O texto é longo porém importante de ser lido.Vai ser apresentado no Fórum Social Mundial, que vai se realizar em Belém. Preconiza a criação de uma Economia Mundial Solidária.É de autoria de Marcos Arruda.
Carlos Dória
LUCRAR SEM PRODUZIR:
CRISE FINANCEIRA COMO OPORTUNIDADE DE
CRIAR UMA ECONOMIA MUNDIAL SOLIDÁRIA
Marcos Arruda
“A competição não é a emulação industrial, é a emulação comercial.
Atualmente, a emulação industrial só existe em função do comércio.
Há até fases da vida econômica dos povos modernos em que todos são
tomados por uma espécie de vertigem para lucrar sem produzir.
Esta vertigem especulativa, que retorna periodicamente, desnuda o verdadeiro caráter da competição
que busca escapar da necessidade da emulação industrial”.
(Karl Marx, 1817 : 110-111)
ÍNDICE
I - Crise Profunda das Finanças do Capital: Crônica da Morte Anunciada
- Tendência ao Monopólio se Acentua
- Lucrar sem Produzir
- Especulação
- Crise de Insolvência
- Crise de Confiança
II - Tendências
III – Alternativas
- No Plano Nacional
- No Plano Internacional
IV – Felicidade Interna Bruta, caminho para Outro Desenvolvimento
Bibliografia
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O mundo é hoje mais rico do que nunca antes. E mais desigual também. Existe algo de podre no reino do Capital. Comecemos lembrando que, enquanto os investidores, que se conta em milhões, vivem os terrores de uma crise financeira, os povos empobrecidos da terra, que se conta em bilhões, vivem um cotidiano de crise crônica, que é a falta de acesso aos bens e recursos produtivos e ao essencial para uma vida humana digna: alimento, energia, trabalho prazeroso, disponibilidade de tempo para o desenvolvimento dos seus potenciais, padrão de vida digno e relações sociais e ecológicas afáveis, seguras, gratificantes e duráveis. Lembremos também um descobrimento recente da biologia: “Nós, seres humanos, somos animais que dependem do amor. Isto é evidente no fato de que adoecemos quando estamos privados de amor em qualquer idade.” (H. Maturana, 1996).
No reino do Capital, o modo dominante de relação econômica entre pessoas, empresas, territórios, países e hemisférios está marcado por mitos alienadores: escassez, natureza predatória, agressiva e competitiva do animal homem, a seleção natural competitiva, (Sandín, 2006:65-95) o inevitável domínio do ego sobre a dimensão ecossocial do Homo. Por esta via a humanidade caminha para a autoextinção, a menos que se decida a dar um salto quântico de consciência do Homo Sapiens Aggressans ao Homo Sapiens Amans, capaz de reconceber e recriar suas relações uns com os outros, com os coletivos sociais e com a Natureza, erradicando do planeta a violência, a fome, as guerras, a exploração, a destruição dos ecossistemas, o sofrimento e a infelicidade desnecessários!
I - Crise Profunda das Finanças do Capital: Crônica da Morte Anunciada
Quem escreve a história de qualquer crise do sistema do capital não pode chegar a outra conclusão: são crônicas da morte anunciada. Leiamos, por exemplo, John Kenneth Galbraith sobre a grande crise de 1929 (Galbraith, 1962). Galbraith faz o histórico da economia e das finanças dos EUA para mostrar que foram as fraquezas da economia e da estrutura e dinâmica corporativa que deram origem à crise, da qual o colapso do valor dos títulos (securities) foi apenas uma manifestação. Ele aponta que o colapso dos trustes de investimentos e das cadeias comandadas pelas holdings, movidos por um insaciável apetite pelo lucro fácil, “efetivamente destruíram a capacidade de tomar empréstimos e a disposição para oferecer empréstimos para investimento” (Galbraith, 1962:188). Tudo isso acontecia sem as necessárias regulações das autoridades e sem que os promotores privados da ciranda especulativa revelassem qualquer senso de responsabilidade. O mesmo acontece novamente 80 anos depois! Ao final de sua pesquisa, Galbraith afirma que a economia em 1929 estava fundamentalmente insegura. Ele aponta para cinco fraquezas que, desembocando sempre em mais endividamento, apontavam para o desastre. Um olhar para elas permite uma comparação com as debilidades que permeiam a arquitetura financeira mundial de hoje. Com a agravante de que a globalização tende a elevar a dimensão de qualquer crise econômico-financeira no centro do sistema às esferas sistêmica e planetária.
1. Má distribuição da renda: em 1929, 5% da população controlavam cerca de um terço de toda a renda pessoal. Ainda maior concentração da renda ocorre hoje nos EUA, onde o 1% mais rico controla 20% dos rendimentos do país e o salário médio subiu apenas 0,1% entre 2000 e 2007. Foi a remuneração baixa que levou as famílias a tomarem empréstimos para pagar a escola, a moradia, a saúde. As tarifas dos seguros de saúde privados subiram 68% naquele período. E o dinheiro para ampliar a oferta de bens e serviços migrou para a especulação financeira, aumentando as importações e gerando déficits.
2. Má estrutura corporativa: a empresa estadunidense nos anos 20, diz o autor, “havia aberto braços hospitaleiros a um número excepcional de promotores, falsários, contrabandistas, impostores e fraudadores. [...] uma espécie de enchente de ladrões corporativos”. Galbraith aponta para o gigantismo dos trustes de investimentos e as holdings como a principal debilidade corporativa, já que os dividendos das companhias que operavam na economia real (infraestrutura, transporte e recreação) pagavam os juros sobre os bônus das holdings a montante. Em economês, isto queria dizer grande risco de devastação por alavancagem reversa: a interrupção dos dividendos levava à insolvência dos bônus, à falência e ao colapso da estrutura inteira; a tentação de especular mais, em vez de atuar na produção, juntava-se à pressão deflacionária que limitava os ganhos e fazia desmoronar pirâmides corporativas! Renda predestinada ao pagamento de dívidas, impossibilidade de tomar empréstimos para rolar as dívidas ou para novos investimentos... “difícil imaginar um sistema corporativo melhor desenhado para continuar e acentuar uma espiral deflacionária”. (Galbraith, 1962:180-181) Hoje, o comportamento das corporações globalizadas é tão ou mais distorcido do que então. Prova disso são as falências, em clima de escândalo financeiro e ético, de megaempresas como a Enron, a Worldcom/MCI, e outros tiranossauros; sem falar na debacle corporativa da LTCM, do banco Bear Stearns, das financeiras Lehman Brothers e Merrill Lynch, e dos resgates com dinheiro público de megacorporções como a Fannie Mae, Freddie Mac, AIG, GM e outras.
3. Má estrutura bancária: a fraqueza foi evidenciada pela falência em cadeia que ocorreu naqueles anos, causada pelo medo e pela desconfiança. Só no primeiro semestre de 1929, 346 bancos faliram. Num ambiente de depressão, “com o colapso da renda, do emprego e dos valores as falências de bancos rapidamente se tornaram epidêmicas”, e o efeito repressivo sobre gastos e investimento alimentava ainda mais a depressão. Hoje, a falta de regulações rigorosas e a excessiva liberdade dos bancos de investimentos, instituições financeiras diversas e das próprias bolsas de valores para emitir diversas formas de dinheiro e para especular, somadas à existência de canais e praças financeiras que facilitam a fuga de capitais, a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro combinam altos rendimentos financeiros com altíssimos riscos para o sistema bancário como um todo. (Gurtner e Christensen, 2008) As leis não são rigorosamente aplicadas, os meios de fraudá-las se multiplicam.
4. Estado duvidoso das contas externas: durante mais de uma década depois da 1ª Guerra Mundial, os EUA gozaram de superávit comercial, ao ponto de pagarem suas dívidas com a Europa com aquele saldo positivo. Por sua vez os EUA recebiam pagamentos em ouro dos países que tinham consigo um déficit comercial; e os países deficitários tomavam empréstimos de bancos privados estadunidenses para cobrir aquele déficit. Empréstimos a países politica e economicamente instáveis, altas tarifas protecionistas pelo Presidente Hoover, dificuldades nos pagamentos pelos países endividados, insolvência de vários empréstimos, e queda das exportações estadunidenses contribuíram para a vulnerabilidade geral, especialmente dos agricultores. Nos dias atuais, os EUA tiveram um déficit comercial corrigido em 2007 de quase US$ 800 bilhões. Só com a China tem passivos de mais de US$ 1 trilhão em títulos do Tesouro Nacional. Sua dívida externa total saltou de menos de US$ 2 trilhões em 1980 para mais de US$ 5 trilhões em 2007 e metade dela é detida pelas economias mais fortes da Ásia. (Bulard, 2008:12) Se não fossem os donos da moeda de troca internacional, os EUA estariam ainda mais vulneráveis do que já são.
5. O estado de pobreza da inteligência econômica: depois da queda de setembro-outubro de 1929, a maioria dos conselhos dos economistas “eram quase unanimemente perversos”. A tentativa de ampliar a renda disponível para o consumo e manter o investimento de capital por meio de reduções de impostos não teve praticamente nenhum resultado, exceto em favor das camadas de mais alta renda; a manutenção do investimento, salário e emprego foi feita apenas enquanto não era financeiramente desvantajosa para as empresas; daí para a frente, as políticas quase inteiramente empurraram a economia para o precipício. O fundamentalismo do orçamento equilibrado imperou: não podia haver aumento de gastos públicos para aumentar o poder de compra e aliviar o empobrecimento; também não podia haver mais redução de impostos. Depois de 1930, esta regra ou fórmula cedeu à pressão do desemprego maciço. Além disso, o crescimento do estoque de ouro dos EUA foi enorme até 1932. Dois riscos assombravam a economia: abandonar o padrão ouro e alimentar a inflação. Mas em vez disso, o país entrou na mais violenta deflação de sua história. Os conselheiros viam embutido o risco de aumentos descontrolados de preços. Este temor reforçou a demanda pelo equilíbrio orçamentário. Limitou a baixa das taxas de juros, a abundância de créditos e a fácil tomada de empréstimos nas condições dadas. A rejeição de usar as políticas fiscal e monetária naquelas circunstâncias significou recusar toda política econômica governamental afirmativa. Os conselheiros econômicos eram unânimes em desacreditar todas as medidas disponíveis para o controle da deflação e da depressão: “triunfo do dogma sobre o pensamento”, conclui Galbraith argutamente. Atualmente, a fixação dos conselheiros influentes é na reativação da economia por quaisquer meios. Estão abandonando, pelo menos temporariamente, a dogmática neoliberal e injetando maciças cifras de fundos públicos nos bancos, empresas e fundações. E, como satisfação ao público contribuinte, estão estatizando partes importantes do controle acionário desses agentes econômicos. Na reunião do G20 de 15/11/08 em Washington D.C., os presidentes dos países mais afluentes e dos ‘emergentes’ do planeta decidiram adotar um plano de ação comum visando apenas aliviar os impactos da atual crise financeira (O Globo, 16/11/08: 28). Os EUA e a Inglaterra se recusaram a endossar a criação de uma regulação global padronizada e uma agência internacional com o poder de monitorar as atividades do sistema financeiro internacional, de forma a tornar obrigatório o cumprimento das regras. Não se falou em atacar os fatores da crise nem em redefinir o modo de desenvolvimento a serviço do qual o sistema financeiro opera, agora em processo falimentar. Os presidentes e seus conselheiros parecem vesgos para o principal, que é ir às raízes do problema.
Em suma, qualquer semelhança entre a quebradeira de 1929 e a de 2007-2008 não é mera coincidência! Outra sinalização da morte anunciada vem de diversas matérias político-econômicas, entre as quais um artigo publicado no Brasil e na Suíça no início da crise brasileira de 1999, que diz:
“O direito irrestrito de governos e empresas de emitir estes papéis provocou uma inundação de dinheiro virtual nos mercados do mundo. Pois grande parte deles é lançado na suposição de que o governo ou a empresa vai conseguir transformá-lo cedo ou tarde em riqueza real, e assim resgatá-lo pelo valor que ele supõe representar. Esta suposição faz parte da esfera subjetiva da economia, aquela que opera com base em valores não materiais, como a confiança, a antevisão, a esperança. E quando o governo ou a empresa não conseguem ressarcir o detentor dos seus dinheiros, tornam-se insolventes provando que sua suposição era falsa e que a confiança e esperança neles depositados era indevida, porque faltaram planejamento adequado, regras e supervisão para garantir que o jogo fosse correto e limpo, e porque seus dinheiros eram apenas virtuais [...] Vivemos hoje uma economia-cassino a nível mundial. E com ela um risco quase incontornável de uma crise financeira e socioeconômica de dimensão global [...] Na prática, o capitalismo neoliberal é o responsável pela economia-cassino que se globalizou no mundo atual.
“A enfermidade que se manifesta na hipertrofia do dinheiro e no sobre-endividamento só pode ser superada mediante um sistema de planejamento e regulação que hoje não existe, capaz de liquidar de forma radical com aquelas. É improvável que o próprio capitalismo estabeleça um tal sistema. Pois os capitalistas não querem dar-se conta de que é enfermidade, e que pode ser fatal para o próprio sistema. Quando se dão conta, não querem adotar medidas radicais de cura. Pois estas medidas também podem ser fatais para o sistema! Na verdade, o capitalismo está cada vez mais espremido entre duas pressões. Por um lado, a pressão em favor de planejamento da emissão das diferentes formas de dinheiro e do endividamento por atores públicos e privados, e a regulação dos fluxos de capitais; e, por outro, o risco de falência geral do sistema capitalista, caso não venha a adotar aquelas medidas.” (Arruda, 1999)
Curioso paradoxo, que se soma ao da falta de visão pragmática de longo prazo por parte dos “pragmáticos” governantes e empresários que cultuam o mercado e o dinheiro como deuses.
Tendência ao monopólio se acentua
A notícia da aquisição do Unibanco pelo Itaú, e da consequente formação do maior conglomerado bancário do Hemisfério Sul, com ativos avaliados em R$ 575 bilhões, não surpreende. Trata-se do movimento natural do capitalismo no sentido da oligopolização crescente dos mercados. Intensifica-se em geral durante as crises cíclicas de sobreprodução ou de sobreespeculação, como o mundo vive neste momento.
Um movimento suicida, pois vai-se estreitando a margem do que pode se chamar mercado. Onde não há liberdade na interação entre demanda e oferta, diz a doutrina capitalista, não há genuino mercado, mas sim uma espécie de ditadura monopolista. O poder do monopólio de manipular preços, necessidades e desejos para satisfazer sua insaciável sede de lucros prevalece sobre qualquer outro critério ou ética.
No contexto da crise financeira mundial, que começou a expelir gases tóxicos em 2007 e teve sua primeira erupção em setembro de 2008, este movimento faz parte de uma intensificação da tendência do capitalismo ao monopólio, conforme amplamente analisada por autores que vão de Marx a Paul Sweezy, Paul Baran e Harry Magdoff. O problema do monopólio, oligopólio ou cartel é múltiplo: impede a atividade de atores menos ricos e poderosos; manipula preços a seu belprazer, em busca do máximo lucro, impondo uma taxa de exploração também sobre os compradores/consumidores; externaliza custos com maior liberdade, onerando consumidores, contribuintes e meio ambiente; tem maior poder de influência sobre os centros de poder, financiando campanhas eleitorais e induzindo à corrupção funcionários públicos e governantes para obter maiores benefícios, gozando de virtual impunidade; etc. Porém, o mais grave é que quanto maior é a corporação, menor é sua capacidade de adaptar-se a condições socioambientais cambiantes. Por isso não hesito em usar a alegoria tiranossauro para qualificá-las, comparando-as aos grandes sáurios que desapareceram no fim do Período Cretáceo, quando ocorreu uma rápida mudança climática no planeta. Também não hesito em chamar o sistema político que prevalece hoje nos países capitalistas, inclusive o Brasil, de “corporatocracia”, termo usado por John Perkins no seu impactante livro sobre as estratégias do império estadunidense. (Perkins, 2004)
Os que elogiam a aquisição do Unibanco pelo Itaú, e todas as outras fusões e aquisições que têm ocorrido no mundo, parecem ignorar fatos importantes. Primeiro fato, que os ativos do novo conglomerado bancário equivalem a cerca de 25% do PIB brasileiro de 2007! Mesmo que o valor total desses ativos ainda seja pequeno, se comparado com bancos de grande porte dos países do Norte, ele é significativo em relação à renda nacional. Note-se que nos anos anteriores à crise os dois bancos gozaram de margens de lucro extraordinárias, parte significativa destas por suas atividades especulativas e por serem detentoras de títulos da dívida interna pública, que remuneram com as taxas de juros mais altas do mundo. Note-se também que, unindo-se, o Itaú e o Unibanco superam o Bradesco (ativos de R$ 422,7 bilhões) e o Santander-ABN Amro (R$ 328,1 bilhões). Em 21 de novembro o Banco do Brasil anuncia a compra de 71,25% das ações da Nossa Caixa, passando ao segundo lugar nesta corrida de sáurios, com ativos de (R$ 512,4 bilhões). Essa tendência à concentração avança também nos EUA. Vejamos dois exemplos:
* Os três maiores bancos – Bank of America Corp., J.P.Morgan Chase & Co. e Citigroup Inc. – tinham 21,4% de todos os depósitos do país no fim de 2007; com as vendas promovidas pelo governo dos ativos bancários do Washington Mutual Inc. ao J.P.Morgan e do Wachovia Corp. ao Citigroup, os três grandes passaram instantâneamente a ter 31,3% de todos os depósitos. Outros bancos menores também estão sendo abocanhados pelos grandes, agravando a concentração bancária nos EUA.
* Freddie Mac e Fannie Mae, as duas seguradoras autárquicas que há um mês receberam uma boia de salvamento de US$ 85 bilhões do Tesouro estadunidense, detinham juntas US$ 740 bilhões em crédito em 1990; US$ 1,25 trilhão em 1995; US$ 2 trilhões em 1999; US$ 4 trilhões em 2005. Em setembro de 2007, logo antes da estatização, seus ativos chegaram a US$ 5,4 trilhões, ou 45% do total do crédito imobiliário nos EUA, cerca da metade do PIB estadunidense!!! Descomunais sáurios financeiros, as duas sustentavam com garantias 97% dos títulos de empréstimos hipotecários. Eram o fim da cadeia imobiliária, os que vendiam seguros dos papéis de dívida, que se haviam multiplicado de forma descontrolada numa espiral gananciosa e irresponsável. Esta aceleração do valor dos seus ativos resultou da bolha imobiliária de 2001-2006 e da maré especulativa resultante do florescimento da engenharia financeira. (Warde, 2008:15)
Segundo fato, os novos tiranossauros oligopolistas estão chegando justamente quando se avizinha o tempo de sua extinção... Sim, pois a crise financeira vai certamente se agravar ao longo dos próximos dois ou três anos. E não é difícil prognosticar isto, dado que as autoridades da política econômica mundial não querem examinar as causas profundas da crise: um himalaia de dinheiro especulativo, sem base na economia real e, por isso, sem possibilidade de resgate pelos fundos públicos; a liberdade dos Bancos Centrais e dos agentes financeiros de manipular a taxa de usura a seu belprazer; a falta de regulações que garantam que as finanças sejam um instrumento para o investimento produtivo; os refúgios fiscais, as jurisdições secretas e os mil e um canais de evasão fiscal e cambial em todo o mundo para ali refugiar-se; a irresponsabilidade dos grandes bancos e empresas industriais de buscar lucros fáceis e abundantes na especulação financeira; e, envolvendo isto tudo, a compulsão de crescer, de consumir, de crescer mais, de consumir mais, e de inundar a terra com lixos e rejeitos de todo tipo.
Lucrar sem produzir
Esta é, numa palavra, a tônica da fase avançada do capitalismo mundial: lucrar sem produzir. Enquanto 850 milhões de seres humanos padecem e morrem de fome na Terra, outros ganham fortunas sem produzir, apenas especulando. Um sistema econômico que é irracional, ineficiente e imoral, do ponto de vista da maioria dos habitantes e dos ecossistemas do planeta. E que reproduz continuamente uma profunda divisão das sociedades e da espécie em classes sociais, que transcendem os territórios nacionais e se globalizam. A nomenclatura Norte Global e Sul Global, portanto, é adequada e precisa para identificar como a humanidade está dividida em classes sociais pelo sistema do capital, e de forma ainda mais cruel agora que a financeirização levou as carências, as desigualdades, a violência e a insegurança ao paroxismo. Como se expressa em cifras esta financeirização?
O valor das transações especulativas, segundo François Morin (2006) alcançaram em 2002 um novo patamar mundial: US$ 1.122,7 trilhões. Isto mesmo: um quatrilhão, cento e vinte e dois trilhões e 700 milhões de dólares, incluindo 699 trilhões de transações com derivativos, 384,4 trilhões de transações de câmbio, e 39,3 trilhões de investimentos financeiros. Aquele total é 34,76 vezes mais do que os 32,3 trilhões que correspondem a transações de bens e serviços, isto é, à economia real. Mas os anos seguintes agravaram a situação ainda mais. Entre 1993 e 2002 as transações com produtos de garantia de derivativos subiram de 200 trilhões para 300 trilhões. Entre 2003 e 2004 elas passaram de 300 para 874 trilhões! Note-se que os produtos dos fundos de garantia (hedge funds) equivaliam em 2002 a 50% das transações diárias em Londres e Nova York naquele ano. As atividades desses fundos são opacas e especulativas: em vez de aplicarem com vistas a reduzir os riscos, eles passaram a buscar aplicações de venda antecipada, de maior risco e mais alta rentabilidade se obtiverem um preço inferior de recompra. Entre os produtos de garantia estão os produtos de mercados organizados, padronizados e facilmente transáveis; e os contratos swap. Os primeiros representam US$ 23,8 trilhões, têm alta taxa de rotação e são transações puramente especulativas. Os contratos swap alcançaram US$ 122,5 trilhões com baixa taxa de rotação. Os estoques de produtos financeiros no mundo em 2002 eram de US$ 186,3 trilhões, ou 4,62 vezes mais que o PIB mundial naquele ano, mais as importações de bens e serviços, que era de US$ 40,3 trilhões. Fica claro que as transações financeiras nada têm a ver com a atividade econômica. A bolha financeira é real e ameaçadora.
ESPECULAÇÃO VERSUS ECONOMIA REAL
(em US$ trilhões)
2002
Especulação
Financeira Economia Real
Bens e Serviços
Transações
1.122,7 32,5
Estoque de produtos
186,3 40,3
Fonte: François Morin, 2006.
Especulação
Se você se coloca entre dois espelhos e olha para um deles, que vê? Uma fila sem fim de imagens de você. No outro espelho, outra fila sem fim de imagens de você. Mas só um você é real! Especular vem do latim speculum, espelho. É a produção de dinheiro a partir do dinheiro e não da produção de riqueza real. Por que fazer isto? Ganância. Sede de ganhar mais, de acumular dinheiro sem limites. Nisto o economista Muhammad Yunus tem razão, em sua entrevista a O Globo (12/10/08). Não tem razão, porém, quando diz que o sistema capitalista não é o responsável. Existe, sim, uma cultura da maximização dos lucros, mas existe o sistema de instituições e de relações sociais que lhe dá corpo! O coração e a ética do capitalismo é a busca de acumular lucro, dinheiro, capital, riqueza material. Vale quem tem capital. Seu criador é o trabalho humano, mas trabalhador e trabalhadora são para o capital apenas ‘fatores de produção’, ao lado do capital-dinheiro, das matérias-primas, das máquinas, do terreno, da energia, etc. Portanto, o responsável de primeira e última instância pela crise financeira que está abalando o mundo é o sistema do capital globalizado: sua compulsão de crescer indefinidamente, seu modo de ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’ reduzido a um padrão compulsivo de produção, de consumo e de exploração predatória dos ecossistemas, seu universo de valores – ganância, egoísmo, competição, e suas instituições de governança global, em particular o FMI, o Banco Mundial e a OMC.
Crise de insolvência
Muitos devedores deixaram de pagar quando o Banco Central dos EUA aumentou os juros, como já tinha acontecido com a dívida externa dos países do Sul nos anos 80 (Arruda, 1988). Falência e salvamento, com fundos públicos, de bancos de investimento, empresas de seguros e outras financeiras que atuavam como croopiers do cassino global! Mas nenhuma compaixão para com os países sobreendividados do hemisfério Sul, quando estes sofreram a consequência dos aumentos unilaterais da taxa de juros básica dos EUA no fim dos anos 70. A maior parte das dívidas eram contraídas em dólar, com cláusula de juros flexíveis.
A Auditoria Cidadã da dívida, que faz parte da Rede Jubileu Brasil, calculou que o Brasil teria terminado de pagar a dívida externa em 1989 e ainda teria a receber US$ 161 bilhões dos credores externos por pagamentos de juros em excesso entre 1973 e 2006, caso a taxa de juros sobre os empréstimos em dólar tivessem permanecido no seu nível histórico médio (em torno de 6%). Lembremos que quase a metade da dívida externa do Brasil havia sido contraída pelos governos ilegítimos da ditadura militar. Enquanto o Equador dá um exemplo ao continente ao realizar a auditoria integral da dívida externa, criando as bases técnicas e jurídicas para uma renegociação soberana com os credores, o governo Lula se recusa a ouvir a sociedade organizada na Rede Jubileu Brasil, que pressiona por uma auditoria integral da dívida pública, e insiste em manter um ciclo masoquista de aumento da dívida pública, manutenção de altas taxas de juros e câmbio não administrado.
Crise de confiança
Até os bancos pararam de emprestar um para o outro. A desconfiança começa a reinar e o Estado é chamado para canalizar recursos para sanear as contas dos agentes da especulação e aumentar o crédito ao consumidor. No plano psicológico, o objetivo é enfrentar a crise de confiança que tende a levar as pessoas e as empresas a não gastar e não emprestar. Sem crédito e sem demanda, os estoques das empresas produtivas se acumulam, elas reduzem a produção e os postos de trabalho, e o sistema inteiro começa a ruir. No Brasil, descobriu-se que bancos privados e públicos e grandes empresas industriais estavam especulando com os derivativos e o câmbio. Sem que seus acionistas e investidores soubessem dos riscos envolvidos! Agora estão tendo perdas significativas! Até 18/11/08, o governo já havia anunciado medidas do “pacote anti-crise” equivalentes a R$ 373,5 bilhões, que incluem maciços aportes ao BNDES para créditos facilitados a grandes e médias empresas, facilidades fiscais, e linhas de financiamento às montadoras estrangeiras. Mais rápido e eficaz seria adotar reformas redistributivas da renda e da riqueza do país, há muito prometidas e jamais realizadas.
II - TENDÊNCIAS
“Aqui reside o limite do capital: o limite da Terra”.
Leonardo Boff
O sistema centrado no capital, no lucro e no crescimento econômico ilimitado das empresas e da economia material não tem condições intrínsecas para gerar sua própria superação. Enquanto o espaço territorial do planeta permitia sua expansão, ele progrediu, multiplicando e globalizando bens, serviços, mercados e apetite de consumir. Sem ter conseguido realizar o que chama de ‘desenvolvimento’ e ‘progresso’ para a totalidade dos povos e dos cidadãos e cidadãs da Terra, e tendo depredado ou colocado em risco de morte grande parte dos seus recursos naturais e ecossistemas, esse sistema, promotor de ambição, ganância, voracidade e competição permanente entre pessoas, empresas e nações começa a chegar ao fim. Vivemos um momento da história humana em que uma civilização, com seu ideário cultural e seu modo de organização socioeconômica e política, caminha para a extinção, enquanto do seu interior brotam e se articulam os elementos que sinalizam para uma nova civilização e uma novo paradigma de ser humano e de vida no Planeta.
Os riscos de crise global e sistêmica gerados pelo modo atual de organização e operação da economia são compostos. Noutro espaço, elaborei algo sobre eles: (1) risco de colapso do sistema financeiro global; (2) o risco de uma explosão social de escala continental ou mesmo planetária; (3) risco de conflitos bélicos ampliados, com forte potencial de eclosão nuclear e de alcançarem, em algum momento não previsível, o âmbito mundial; (4) risco de crise ecológica em grande escala, sobretudo pela via do aquecimento global, dada a falta de vontade dos poderosos de tomar medidas radicais para reduzir e mitigar em tempo hábil os diversas consequências que se tornam causas de mais aquecimento: as emissões de gases-estufa, a queima das florestas tropicais, o aumento da temperatura da atmosfera, o degelo das calotas, o aumento do nível e da temperatura dos mares. Qualquer um destes riscos pode gerar um desastre de escala planetária; e a simultaneidade de sua eclosão pode ser catastrófica para existência da espécie humana na Terra.
A crise financeira chegou e, como indicamos acima, tem vocação global e sistêmica. Os riscos da crise financeira para a economia real incluem o de estagflação (estagnação da produção combinada com demissões maciças e preços altos devido aos custos financeiros), deflação (queda continuada dos preços, causada pela sobreprodução, pelos estoques em excesso, imobilizados pelo colapso dos mercados resultante de uma aguda perda do poder aquisitivo da população e da moeda nacional) e até depressão. É quando a crise financeira vira crise econômica e social dramática – não há investimento, a demanda entra em colapso, não há produção, desaparecem os empregos e o poder de compra, os produtos básicos se tornam raros e caros. O empobrecimento se torna endêmico e o risco de caos social fica iminente. A estes, devemos acrescentar os riscos ligados à tendência de crescimento exponencial do aquecimento global.
Aí o rei fica nu: o capitalismo revela sua natureza caótica e o risco de as elites apelarem para uma guerra se torna iminente. A guerra tem dois efeitos fulminantes: reativa a economia pela produção e comércio de armamentos, envolvendo uma complexa cadeia produtiva voltada para a morte; e distrai a população da crise sistêmica e da pressão por uma transformação socioeconômica profunda e radical. O capitalismo é um sistema entrópico, que tende à redução de tudo e todos a mercadoria, e a uma exacerbação do uso das energias sem preocupar-se com sua reposição, ou com a resiliência dos sistemas que comanda – do econômico e financeiro ao ecológico. No seu espaço-tempo histórico, cada agente é induzido a disputar contra os outros uma corrida desenfreada atrás da cenoura da felicidade para si próprio à exclusão dos outros. Mas a cenoura está presa à ponta da vara das riquezas materiais, que cada um traz amarrada no dorso. Resulta daí a tendência inevitável do sistema do capital mundial à dissipação da energia e ao caos.
Mas outro cenário faz parte do nosso complexo campo de probabilidades. Cabe aos que percebem essas tendências, e desejam evitar uma debacle civilizatória generalizada, agregar consciência e vontade em teias de relações não hierárquicas, conectadas pelas sinapses da ajuda mútua, do afeto e do acolhimento do Outro como diverso e complementar a mim. O fim desta etapa da História pode ser a aurora de um novo tempo, um tempo em que a Noosfera transcende a era crematística que a encadeava aos tesouros materiais. Um tempo que abrigue o respeito à vida, à sua diversidade e ao seu movimento em sentido ascendente do sempre mais complexo e espiritual. Um tempo de sintonia da humanidade com os ciclos naturais e com os misteriosos ritmos do Universo.
III - ALTERNATIVAS
A riqueza irreal que invadiu o planeta como um tsunami está destinada, por bem ou por mal, a desaparecer. Nem o conjunto dos fundos públicos do mundo poderia salvá-la, nem estes cobririam os prejuízos dos especuladores. Se as autoridades tentarem isto, vão inundar o mundo com outro tsumani de riqueza irreal, fechando um círculo vicioso irracional e catastrófico. As autoridades que se reuniram no Grupo dos 20 em São Paulo, e depois em Washington D.C., em novembro, tomaram decisões que apenas arranham a superfície do problema. Ocorreu um entendimento entre neoliberais e partidários de “um novo capitalismo” com presença maior do Estado. Para os primeiros, a presença do Estado vale para o período do saneamento das finanças nacionais e globais e depois ele deve de novo se retirar para que os ganhos sejam privatizados. Entre os dois momentos, socializa-se os custos. E volta-se depois ao “normal”. Para os outros, o Estado deve permanecer, com suas regulações, sua fiscalização e seu papel de redistribuidor do excedente produzido pela sociedade. Mas cada Estado que aja por si, sem que uma organicidade os articule e sem que o cumprimento das regras que venham a disciplinar os fluxos financeiros seja obrigatório.
A promessa de detalherem as medidas de saneamento nos próximos seis meses não consola: a crise vai continuar corroendo as estruturas e todos sabemos que, se as medidas não forem radicais e urgentes, o sistema financeiro mundial tenderá à combustão espontânea em alguns meses ou uns poucos anos mais, com terríveis consequências para a economia real, e, em particular, para as classes trabalhadoras e os setores excluídos.
As medidas a adotar são de curto, médio e longo prazo. Dependem do objetivo estratégico dos seus autores. Há três tipos de promotores de soluções para a crise. Primeiro, os que ficam na superfície dos sintomas e propõem reformas pontuais (ad-hoc) “para que logo as coisas voltem ao normal”. Sua premissa é que o “normal” é bom para todos. Para estes bastam as intervenções passageiras do Estado, transferindo dinheiro público para os bancos e empresas em risco de falência, resgatando assim sua capacidade de oferecer crédito e de aumentar o PIB a curto prazo. Seu horizonte parece limitar-se a aliviar os impactos da crise financeira e estimular a demanda interna dos países por meio de medidas fiscais. Segundo, os social-democratas de várias tendências que, ecoando Keynes, preconizam uma economia controlada pelo Estado, pelo menos enquanto a crise durar. Falam de colocar as finanças a serviço dos negócios e dos cidadãos. E planejam a ‘refundação global do capitalismo’ mediante uma completa reforma do sistema financeiro (Nicolas Sarkozy, em O Globo, 16/10/08, Rio de Janeiro). Enfim, há os que visualizam um movimento conceitual no sentido de um desenvolvimento integral do ser humano – pessoa e sociedade. Suas qualificações: endógeno, soberano, solidário e sustentável, que implique um planejamento global da economia partindo das comunidades e retornando a elas com recursos complementares e investimentos em nível regional e nacional para a apoiar e potencializar a realização do desenvolvimento local de forma plural, concertada e harmônica. Para este desenvolvimento uma nova arquitetura financeira, que integre o local com o nacional, o continental e o global, e resignifique neste contexto o papel da ONU como entidade potencialmente efetiva de governança global, se faz necessária e urgente. É nesta perspectiva que avançamos as seguintes propostas:
No plano nacional:
(1) Restabelecer o poder do povos de planejar e realizar o seu próprio desenvolvimento, individual e coletivamente, do espaço local e comunitário até o nacional e global, combinando gestão social com gestão estatal, usando as finanças como um meio apenas, pois o fim deveria ser o desenvolvimento dos potenciais materiais e imateriais do ser humano, pessoa e coletividade, seu bem estar e felicidade. O desenvolvimento endógeno, democrático, solidário e sustentável tem como referências a satisfação das necessidades humanas, a realização plena dos seus direitos, em particular os direitos à vida digna, ao controle democrático dos bens e recursos produtivos, ao bem estar e à felicidade. Um tal desenvolvimento não pode ser avaliado e medido pelos atuais indicadores de riqueza. Há que alargar o conceito de riqueza para incluir nele aquelas que correspondem ao desenvolvimento cultural, psíquico e espiritual da pessoa e das coletividades. A organização e articulação das classes sociais oprimidas, propondo e construindo concretamente relações sociais de produção autogestionárias e solidárias dentro e à margem do sistema do capital é indispensável e urgente. Tal processo terá o poder de atrair crescentes contingentes de trabalhadores desempregados, precarizados e informalizados, e também de políticos e de empresários conscientes das suas responsabilidades ecossociais para o campo da economia responsável, plural e solidária.
(2) Canalizar o dinheiro dos fundos públicos prioritariamente para os credores das dívidas social, histórica e ecológica, a fim de ajudá-los a reconstituir sua vida econômica familiar e comunitária, viabilizando sua solvência e aumentando seu poder aquisitivo. Seria a medida imediata mais justa e durável. Isto aliviaria a crise de liquidez e de insolvência na ponta da economia real e na esfera das necessidades, em vez de atuar apenas na ponta das instituições financeiras e na esfera da oferta. Infelizmente, os governos parecem dispostos apenas a medidas paliativas, como dar seguimento à prática hoje generalizada de passar fundos públicos para os bancos – os grandes ganhadores do cassino global - e as empresas que preferiram arriscar especulando do que investindo na produção. Isto corresponde a não mais que adiar a explosão final.
(3) Reestruturar a arquitetura financeira nacional a serviço de um modo de desenvolvimento orientado para as necessidades e aspirações das pessoas, comunidades e da Nação. Isto implica:
• eliminar o mito de um Banco Central independente, fazendo desta instituição responsável pela política monetária e fiscal um serviço ao plano nacional de desenvolvimento endógeno e soberano;
• controlar as entradas e saídas de capitais e os mercados monetários e financeiros, colocando como referência para eles o plano nacional de desenvolvimento soberano do país e não as estratégias de expansão de cada corporação;
• promover políticas que controlem ou eliminem as instituições e os mecanismos que promovem ou favorecem a especulação, como os derivativos, os mercados de futuro e outros;
• religar as finanças e a moeda com a economia real, criando regulações, limites e regras compulsórias para os fluxos de capital e a emissão das diferentes formas de dinheiro por agentes privados;
• fazer uma política de juros baixos e com teto limitado, que responda às necessidades dos consumidores e do setor produtivo, e não seja instrumento de usura;
• adotar e utilizar o controle do câmbio como instrumento de financimento da política de desenvolvimento endógeno e soberano;
• revogar a renúncia fiscal sobre investimentos estrangeiros em bolsas brasileiras e em terras e águas do território nacional;
• democratizar a gestão dos orçamentos públicos, incluindo a realização da auditoria integral da dívida pública da União, para lançar as bases técnica e jurídica para a renegociação soberana do seu montante e do seu pagamento, considerando também as dívidas histórica, social e ambiental, das quais o povo trabalhador é o credor;
• transformar a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, em Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, tornando os objetivos sociais do Orçamento Público prioritários em relação ao pagamento dos juros das dívidas financeiras.
• controlar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento da tecnologia, a fim de que as inovações sejam criadas e introduzidas em função do desenvolvimento humano e social, autogestionário e sustentável;
• mudar o sistema de propriedade excludente dos bens e recursos produtivos; terra, água e energia não devem ser consideradas mercadorias;
• promover o controle das finanças das comunidades por elas próprias, através de medidas como: a descentralização do dinheiro, o estímulo à multiplicação de instituições autogestionárias de poupança e crédito, os bancos comunitários e os bancos éticos, o uso de moedas complementares e a legislação adequada para apoiá-las.
(4) Tomar medidas eficazes de redistribuição da renda e da riqueza: a reforma agrária, reimplantando produtivamente no campo milhões de famílias de trabalhadores sem terra e sem rendimentos; a reforma fiscal, priorizando os investimentos públicos na economia interna e nas áreas sociais e limitando explicitamente os gastos com as dívidas financeiras; a reforma tributária progressiva, incluindo a imposição sobre as grandes riquezas, e a preservação das fontes constitucionais de financiamento das áreas de Seguridade Social; a reforma financeira, monetária e cambial; e a adoção da política nacional de remuneração cidadã.
(5) Declarar que as finanças e o dinheiro, em essência, são serviço público. Portanto, deveriam servir prioritariamente para gerar poder aquisitivo, equidade e bem estar para todos. O conselho de Keynes não deve ser esquecido: o país que quiser ter controle sobre seu próprio desenvolvimento, tenha controle sobre suas finanças. A atividade financeira não deveria ser um fim em si, nem deveria ter como motivação principal o lucro, mas sim o serviço à criação de riquezas e à satisfação das necessidades humanas e sociais e para a integração e o desenvolvimento soberano, democrático e solidário dos povos da América Latina e Caribe. Para isso deveriam estar voltados os bancos públicos, como o Banco do Sul, o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e os bancos estaduais.
No plano internacional:
(1) Criar regulações e imposições sobre os estoques e os fluxos financeiros, orquestradas internacionalmente e compulsórias; transferir parte das instituições financeiras para o controle governamental e intergovernamental.
(2) Criar instituições em nível nacional, continental e global com o poder de tornar efetivas essas regras e de sancionar os agentes que as violarem.
(3) Desmontar os refúgios fiscais e as jurisdições secretas, que servem para lavagem de dinheiros ilegais e para a evasão de capitais e divisas.
(4) Reformar radicalmente as instituições financeiras internacionais, seus princípios, funções e modo de operar, para que cumpram seus respectivos papéis de orquestradoras do desenvolvimento equitativo e sustentável dos povos e reguladoras do equilíbrio financeiro mundial a serviço daquele desenvolvimento.
(5) Reconhecer que não se trata apenas de uma crise das finanças. É mais uma crise do modo de produção capitalista, do sistema de poder centrado no capital e nas megacorporações que o detêm. Uma crise da economia neoliberal, que domina o planeta há três décadas. E uma crise que sinaliza outra mais profunda: a crise sistêmica, civilizacional, que atinge as dimensões objetiva e subjetiva da existência humana e social no Planeta e que põe em cheque o sistema do capital mundializado. A dominação da classe do capital sobre as classes trabalhadoras agravou-se e ampliou-se quando o retrógrado “produzir mediante a exploração do trabalho alheio” começou a involuir para a atual era em que prevalece o “lucrar sem produzir”. O excedente do trabalho de toda a sociedade vira alimento para os ácaros da especulação. Eles engordam sem limites, até o ponto da explosão, da qual o mundo capitalista globalizado está se aproximando perigosamente e sem hesitação.
(6) Promover uma globalização solidária e sustentável. A solução profunda para a crise implica o reconhecimento da necessidade de um novo modo de desenvolvimento global, não fundado na ganância egoísta e materialista, nem na uniformidade do pensamento único, mas sim na responsabilidade, pluralidade e solidariedade das sociedades e das culturas, na abundância material suficiente, na produção e intercâmbio ilimitados de bens não materiais, e no estabelecimento de novos indicadores para medir o bem estar e a felicidade humana. Apoiar-se num padrão de consumo consciente, voltado para o decrescimento econômico sustentável para as elites, e o crescimento planejado dentro dos limites da sustentabilidade natural e intergeracional para as maiorias oprimidas ou excluídas; evitar o desperdício e aplicar à relação com os recursos da Natureza o princípio dos quatro Rs: reduzir, reutilizar, reciclar, respeitar.
A ruína do sistema financeiro mundial virá, certamente, e com desastrosas consequências para a socioeconomia e o meio natural do planeta, a menos que os atores do poder institucional decidam mudar radicalmente o papel do dinheiro e do endividamento, e o sentido profundo do desenvolvimento.
IV - FIB - FELICIDADE INTERNA BRUTA: CAMINHO PARA OUTRO DESENVOLVIMENTO
“O ‘sempre mais’ produz placas de colesterol no coração no lugar da felicidade!”
Jean-Luc Gérard
Mas não há só más notícias. Um novo indicador de riqueza está sendo praticado, e tem o poder de mudar o eixo orientador do atividade econômica e da política de desenvolvimento. Obriga o governo (metas do planejamento, orçamento público, políticas públicas), os bancos, as empresas e cadeias de agregação de valor a redefinir suas metas operacionais em função do novo indicador, que incorpora um conceito abrangente e multidimensional de riqueza!
Em Campinas e Porangaba ocorreram em outubro e novembro de 2008 eventos em torno do FIB – o índice de FELICIDADE INTERNA BRUTA (FIB). Mais de 1000 pessoas no Sesc de São Paulo, 250 na Unicamp e umas 150 na Ecovila Parque Ecológico, em Porangaba, durante o fim de semana. Organização impecável pela monja hinduista Susan Andrews com sua eficientíssima equipe. Participaram dos três eventos, e de inúmeras entrevistas com a imprensa falada e escrita, três governantes do Butão, pequeno país nas faldas do Himalaia entre a Índia e a China, onde o FIB é aplicado há 12 anos com pleno êxito; e o canadense Michael Pennock e sua esposa Martha. Michael, especialista em saúde, falou sobre o tema FELICIDADE INTERNA BRUTA como um índice de desenvolvimento integral do ser humano, que no Butão substituiu o PNB - Produto Nacional Bruto, cujo único foco é o crescimento da economia.
“O índice FIB é uma abordagem holística às necessidades humanas, porque sem atender às necessidades tanto materiais como espirituais das pessoas e da sociedade, não é possível tornar realidade uma ‘sociedade boa e decente’.” (Thinley, 2007: 3-12) Seu núcleo é, pois, o postulado de que o bem estar físico e vital (social e econômico), mental e espiritual devem ser desenvolvidos simultaneamente no mundo contemporâneo. O objetivo do FIB é criar a conceituação e a motivação para um caminho alternativo de desenvolvimento, que nutra o processo de contrução de um ser humano e sociedade plenamente desenvolvidos. Este caminho alternativo toma o FIB como referência para o planejamento e a realização do desenvolvimento econômico e tecnológico, portanto orientando-o para seu fim maior que é o desenvolvimento humano e social. O desafio do FIB é operacional mas, primeiro que tudo, conceitual, paradigmático, civilizacional. E está em surpreendente sincronia com a crise de paradigma civilizatório que a Humanidade vive neste início de século e de milênio.
O índice do Butão leva em conta indicadores que cobrem nove campos da vida familiar e social da população:
1. Padrão de vida – tem a ver com todas as necessidades materiais e a economia real
2. Boa governança – partilha do poder de decisões e de gestão da economia e do desenvolvimento; a relação Estado, economia social, economia privada
3. Educação
4. Saúde
5. Resiliência Ecológica – capacidade de um ecossistema de recuperar seu estado inicial depois que ações humanas o alteraram
6. Diversidade Cultural
7. Vitalidade Comunitária
8. Utilização equilibrada do tempo
9. Bem estar psicológico e espiritual.
Um dos princípios que guia a aplicação dos nove campos às políticas públicas é que qualquer sobrevalorização de um fator gera desequilíbrio e prejuízo para os outros. Ou seja, o desenvolvimento socioeconômico tem que ser harmônico, omnilateral e omnidimensional. Outro princípio é que a realização equânime de cada um dos nove campos não ocorre espontaneamente. É necessário um planejamento do desenvolvimento econômico e tecnológico, orientando a atividade econômica para a realização das condições que geram bem estar humano e felicidade. Finalmente, há que reconhecer que a economia centrada no lucro e na acumulação individual de riqueza material por meio da mais cruel competição e do corporativismo egocêntrico não propicia as condições para o desenvolvimento integral das pessoas e coletividades humanas, como prova o estado atual das sociedades que a praticam mundo afora. Ela precisa ceder lugar a uma economia centrada no indivíduo social, no ser humano - que é ao mesmo tempo pessoa e coletividade, feminino e masculino, cotidiano e histórico. A práxis socioeconômica compatível com o FIB está baseada em valores como cooperação, reciprocidade, responsabilidade, pluralidade e solidariedade.
Evidências eloquentes do fracasso do paradigma atual de desenvolvimento e progresso, do ponto de vista da felicidade humana, foram apresentadas pela Dra. Susan Andrews para os EUA: duas vezes mais carros nos últimos 40 anos; 21 vezes mais plásticos; 25 vezes mais viagens de avião; três vezes mais produtos e seu consumo entre 1950 e 2005. Nos EUA, ¼ da população sofre de depressão; há duas vezes mais divórcios naquele período; três vezes mais suicídios de adolescentes; quatro vezes mais crimes envolvendo violência, cinco vezes mais presidiários. Constata-se que um dos aspectos mais graves da crise social e humana dos EUA é a perda do sentido de comunidade. O “cada um por si”, que é a base ideológica do sistema capitalista e do sistema de classes sociais que ele engendra, fragmentou a sociedade e lançou pessoa contra pessoa, empresa contra empresa, etnia contra etnia, nação contra nação.
O objetivo do indicador de felicidade é triplo: (1) superar a falácia do “quanto mais melhor”; (2) sensibilizar as pessoas para uma mudança de leitura do mundo e da economia, e para uma transformação das suas relações sociais e ambientais, inclusive de suas práticas de consumo; e (3) influir nas escolhas de governo no sentido da adoção de um índice de felicidade humana como instrumento de planejamento e de avaliação do desenvolvimento econômico e tecnológico.
Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas (Jornal do Brasil, 7/9/2008:E1) se utiliza da pesquisa do Instituto Gallup em mais de 132 países, para comprovar que o aumento da renda e da posse de dinheiro não é proporcional ao aumento da felicidade: para cada 100% de aumento de renda, a felicidade geral das nações sobe 15% apenas. O Brasil confirma esta observação pelo caminho inverso: é o 22º na classificação mundial de felicidade em contraste com sua 52ª posição na classificação de renda dos 132 países! Em suma, na coordenada felicidade-renda, a curva da felicidade progride com a progressão da renda até um ponto de inflexão, para além do qual mais renda passa a significar menos felicidade!
Desenha-se no Brasil, como em outros países, um movimento orientado para a popularização de um índice de bem estar e felicidade humana e social, orientado para incidir sobre o modo das pessoas, instituições e governos medirem a riqueza e se comportarem. O FIB é um instrumento muito poderoso para incentivar o consumo consciente, a substituição da lógica do lucro pela lógica do desenvolvimento integral das pessoas e comunidades, e a adoção de políticas públicas orientadas para o aumento da satisfação, bem estar e felicidade de toda a população dos seus respectivos territórios.
Diante da ameaça de crise global, o movimento do FIB traz uma visão prática de outra economia possível. Ele permite a convergência de movimentos como as redes de Economia Solidária (Mance, 2002: 42-52 e Verano e Bernal, 1998), que buscam a reconceitualização da economia, tomando como valor central e sentido o ser humano enquanto ser-relação, ou seja, enquanto um ser multidimensional, um ser individual e social ao mesmo tempo (Arruda, 2003, 171-222); e do desenvolvimento humano, integral e autogestionário, (Arruda, 2006: 151-218) como um processo orientado para o florescimento dos potenciais, qualidades e atributos do ser humano capazes de gerar uma vida individual e social de qualidade e de crescente felicidade.
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