Serge Halimi.
A entrada em funções de Barack Obama vai confirmar uma tripla ruptura.
Em primeiro lugar, uma ruptura política. É a primeira vez desde 1965 que um presidente democrata inicia o mandato num contexto de fraqueza, ou até de desgraça, das forças conservadoras. Em 1977, Jimmy Carter venceu sobretudo – e por pouca margem – graças à promessa de uma renovação moral («Eu nunca vos mentirei»), na sequência do escândalo de Watergate, tendo a sua presidência sido marcada por uma política monetarista e pelas primeiras grandes medidas de desregulamentação; em 1993, Bill Clinton apresentou-se como o homem que iria “modernizar” o Partido Democrata recuperando muitas ideias republicanas (pena de morte, ataque às protecções sociais, austeridade financeira).
Em seguida, uma ruptura económica. O neoliberalismo à moda de Reagan deixou de ser defensável até para os que eram seus partidários. George W. Bush admitiu-o «com muito gosto» durante a última conferência de imprensa que deu como presidente, na segunda-feira dia 12 de Janeiro: «Pus de lado alguns dos meus princípios liberais quando os meus conselheiros económicos me informaram que a situação que íamos enfrentar podia ser pior do que a Grande Depressão (a crise de 1929)». Dizer «pior» é apesar de tudo um pouco exagerado, tendo em conta o quanto a crise de 1929 fez fermentar as “vinhas da ira” e o quão pouco faltou para o país mergulhar no caos. Ainda assim, 2008 termina com uma perda de 2,6 milhões de empregos nos Estados Unidos, 1,9 milhões dos quais apenas nos últimos quatro meses do ano, o que representa o pior desempenho desde 1945 e bem pode ser designado como uma queda livre. Isso ainda poderia passar se as contas estivessem equilibradas e existisse uma possibilidade ilimitada de recuperação através do endividamento, mas a realidade é outra. O défice orçamental vai atingir este ano 1,2 biliões de dólares e 8,3 por cento do PNB [produto nacional bruto]. Também neste caso, o número é tão mau que impressiona: além de ultrapassar os maus resultados da era Reagan (6 por cento em 1983), assinala uma triplicação do défice de um ano para outro. E, para piorar a situação, cada dia parece anunciar uma nova falência bancária.
Por fim, uma ruptura diplomática. Sem dúvida que, desde a Segunda Guerra Mundial, a imagem dos Estados Unidos no mundo nunca esteve tão degradada. A maioria dos países considera, muitas vezes em percentagens esmagadoras, que a superpotência americana desempenha um papel negativo nas questões mundiais. Iraque, Médio Oriente, Afeganistão: o statu quo é de tal modo ruinoso e mortífero que parece inconcebível. De resto, Obama começou a campanha em 2007 invocando a necessidade de uma retirada do Iraque e foi graças a essa insistência que venceu Hillary Clinton – sua futura secretária de Estado… – nas primárias democratas. O calendário dessa retirada parece, todavia, estar já a opor o presidente eleito (mais impaciente) e os militares (mais “prudentes” [1]). Mas a impaciência do primeiro não se explica minimamente por uma disposição pacifista, decorrendo sobretudo da vontade de Obama de deslocar para o Afeganistão uma parte das tropas retiradas do Iraque. Ora, não é certo que as perspectivas de atolamento sejam menores em Cabul do que em Bagdade…
Politicamente, o novo presidente tem as mãos livres. A paisagem de escombros que herda vai condenar os seus adversários políticos a uma certa contenção. A sua eleição, amplamente conseguida, beneficiou do entusiasmo das forças vivas da nação, e em particular dos jovens. Por fim, tal como é em grande medida sugerido pelos dossiês especiais, muitas vezes hagiográficos, que a imprensa do mundo inteiro está a dedicar a Obama, a esperança suscitada pela sua chegada à Casa Branca é imensa. Isso não se explica apenas pelo facto de o presidente dos Estados Unidos ser negro. De repente, a “marca América” está novamente de pé. Algumas decisões com forte dimensão simbólica relativas ao encerramento de Guantánamo e à proibição da tortura vão fortalecer esta impressão de se estar numa nova era. «Devemos ser igualmente diligentes a conformarmo-nos aos nossos valores e a proteger a nossa segurança», anunciou o novo presidente.
As dificuldades vão começar em seguida. Não basta regar a economia americana com liquidez para que a máquina económica e o emprego voltem a pôr-se em movimento. A preocupação da população quanto ao futuro é tão grande que, em vez de se aprestar a consumir mais, poupa mais do que nunca [2]. A taxa de endividamento das famílias, que desde 1952 estava em constante aumento, registou o primeiro recuo no terceiro trimestre do ano passado. Ora, o que é seguramente desejável a médio e a longo termo vem colocar em perigo o relançamento rápido que a nova equipa da Casa Branca prevê conseguir através do consumo e do endividamento. «Se não fizermos nada, esta recessão pode durar anos», preveniu Obama, desejoso de que o seu programa de despesas suplementares de 775 mil milhões de dólares, composto por despesas públicas e diminuições de impostos, seja adoptado o mais depressa possível pelo Congresso. Será este programa suficiente? Alguns economistas democratas como Paul Krugman consideram-no insuficiente e mal concebido [3].
A situação internacional também não parece prestar-se a resultados imediatos. Deliberadamente ou não, os dirigentes israelitas colocaram o seu grande aliado perante um facto consumado – uma guerra particularmente impopular no mundo árabe – e obrigaram o novo presidente a dedicar-se imediatamente a um dossiê minado que não era de forma alguma uma sua prioridade. A parcialidade que Obama poderá demonstrar nesta situação, uma vez que já ninguém imagina que os Estados Unidos possam vir a defender uma posição equilibrada no Médio Oriente, poderá enfraquecer muito depressa a sua popularidade internacional.
Contudo, nem tudo se resume a um homem, mesmo que novo. Até porque a novidade é muito menos visível quando se examina as escolhas feitas por Obama para o seu gabinete. Se há uma ministra do Trabalho próxima dos sindicatos, Hilda Solis, que promete uma ruptura com as políticas anteriores, há também uma ministra dos Negócios Estrangeiros, Hillary Clinton, cujas orientações diplomáticas cortam menos com o passado, e um ministro da Defesa, Robert Gates, simplesmente herdado da administração Bush. Quanto à diversidade da equipa, não é seguramente de natureza sociológica. Entre as trinta e cinco primeiras nomeações de Obama contam-se vinte e dois diplomados por uma universidade de elite americana ou por um distinto colégio universitário britânico… Faz lembrar um pouco o regresso à “competência”, aos «best and brightest» (os melhores e os mais brilhantes) da administração Kennedy-Johnson. A imodéstia que caracteriza este género de indivíduos condu-los por vezes a fazerem presunções sobre as suas forças e a tornarem-se os arquitectos de catástrofes planetárias, como se observou durante a Guerra do Vietname. Nos tempos que correm, a ameaça mais temível nos Estados Unidos é o atolamento “centrista” e não a audácia do «Yes, we can».
Fonte: Blog Informação alternativa.
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