Multifacetado, multiracial, multicolorido e multisonoro, o Acampamento da Juventude confirma, em sua edição amazônica, a fama de espaço de maior diversidade dentro do Fórum. Para entender tudo isso, só mesmo indo lá. Porque é da síntese entre o conhecido e o estranho que brota uma outra possibilidade, quem sabe até, um outro mundo. O recado do acampamento parece mesmo ser este: ou aprendemos uns com os outros, ou morremos com os nossos preconceitos.
João Manoel de Oliveira
BELÉM - A liberalidade dos comportamentos, o gestual agressivo de uns poucos, o figurino inusual de outros tantos, o cheiro de fumaça e incenso no ar, pouca roupa, tatuagens de dragão e borboleta, camisetas de algodão e jeans, saias com estampas orientais, ícones revolucionários já absorvidos pelo mercado fashion, negros e loiras ostentando dreadlocks (que não nasceu com os hastafaris, mas entre antigos povos da Índia), índios tatuando brancos, e estudantes, muitos estudantes num trotoir incessante que parece sem destino. É mais ou menos isso o que vê um primeiro olhar lançado sobre o Acampamento Intercontinental da Juventude do Fórum Social de Belém.
A impressão woodstockiana é inevitável. Como no festival hippie de quarenta anos atrás, os acampados de Belém bradam palavras de ordem contra a guerra, ainda defendem (e alguns mais corajosos exercitam) o amor livre e criticam o capitalismo. Os tempos e o fato de estarem num fórum social, acrescentaram novas bandeiras ao repertório: ensino público gratuito e de qualidade, preservação ambiental. Nada muito novo, é verdade. Mas como afirma Ricardo Barazzetti, gaúcho de Caxias do Sul, integrante do Kizomba (campo do movimento estudantil ligado ao PT), “hoje, nenhuma luta faz sentido se não estiver agregada à defesa da preservação de todas as formas de vida do planeta”.
Para além da "bichogrilagem", o acampamento abriga debates sobre temas importantes como direitos humanos, quilombolas, indígenas, reforma urbana, mulheres, saúde, economia solidária, internet, democracia participativa, energia e educação. “Um laboratório de práticas socialmente transformadoras cujo objetivo é a produção de referências simbólicas comuns”, anuncia, pomposamente, o site oficial do evento: .
A ONG Unione Italiana Sport per Tutti (UISP) que já esteve no Fórum de Nairóbi e que montou quadras para a prática de vôlei e futebol dentro do acampamento de Belém, veio ao Brasil neste espírito: “Vemos o esporte como forma ideal para integração, liberdade, solidariedade, enfim, todas as expressões humanas. Nossa ONG é parceira de movimentos ambientalistas e de igualdade racial como o Mondiatti Antirazzisti.” A proposta parece ter funcionado. Na tarde de quarta-feira, um dos times na quadra de vôlei reunia uma loira suíça, um negro carioca, dois japoneses paulistas e uma índia amazonense.
Caminhando entre as barracas, o acampado vai se deparar com uma frase instigante: “Não estamos atrapalhando o trânsito. Nós somos o trânsito”. É o slogan da Critical Mass, movimento global criado em San Francisco da Califórnia que visa disseminar o uso racional dos automóveis substituindo-os, sempre que possível, pelas bicicletas. “Danny Souza, 40 anos, geógrafo, está no acampamento para divulgar o movimento. “Tenho carro, mas no ano passado, percorri 2.600 km de bicicleta só indo e voltando do trabalho”. Danny diz que o movimento não é ligado a nenhum partido. Bem ao contrário dos estudantes filiados ao PSOL que estão em grande número no acampamento, organizaram espaços próprios e mantém uma agenda de eventos, quase todos com críticas ao governo federal.
Visivelmente espantado com a gritaria dos estudantes de outro matiz, a UJS do PCdoB, William Akay, 23 anos, indígena do povo Wai-Wai e morador da aldeia Mapuera às margens do rio Trombeta (divisa entre Pará e Amazonas), diz que não está gostando do Fórum: “Parece que índio não pode viver como qualquer outro povo, tem que viver como bicho”, reclama diante do permanente assédio de brancos que, sem pedir licença, postam-se ao seu lado para tirar fotografias. “Não somos animais de um zoológico. Eu ainda consigo dizer que não quero, mas eles (apontando para outros jovens índios de seu povo), não sabem falar português e não podem fazer nada”.
A secundarista Raísa Rosa, 17 anos, também não pode fazer nada quando, na marcha de abertura do Fórum, foi assaltada por dois homens que lhe roubaram a bolsa com todos os documentos, algum dinheiro e a máquina fotográfica. Mas Raísa não se deu por vencida. Passou a tarde exibindo um cartaz onde se lia “Fui assaltada. Preciso de dinheiro para voltar para casa”. O pedido, escrito em português, espanhol e inglês, fez brotar a solidariedade entre os acampados que, em poucas horas, garantiram com moedas e notas de baixo valor, os R$ 98,00 que Raísa precisava para comprar a passagem de volta ao Maranhão. – O assalto fez com que você ficasse com uma impressão ruim do Fórum?, pergunta o repórter. “Claro que não. Isto aqui é uma mostra do mundo e eu adoro o mundo”.
Nem todos, entretanto, conseguem decifrar o espírito do acampamento. É o caso do auxiliar de escritório belenense César Raimundo Gomes, 18 anos, que confessa não ter “nenhuma identificação com aquilo lá”. O rapazote vai mais longe: “Sugiro que os jovens de Belém se mantenham afastados da UFRA”.
UFRA é sigla que designa a Universidade Federal Rural da Amazônia, cujo campus abriga o Acampamento. A estrutura foi montada para receber 20 mil pessoas e, ao menos até a última quarta-feira (28), os 120 banheiros químicos e os 300 chuveiros montados em barracões de madeira fina e sem cobertura, se mostravam suficientes para a demanda higiênica dos 17 mil que chegaram a Belém. Não havia filas também nos pontos de alimentação onde predomina um cardápio de frutas regionais, verduras, legumes e grãos.
É possível encontrar Coca-Cola “o líquido negro do imperialismo”, mas disfarçada e servida em sacos de plástico transparente (“para pensar que é suco de açaí”, confessa uma vendedora ambulante) com direito a canudinho. Fernanda Torres, paranaenses de 20 anos, estudante de Gestão Ambiental, acha “um absurdo” a venda de refrigerante no Fórum e reclama que das garrafas de água e papéis que conferem um aspecto de aterro sanitário a alguns espaços do acampamento. Há críticas também ao trânsito na rodovia de acesso e temores com a segurança já que boatos sobre assaltos e até estupros circulam de boca em boca. Nada, contudo, foi registrado pelos policiais que atuam naquela área. “Quando tem show e o pessoal bebe um pouquinho, é que a gente fica mais esperto. Mas está tudo calmo”, conta o PM Anderson.
Por falar em trilha sonora, ritmos afros, carimbós, rocks, mpbs, bregas, heavy metals e mantras convivem quase harmoniosamente no lugar. E é assim, multifacetado, multiracial, multicolorido e multisonoro que o acampamento confirma, em sua edição amazônica, a fama de espaço de maior diversidade dentro do Fórum. Para entender tudo isso, só mesmo indo lá. Porque é da síntese entre o conhecido e o estranho que brota uma outra possibilidade, quem sabe até, um outro mundo. O recado do acampamento parece mesmo ser este: ou aprendemos uns com os outros, ou morremos com os nossos preconceitos.
Fonte: Agência Carta Maior.
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