Frei Betto *
Leonardo Boff completou 70 anos no último dia 14 de dezembro, festa de são João da Cruz.
Desde 1974, quando deixei a prisão e ele retornou de seus estudos na Alemanha, comparto a mesa e a palavra de Leonardo Boff. Duas vezes por ano, religiosamente, passamos juntos um fim de semana, trocando idéias e vivências com o Grupo Emaús, que reúne teólogos, pastoralistas, filósofos e cientistas sociais.
Juntos, assessoramos o governo sandinista da Nicarágua e a Revolução cubana em suas relações com a Igreja Católica. Estivemos um mês na China, em 1988, em contato com os cristãos interessados em encontrar o ponto de equilíbrio de suas relações com o regime socialista.
Leonardo Boff confidenciou-me, em Corrêas, RJ, em 23 de abril de 1987: "Li Platão, Santo Agostinho, e toda obra de são Boaventura, à luz de vela, no noviciado franciscano. Minha estrutura de pensamento é boaventuriana - as coisas não são, elas simbolizam. Tive experiências de Deus. Gosto de estar só. Minha espiritualidade é quase corporal. Não digo nada quando rezo. Rezo o Glória ao Pai e não peço nada. Só pedi por minha sobrinha, que agonizava. Fiz promessa de romaria a Aparecida. Ela sarou e eu cumpri a promessa.
"Na Europa, passei pela fase do pensamento germânico, racionalista, e perdi a fé. No comentário dos Salmos fiz a experiência dolorosa de recuperar a fé.
"Nunca rezei aos santos. A Nossa Senhora sim. E gosto muito da Trindade. Toda a minha vida é trinitária. Organizo tudo em três. Meu livro sobre a trindade é a culminância de toda uma busca. Busco recuperar Deus como Deus trinitário. Não sei se rezo. Às vezes me sinto rezador por viver nessa atmosfera religiosa.
"Para mim, fazer teologia não é rezar, é refletir sobre Deus. Rezar é não pensar, é sentir Deus. É o coração que sente Deus, como dizia Pascal. A razão não pensa Deus.
"Procuro estar nas mãos Dele. Ele me põe e me tira das crises. Nem me preocupo em me salvar. O inferno é uma verdade assintótica, como dizia Rahner, para nos alinharmos em Deus. Todos saímos de Deus e a Ele voltamos".
Este é Leonardo: místico, teólogo, militante.
Ecoteologia
Todos torcemos para que a ciência encontre o modo de expulsar os vírus que contaminam o organismo humano. Seria exagero imaginar a Terra/Gaia, um corpo vivo, aniquilando o principal vírus responsável por sua destruição - os seres humanos?
Esta é uma das inquietações de Boff, hoje dedicado à ecoteologia. Censurado por Roma, ele deixou a Ordem Franciscana e o ministério sacerdotal. Não abandonou, contudo, seu ofício teológico nem rompeu sua comunhão com a Igreja. Agora, como leigo, ampliou seu espaço de liberdade. Cada novo livro que sai de sua pena representa mais um grito em prol dos pobres e da saúde da Terra.
Toda a sua obra mais recente é um alerta de salvação da Terra e de seu fruto mais precioso - a própria humanidade. Boff convida-nos a uma viagem aos primórdios culturais - as narrativas ancestrais sobre a origem do mundo - e científicos, a autogênese da matéria, do Big Bang à noosfera. Observador atento, ele analisa os pecados capitais antiecológicos num campo específico - a Amazônia - e percorre a holística senda que nos conduz da física quântica às narrativas indígenas sobre o Universo, da cosmogênese à Cristogênese, numa versão hodierna de Teilhard de Chardin. Propõe-nos, enfim, o empenho na construção de uma "biocracia", democracia sociocósmica, centrada na vida.
Da lógica pericorética do Universo - "tudo interage com tudo em todos os pontos e em todas as circunstâncias" - deriva o estilo narrativo de Boff. Ainda que o pulsar das estrelas e a irrupção das células, a exploração mercantil da natureza e a comunhão intratrinitária do Pai com o Filho e o Espírito Santo, pareçam coisas distintas, elas reluzem, na obra dele, como desenhos de um mesmo tapete. Não se pode compreender o significado de uma figura sem apreender sua intrínseca relação com as demais. "Nós somos, como partes do Universo, todos irmãos e irmãs: as partículas elementares, os quarks, as pedras, as lesmas, os animais, os humanos, as estrelas, as galáxias. Há um tempo estávamos todos juntos, sob forma de energia e partículas originárias, na esfera primordial; depois, dentro das estrelas vermelhas gigantes; em seguida, em nossa Via Láctea, no Sol e na Terra. Somos feitos dos mesmos elementos. E como seres vivos possuímos o mesmo código genético dos outros seres vivos, das amebas, dos dinossauros, do tubarão, do mico-leão-dourado, do Australopiteco ao homo sapiens-demens contemporâneo. Um elo de fraternidade e sororidade nos une objetivamente, coisa que São Francisco, no século XIII, intuiu misticamente. Formamos a grande comunidade cósmica. Temos uma origem comum e, certamente, um mesmo destino comum", escreve ele.
Engana-se quem, na ótica dos velhos paradigmas, julga o autor um neófito panteísta convencido de que tudo é Deus e Deus e mundo se identificam. Sua abordagem é inversa, é panenteísta - Deus se faz presente em todas as coisas. Toda a Criação e as criaturas são sacramentos da presença inefável de Deus. Como também se equivocam aqueles que julgam que Boff trocou a libertação dos pobres por um mero modismo de defesa do meio ambiente.
Sua teologia da libertação amplia-se, centralizando-se no pobre, principal vítima também da destruição ambiental, e nomeando-o como sujeito de uma alternativa que reate os vínculos que foram rompidos entre o ser humano e seus semelhantes e entre a humanidade e a natureza, da qual somos expressão e plenitude. "A teologia da libertação deve assumir, do discurso ecológico, a nova cosmologia, a visão que entende a Terra como um superorganismo vivo articulado com o inteiro universo em cosmogênese", ele propõe. Por isso, insiste que "importa, em primeiro lugar, ampliar o sentido da libertação. Não apenas os pobres e oprimidos devem ser libertados. Mas todos os seres humanos, ricos e pobres, porque todos são oprimidos por um paradigma que a todos escraviza, de maltrato da Terra, de consumismo, de negação da alteridade e do valor intrínseco de cada ser".
Um homem pode mudar de lugar social e de função institucional. Entretanto, a matriz de sua identidade permanece imutável e, por vezes, inapreensível. Em cada livro ou palestra, Boff revela-se inelutavelmente franciscano. Seu paradigma pessoal tem nome e data: Francisco de Assis (1181-1226), "um ser de desejo", como ele define.
[Autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros].
Fonte: ADITAL.
Um comentário:
Temos poucos homens como Leonardo Boff e mesmo assim a mídia gasta quase todo seu tempo a ouvir homens de mentalidade limitada.
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