estendeu então o braço para chamar a companheira, mas não havia ninguém. “Teria sido um raio?”, pensou. Novo estrondo, mais fogo. “Eu gritei: “Verónica!”, mas ninguém respondeu. Ainda hoje não entendo o que houve. Por que ela morreu e eu escapei? Será que ela levantou-se à noite e não estava ao meu lado quando o bombardeio começou? Ou a força da explosão a teria arremessado longe?”

Esse é o relato de Lucía Moretti Álvarez durante o vôo que a trouxe de volta da Nicarágua ao México com escala em El Salvador. Há cerca de oito meses, em abril, ela teve que pedir proteção ao governo de Manágua pela ameaça de uma ação penal pelo crime de terrorismo, denúncia acatada pela Procuradoria Geral da República.

Lucia Moretti chega ao México

“Não, não cometi qualquer delito nem tenho por que esconder-me de ninguém”, fez questão de dizer. A aeronave já sobrevoava a fina nuvem cinza que cobria a Cidade do México no entardecer daquela quarta-feira. Já não era a voz quebrantada de alguém que a todo momento parecia querer desabar em prantos. “Eu é que sou a vítima. E vou quintuplicar minhas forças, em nome de todos os meus amigos mortos e também por mim, para que se descubra quem foram os verdadeiros criminosos. Nesse primeiro de março se cometeram muitos crimes e precisa haver justiça”.

Ao sair da Nicarágua, finalmente a jovem universitária decidiu falar em detalhes sobre o ocorrido no acampamento em que morreram mais de 23 pessoas - entre elas quatro mexicanos e o número 2 das FARC, Raúl Reyes. Antes, em Manágua, ela havia acatado uma condição das autoridades locais que lhe deram proteção com a condição de que se mantivesse a discrição. Na véspera da viagem o responsável por acolhê-la, Rafael Ortega, filho do presidente Daniel Ortega, a proibiu de conceder uma entrevista solicitada por este diário.

Naquela noite, relata, não se deu conta inicialmente de que estava ferida. “Sentia a calça rasgada e quente, molhada. Vi que era sangue, mas não doía. Porém, não podia me levantar nem me movimentar. Lembro que também caíram coisas em mim e mesmo no meio do bombardeio fiz tudo para me tranqüilizar. Ouvia os aviões passarem, uma, duas, várias vezes. Coloquei uma mochila sobre a cabeça e conferia as luzinhas do meu relógio, minuto a minuto: as 12 e meia já haviam passado 10 minutos, meia hora. Minha esperança era o amanhecer e intuí, não sei como, que não ia morrer. Pensava que Verónica ainda estaria por ali e de repente me passou pela mente que dali a pouco nós duas acordaríamos do pesadelo. Às três horas os aviões voltaram, fizeram um novo bombardeio. Foi então que lamentei não ter me afastado dali, ainda que fosse me arrastando. Bem, foi aterrorizador. Depois ouvi alguns helicópteros que varriam a zona com vários disparos. Alguém muito perto de mim gritava horrivelmente, pois estava morrendo. Depois veio o silêncio. Demorei a ouvir a tropa se aproximar, disparando como sempre. Fechei os olhos com força e fiquei imóvel, quieta, fingindo-me de morta. No meio do tiroteio alguém gritou: “Estou ferido, ajuda!” Depois vieram mais tiros e só. Mais nada. Por isso eu digo que os militares colombianos executaram vários feridos. Eu ouvi tudo”.

Lucía tremia da cabeça aos pés, mas já havia começado a falar durante uma escala no aeroporto salvadorenho, e daí em diante não parou. “Um dos soldados disse: aqui tem uma fêmea, está viva. Era eu. Me rodearam e um deles me advertiu: Não se mova, somos do exército colombiano e você está na nossa mira. Não tente nada, levante os braços e solte a arma”.

Tratamento dado aos feridos de guerra

Dias depois o ministro da Defesa da Colômbia, Juan Manuel Santos, exibiu um vídeo sobre a operação Fénix. As imagens, feitas com uma câmera de visão noturna, mostraram Lucía jogada no chão, rodeada de soldados que a interrogaram e deram-lhe os primeiros socorros. O objetivo do governo colombiano era mostrar que ofereceu “auxílio humanitário” à sobrevivente mexicana. Como ela tinha as mãos amarradas à frente do corpo, Santos espertamente declarou à imprensa, no vídeo, que os guerrilheiros a teriam amarrado.

“É mentira, quem me amarrou foram os militares colombianos. Me fizeram perguntas, sobretudo relacionadas a Reyes. Não acreditaram quando eu disse que nada sabia, que era civil e tinha chegado um dia antes. Me chamaram de mentirosa e me ameaçaram. Quando me revistaram disseram que eu tinha feridas de estilhaços, mas eu nem sabia o que era isso”.

No alvorecer, Lucía pôde ver que o lugar onde estava fora torrado, que a floresta ao seu ao redor virara uma massa cinzenta e fumegante de galhos mortos. Quase às seis da manhã chegaram outros homens com um uniforme diferente. “Se você ficar com eles, nós vamos embora”, disseram os soldados. Os recém-chegados eram da polícia colombiana. Puseram-na sobre uma maca improvisada para transportá-la, segundo eles, até os feridos. Mas no trajeto só viu cadáveres. Alguns policiais aproveitaram para furtar relógios, revistando corpos e outros pertences de valor. Viu tudo aquilo com indignação, até que lhe mostraram o corpo de uma mulher com roupas íntimas. Tinha vários disparos na costas. Perguntaram se a conhecia. “Me deixaram a 10 metros desse cadáver”. Um pouco mais longe viu uma moça gravemente ferida. Soube, depois, que era a colombiana Marta Pérez.

As horas se passaram. Lucía pôde ver como dos helicópteros desciam macas e subiam cadáveres, dois ou três, não pôde precisar. Enquanto isso os uniformizados continuavam as perguntas e negavam-lhe água, apesar do sol já alto. Formigas começaram a subir pelos seus braços e pernas ensangüentados. Os homens a despiram para trocar-lhe a roupa, em meio a um agressivo assédio sexual. Depois do meio-dia, depois de várias trocas de mensagens via rádio, ficaram nervosos. “Limpem as pegadas, vamos embora daqui!”, foi a ordem.

“Eu me angustiei muito. Se nos deixassem ali, como sobreviveríamos? Eu disse que tinham que nos tirar dali, mas nem fizeram caso. Preferiram levar alguns cadáveres, como troféus. Depois nos abandonaram”. Eram três da tarde do primeiro de março.

Essa era a guerra

Naquele momento Lucía se deu conta da gravidade de suas feridas. A roupa estava embebida. Pôs um lençol sob o corpo, que em poucos instantes também estava embebido em sangue. Os cadáveres em seu redor começaram a inchar. “As moscas, formigas, os urubus. E um odor putrefato que me dava repulsão e pena ao mesmo tempo, pois sabia que aqueles eram meus companheiros. Sobre Juan, tinha certeza que havia morrido porque os soldados me mostraram a sua credencial e também me disseram. Achei que tinha visto Fernando entre os cadáveres, mas tinha certeza. Sobre Vero e Soren eu não não sabia nada.”

Passaram-se várias horas antes que voltassem a escutar o barulho de outros helicópteros. Seus ocupantes sobrevoavam sem ver os dois sobreviventes. Lucía, como pôde, ajoelhou-se e agitou uma camiseta. “Eu sabia que se se eles fossem embora nós morreríamos”. Em poucos instantes, porém, apareceram novos soldados entre as ruínas. Tinham nos uniformes as insígnias do Exército do Equador.

“O tratamento foi outro. Improvisaram umas cabanas para proteger-nos do sol, nos deram água, deram-me a minha mochila onde tinha uma bebida energética. Já escurecia quando um enfermeiro fez os primeiros curativos. Outro jovem soldado passou a noite a meu lado, segurando a minha mão e sustentando-me psicologicamente, falando de qualquer coisa, de esportes, da sua mulher, tudo para dissipar o meu absoluto terror”.

Amanheceu o segundo dia de Lucía na selva. “Os soldados buscaram minhas coisas, uns bonecos de artesanato que eu tinha comprado, minha mochila, um embornal. As únicas coisas que não apareceram foram o meu passaporte e o meu dinheiro. Mas eu não queria nada disso, só que me tirassem daquele lugar. Quando estávamos a ponto de ir embora encontraram outro ferido ali perto. Mas estava muito mais grave, com as duas pernas destroçadas. Era Doris Torres, a mais jovem. Estava amarrada. Então começamos um caminho muito difícil, por dentro da selva, para alcançar os helicópteros. Os soldados tinham umas insígnias brancas no braço para identificá-los como resgatadores. Curiosamente, foi esse detalhe que me fez tomar consciência de que havia uma guerra. Que eu estava em uma guerra!"

La Jornada/Site O Vermelho.

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