terça-feira, 6 de janeiro de 2009

CORRIDA - Os homens que correm.

Marina Silva
Senadora (AC), De Brasília

No último dia de 2008, vivemos mais uma vez a rotina de assistir, pela décima vez, a vitória de um queniano na Corrida de São Silvestre. Tanto eles vencem, e há tanto tempo, que já nos sentimos íntimos desses homens negros esguios e discretos que parecem ter nascido para correr. De certo modo, quando ganham, não nos é difícil aceitar e até sentir um certo orgulho de nossas raízes africanas. Perdemos? Sim, mas para os quenianos. Como se fosse a nossa segunda opção de torcida.

E o que sabemos do Quênia? Em geral, pouco. Um país que até o início de 2008 era considerado uma das ilhas de estabilidade na África, conhecido pelos seus magníficos parques nacionais e pelos Masai, uma das tribos mais antigas do continente e muito ciosa da manutenção de sua cultura. Entre os ambientalistas é conhecido por ter, em Nairóbi, a sede do Programa de Meio Ambiente da Organização das Nações Unidas, o PNUMA.

Em 2008, a violência política escancarou outra imagem, num conflito que resultou em mais de 300 mortos e fez a própria ONU cogitar de mudar o PNUMA para outro país. Quando esta hipótese circulou foi um trauma nacional, pois a presença da máquina administrativa da ONU cria uma economia de serviços significativa, além de internalizar recursos e gerar empregos locais.

Estive três vezes em Nairobi, para reuniões da área ambiental. Três aspectos me chamaram a atenção. Primeiro, como os quenianos caminham! A falta de transporte, a pobreza e o próprio costume de andar faz com que Nairobi seja uma cidade de pedestres. As pessoas vão ao trabalho e a todo lugar, distâncias curtas e longas, num passo miúdo e rápido, quase correndo. Formam-se filas enormes de pedestres nesse ritmo. Lembrei-me da declaração de um dos quenianos vencedores em São Paulo, há alguns anos, de que andava diariamente 5 quilômetros para ir à escola. Vi até que ponto a resistência para caminhar faz parte da vida de toda a população.

Numa dessas viagens, em 2007, fui informada de que mais de 40% da população estavam numa situação de desemprego praticamente crônico e, do restante, a maioria dispunha de empregos precários. Metade da população vive abaixo da linha da pobreza, e a expectativa de vida não passa de 49 anos.

Os desempregados chegam de manhã às praças e ali passam o dia, à espera de que alguém apareça para oferecer trabalho temporário. São milhares de pessoas. Quem necessita de serviços não procura nos classificados dos jornais, vai a uma praça e ali escolhe o jardineiro, o encanador, o eletricista. Um brasileiro, funcionário do PNUMA, contou-me que contratou um rapaz que afirmou ser eletricista. Só em casa constatou que ele não entendia nada de eletricidade e quase acabou eletrocutado, mas faria qualquer coisa para ganhar algum dinheiro. O brasileiro e a esposa, diante desta situação tão dolorosa, encontraram uma forma de remunerá-lo, mesmo tendo que chamar outro para fazer o serviço.

O terceiro aspecto é o da ligação cultural dos quenianos com o plantio de árvores. Usam espaços não cimentados da cidade e lá produzem e vendem mudas. A cidade é muito arborizada, mas não na nossa concepção de algo arrumadinho, com uma estética planejada para ser bela. Lá, o resultado é muito bonito, até emocionante, mas cria uma espécie de biodiversidade espontânea, não de canteiros, mas de paisagens que têm uma vida toda própria, feita de movimento, diferença. E da mesma forma que aqui temos vendedores de rua com seus churrascos-de-gato, salgadinhos, roupas, lá a maioria de vendedores de rua comercializa plantas e mudas.

Se temos o hábito de correr atrás da bola desde criancinhas, os quenianos correm atrás de emprego, de escola, de uma oportunidade para sair de dificuldades quase insuperáveis. E todo ano recebemos seus campeões e os admiramos e aplaudimos. A corrida de São Silveste bem poderia ser a porta para nos interessarmos mais pela África, conhecermos seus povos tão próximos de nós e tão abandonados pela economia global predadora.
Fonte:Terra Magazine.

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