sábado, 6 de dezembro de 2008

OS DESACREDITADOS.

Como se vê pelo artigo abaixo, não são só os "formadores de opinião" da nossa grande imprensa, bem como os seus "especialistas", figuras frequentes nos "Globonews" da vida que estão desacreditados.
Carlos Dória.

Depois da queda da Bolsa, a queda dos intelectuais: entre as vítimas colaterais do naufrágio financeiro contam-se o punhado de economistas que espalham a boa-nova na comunicação social. Liberalização, desregulamentação, privatização: o seu credo resume-se em três palavras. Quando até um relógio parado acerta na hora duas vezes ao dia, estes "especialistas" exibiram uma constância no erro. Analisar as suas propostas contribui para evitar que sejam subitamente apagadas, como aconteceu com as dos banqueiros.

Por Frédéric Lordon, Le Monde Diplomatique

Se se tratasse de uma atracção de uma feira popular, para chamar intelectuais, chamar-lhe-íamos "galeria fotográfica giratória" - e, para atrair os mais pequenos, "o carrossel dos tolos". Na televisão, na rádio, na imprensa, quem é que comenta o afundamento do capitalismo financeiro? Os mesmos de sempre, claro! Todos eles, peritos, editorialistas, políticos, matraquearam-nos, durante duas décadas, com as suas loas a um sistema que se esboroa. E continuam por aí, fiéis ao seu posto, e a sua alegre arrogância não dá sinais de se esbater. Dividem-se entre os que, sem o menor escrúpulo, viraram a casaca e os que, um pouco desorientados pelo choque, tentam, apesar de tudo, manter como podem a sua linha e defender o indefensável no meio de ruínas.

Entre eles, Nicolas Baverez está visivelmente perturbado e busca o seu caminho entre os escombros. O efeito de sopro deve ter sido violento, porque as suas posições estão muito amachucadas: «A globalização conserva aspectos positivos»[em], mantém ele contra ventos e marés, fazendo lembrar George Marchais. No entanto, confessa com um suspiro, é o próprio «capitalismo globalizado que entrou crise»[1], e «a auto-regulação dos mercados é um mito»[em]. Isso não o impede de afirmar o seguinte: «O liberalismo é o remédio para a crise»[2]. E, no entanto, o que é o liberalismo senão a forma de organização económica que se deduz do postulado da auto-regulação dos mercados? Talvez assim seja, mas Baverez decide que não recuará nem mais um milímetro e que será preciso viver com as complexidades do seu pensamento: «O liberalismo não é portanto a causa da crise», embora por interposta auto-regulação ele seja o problema... para o qual é, no entanto, «a solução»[3] - quem conseguir compreender que o faça.

Outros estão menos atrapalhados e declaram com mais à-vontade que, se os tempos mudaram, eles também estão a fazer o mesmo: «Esta bolha ideológica, a religião do mercado todo-poderoso, tem grandes semelhanças com a ideologia do comunismo (...) O rolo compressor da ideologia liberal arrasou tudo à sua passagem. Um grande número de directores de empresas, de universitários, de editorialistas e de responsáveis políticos só reconheciam a soberania do mercado»[em].

Quem se tenha, qual Bela Adormecida, deixado dormir antes do Verão para acordar e ler estas linhas hoje, pensaria sem dúvida estar perante mais um desses arruaceiros habituais da ATTAC ou então do L'Humanité. No entanto, é Favilla, o editorialista mascarado de Les Échos, que liberta por fim toda a cólera contida durante tantos anos. Porque ainda não está suficientemente difundido, mas o jornal está em luta: demasiadas injustiças, demasiadas censuras, demasiadas imposturas intelectuais. Chegou-se mesmo a abafar a verdade: «Todas as vozes dissonantes, mesmo que timidamente sociais-democratas, defendendo as virtudes de um mínimo de regulação pública, passavam por foragidos do Parque Jurássico. E eis que a verdade irrompe. A auto-regulação do mercado é um mito ideológico». Prolongando as tendências presentes, podemos desde já antecipar: "É preciso que isto rebente!" será o título de um próximo editorial de um Favilla sem grilhetas.

Decididamente, a Branca de Neve teria dificuldade em reconhecer os seus anões. Laurent Joffrin, que ainda há poucos meses atrás ajudava Bertrand Delanoë a elevar o seu grito de amor pelo liberalismo e fustigava «a esquerda anacrónica»[4], aquela que não compreende as virtudes do mercado, comeu a maçã proibida - na realidade a mesma que Favilla: «Desde há mais de uma década que os talibans do divino mercado financeiro rejeitam todos os avisos, desprezam todos os críticos e recusam todas as tentativas de regulação»[em]. Ficámos no tempo em que os talibans convergiam com os críticos da globalização. Será possível que os primeiros tenham mudado de campo de forma tão brutal e há tanto tempo, sem que nos tenhamos apercebido?

PROFETAS DIPLOMADOS

Em defesa destes pobres editorialistas, pode dizer-se que eles pouco mais fizeram do que repetir o que lhe segredaram durante anos os seus repetitivos peritos. Acontece que desse lado a hecatombe é impressionante. Elie Cohen empenhou-se em evitar a horrenda aberração da intervenção pública e apoiou a privatização de tudo o que havia para privatizar e que agora é necessário nacionalizar - imaginamos a sua reacção se tivesse sido confrontado com a ideia há dois meses. Como parece distante a época em que ainda incentivava os socialistas a abandonarem o «discurso de extrema-esquerda fundado na negação da realidade»[5] e em que lamentava que eles se «tivessem tornado alterglobalistas por medo de uma globalização que eles não entendem e na qual apenas vêem os movimentos das multinacionais atafulhadas de lucros, as derivas da finança desabrida e as iniquidades de uma regulação ao serviço dos poderosos».

Não há uma palavra deste apelo que não impressione pela sua lucidez porque, como todos sabem, não só o Partido Socialista é um ninho de alterglobalistas, como, além do mais, é preciso não compreender nada da globalização para fazer um tal retrato que a realidade desmente todos os dias. É verdade que, em matéria de "realidade", Cohen é um perito: «Em algumas semanas o mercado reformar-se-á e os negócios continuarão como dantes», escrevia ele a 17 de Agosto de 2007[em], antes de oferecer a sua filosofia (quase) definitiva das crises financeiras. «Temos de nos habituar à ideia de que elas não constituem cataclismos, mas sim métodos de regulação de uma economia mundial que não conseguimos verdadeiramente enquadrar pelas leis ou pelas políticas.»[6]

Algumas pessoas mal intencionadas poderão sem dúvida sugerir que Cohen não é um economista académico típico e, dado o tempo que passa na ribalta, questionar se ele está em condições de dar algum contributo para uma ciência que não seja a da sua própria notoriedade. Sem ir ao fundo desta espinhosa questão, digamos desde já que há qualquer coisa de muito injusto nesta insinuação: os economistas com melhores pergaminhos fazem a mesma figura no campo que nos interessa. David Thesmar e Augustin Landier foram solenes no Verão de 2007: com o título profético «A megacrise não terá lugar»[em], o melhor jovem economista de França (Prémio 2007 do Círculo dos Economistas, que sabe reconhecer os seus) e o seu acólito são solenes: «Sejamos claros: [a correcção] será limitada e sobretudo não terá efeitos na economia real». É um facto que isto é suficientemente claro e que a conclusão também o é: «O perigo de uma explosão financeira, e portanto a necessidade de regulação, não é assim tão grande como se pensa».

No entanto, os profetas ainda são melhores que os clarividentes. «No seu relatório, encomendado pelo Eliseu, o economista já alertava para os perigos da especulação financeira». É com esta homenagem às capacidades extralúcidas de Jacques Attali e do seu famoso relatório que se iniciam as duas páginas assinadas por Renaud Dély e oferecidas (por descuido?) pela revista Marianne a um dos produtos multimédia mais célebres de França. Será que Dély leu uma única linha do relatório que agora elogia? A questão coloca-se porque, é preciso afirmá-lo, o Relatório Attali não só não tem o mais pequeno apontamento sério sobre os perigos da desregulamentação financeira, como não passa de uma ode aos prodígios dos mercados de capitais - e uma exortação a que se confie neles ainda mais.

Na página 7 indica-se o modelo bem sucedido que a França deve imitar: é o Reino Unido, que «se empenhou duradouramente na valorização da sua indústria financeira» - não será esta uma ideia que, pela sua excelência, podemos classificar como pertencente à categoria do profético? Temos assim «revoluções a não perder», como aquela dos «sectores promissores» (p. 54); entre os quais temos «a finança» (id.). É por isso que «fazer de Paris uma praça financeira fundamental» é o «objectivo» que vai das propostas 96 à 104.

Decisão 97: «Harmonizar as regulamentações financeiras e bolsistas com as que são aplicáveis no Reino Unido para não prejudicar os actores europeus face aos seus concorrentes internacionais». Decisão 101: «Multiplicar as iniciativas comuns entre as instituições do ensino superior e as instituições financeiras para o financiamento de cátedras dedicadas à investigação na área da modelização financeira», porque se a universidade é deixada aos cortes dos orçamentos públicos isso não será bom para a formação das futuras elites da classe parasitária. Para o fim fica o melhor, a decisão 103: «Modificar a composição das comissões dos colégios de reguladores por forma a que os campeões da finança se possam exprimir e influenciar a posição do Alto Comité de Investimento».

Nesta altura sonhamos entrevistar o entrevistador: «A 10 de Outubro de 2008, como interpreta a expressão "campeões da finança" e, mais ainda, a ideia de lhes confiar a regulação dos mercados? Acha que o autor deste género de propostas, formuladas depois de mais de seis meses de crise financeira aberta[7], entra na categoria dos profetas ou na dos pedantes? Pensa persistir neste tipo de jornalismo ou vislumbra uma reconversão ao microcrédito?»

Será sem dúvida necessário dar a Dély um pouco de tempo para amadurecer a sua resposta e também para degustar o fim do relatório, que não é menos saboroso do que o início, uma vez que a decisão 305 acaba por confessar tudo, ao sugerir a «reorientação maciça do regime fiscal dos seguros de vida e do plano de poupança em acções para a poupança de longo prazo investida em acções (a juntar com fundos de pensões)».

E aqui estamos. Não sabemos se Jacques Attali previu a crise de outra forma que não sob a forma de uma alucinação retrospectiva, mas, pelo menos em Janeiro de 2008, aconselhou a canalização de toda a poupança dos franceses para os mercados financeiros - será que são os mesmos mercados a propósito dos quais se refere, na televisão, a um "tsunami"?

O Relatório Attali apela assim abertamente à passagem à capitalização - «o reforço da poupança reforma individual ou colectiva é assim necessário» (p. 213) -, no preciso momento em que as famílias norte-americanas, devido à crise, vêem as suas poupanças esfumarem-se, e no momento em que a situação de extrema aflição em que se encontram já as forçou a recorrerem às suas contas-reforma. Que magnífico sentido da história forçar a capitalização num período em que não tardaremos a ver aparecer os primeiros velhos miseráveis nos passeios das cidades norte-americanas!

E como a mensagem deste relatório é a de submeter toda a sociedade francesa à lógica da finança, que demonstra espectacularmente as suas virtudes, não esqueceremos de mencionar a decisão 22 que visa reforçar o papel das fundações privadas no financiamento das universidades com a correspondente retirada dos financiamentos públicos. Mas como funcionam na prática estas fundações? Elas investem os seus capitais nos mercados e vivem dos juros. No contexto de afundamento de todos os sectores da finança que o profeta antecipou há muito tempo, supõe-se que as universidades americanas se preparam para alguns anos a pão e água. Não será este um modelo que é absolutamente necessário imitar?

Quem se preocupa com tudo isto? Os cata-ventos rodam violentamente sem qualquer obstáculo. Com raríssimas excepções, todas as pessoas listadas por Favilla no seu editorial bizarramente esclarecido como «directores de empresas, universitários, editorialistas, responsáveis políticos» organizaram os seus debates entre eles sem que qualquer contraditório sério se imiscua. Seria preciso ser ingénuo para, nestas condições, ficar espantado por não existir no sistema a menor força de memória, nem mesmo um começo de regulação da decência, a mais pequena possibilidade de sanção para estas contradições formidáveis, nem o ridículo para tão gigantescas palhaçadas, já que todos estão convencidos e todos escolhem logicamente absolver-se colectivamente.

No entanto, e contraditoriamente, depois de tudo isto que a lucidez impõe de qualquer forma, é necessário ter temperança para não se ficar atordoado com um estado de coisas tão degradado que persistem em chamar, com uma ironia sem dúvida involuntária, "a democracia", e para resistir ao violento impulso de lhes exigir o que a dignidade lhes imporia se tivessem dois dedos de testa: tirem umas férias. E, talvez até, desapareçam.
Fonte: Esquerda.net.

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