É uma dessas tardes de sol intenso em Salvador. Dezenas de militantes do MST, bandeiras à mão e sorrisos no rosto, reúnem-se à frente do Centro de Convenções da Bahia. Não estão ali para ocupar um latifúndio improdutivo ou organizar mais um protesto em defesa da reforma agrária. A mobilização é, sim, para inaugurar um monumento a Simom Bolívar — um busto doado ao Brasil pelo presidente venezuelano Hugo Chávez.
Por André Cintra
''Atos dessa natureza contribuem muito para a integração da América Latina, politizam todo esse processo e fazem com que a integração não fique só nos marcos da economia. Ações assim extrapolam para a política, para a ideologia, para a cultura'', afirma ao Vermelho João Paulo, membro da coordenação nacional do MST.
Afora a presença do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, destacam-se os participantes, as bandeiras e as faixas da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil) e do PCdoB. No palco, um pouco mais tarde, estariam reunidos nada menos que cinco presidentes latino-americanos — além de Chávez, o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, o cubano Raúl Castro, o boliviano Evo Morales e o hondurenho José Manuel Zelaya Rosales.
É uma das últimas ações do calendário do MST em 2008 — ''um ano difícil'', segundo João Paulo, devido às limitações da política agrária de Lula e à crise econômica. Mas também um período em que o MST acumulou ''para que 2009 possa se transformar num ano de lutas e mobilização social''.
Leia abaixo a entrevista de João Paulo ao Vermelho.
Você avalia que 2008 foi positivo para o MST?
João Paulo: Foi um ano difícil, com uma conjuntura adversa — fruto de pouco avanço na reforma agrária — e uma crise econômica nestes últimos meses. Mas o MST avalia que 2008 foi positivo, sim. Conseguimos avançar na área de formação política, na educação — formamos muita gente — e tivemos um bom processo de elaboração política.
Avançamos em cooperação agrícola e política de agroindústria, de crédito, mas também na política de alianças. O MST fez, neste ano, boas alianças na CMS (Coordenação dos Movimentos Sociais) e na Assembléia Popular.
Avançamos internacionalmente na Via Campesina e saímos de uma grande conferência na América Latina para uma conferência mundial. Então a nossa avaliação do ano é muito positiva. E avaliamos que o principal é se preparar para 2009. Acumulamos para que 2009 possa se transformar num ano de lutas e mobilização social.
Por outro lado, as críticas do MST ao governo Lula se tornaram mais recorrentes e muito mais intensas em 2008, não?
João Paulo: Concordo. Acho que 2008 foi um ano de vários avanços no governo Lula — um ano de bom crescimento econômico. Mas, no tema da reforma agrária, o governo deixou muito a desejar. Este vai ser o pior dos seis anos de governo Lula em relação à política agrária, o ano em que o governo menos assentou famílias — em torno de 20 mil. Em outros anos, foram assentadas 100 mil, 80 mil famílias. Isso faz que com se aumentem as críticas ao governo.
Além disso, tivemos muitos problemas com o avanço do agronegócio, em especial do etanol. Muitas áreas do Centro-Oeste e da Amazônia foram desapropriadas e usadas para o plantio de cana-de-açúcar. Grandes empresas transacionais que atuam no Brasil também avançaram em áreas do Sul e do Sudeste para o plantio do eucalipto.
Sem dúvida nenhuma, isso deixa um clima de hostilidade a essa forma de governar. É um governo de esquerda que continua priorizando essa política de investimento em áreas de monocultura. Além de criar um conjunto de problemas ambientais e sociais, não é uma política que distribui renda no campo. Por isso é que aumentaram as críticas.
Apesar disso, o MST insiste em dizer que não é oposição ao governo — e também não é de situação. Somos de um movimento que vai continuar com sua autonomia, defendendo temas importantes e fazendo críticas às medidas que não trazem avanço para a sociedade.
Em novembro, o governo fez uma série de audiências com os movimentos sociais. Deu para sair dessas reuniões — não tão freqüentes — com uma boa expectativa?
João Paulo: De modo geral, não podemos nos queixar da abertura do governo, que recebe e não criminaliza os movimentos sociais...
Mas até você mesmo já reclamou disso, em 2007, numa audiência da CMS com o ministro Luiz Dulci. Disse que o governo Lula só procurava os movimentos sociais em épocas de crise...
João Paulo: Os movimentos até têm uma certa receptividade. O problema é que o governo, de fato, só convoca os movimentos sociais em períodos de crise. Nós até conseguimos chegar ao presidente, mas o governo tem uma dificuldade muito grande em governar para os movimentos sociais. É uma governança muito ligada ao Congresso Nacional, e isso dificulta.
Acho que as audiências que houve no mês de novembro foram importantes, mas não trouxeram — não puderam trazer — melhorias à pauta dos movimentos sociais. Foram audiências para debater grandes políticos, especialmente a crise econômica. Na nossa leitura, é muito difícil o governo querer dividir o ônus da crise com os movimentos sociais. E não vamos mesmo aceitar, de modo nenhum, qualquer proposta que possa tirar direitos dos movimentos. Isso está muito claro para o MST, para as centrais sindicais e para todos os movimentos sociais.
O que é importante, para nós todos, é que o governo aproveite 2009, um ano sem eleição, para continuar o diálogo com os movimentos. Mas que seja um diálogo mais pragmático, que permita avançar em algumas questões concretas, como os grandes temas estruturais — educação, saúde, moradia, reforma agrária...
Os movimentos promoveram, em dezembro, uma série de atos e reuniões em Salvador — como a Cúpula dos Povos do Sul e a Marcha pela Unidade Latino-Americana e Caribenha. Em nenhuma dessas atividades a participação do MST sobressaiu tanto quanto nesta inauguração do busto em homenagem a Simom Bolívar...
João Paulo: Você achou isso?
Sim. É só impressão minha?
João Paulo: Nós tivemos presentes durante toda a cúpula com uma representação menor, é verdade, e participamos também da marcha organizada pelas centrais. Mas aqui, na inauguração do busto, há elementos importantes. Primeiro, é pelo carinho e pela boa relação que temos pela Venezuela. Estamos fazendo um esforço com outras organizações da CMS para ajudar a construir a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas).
E achamos que é extremamente importante ter a oportunidade de inaugurar um monumento de Simom Bolívar no Brasil. Atos dessa natureza contribuem muito para a integração da América Latina, politizam todo esse processo e fazem com que a integração não fique só nos marcos da economia. Ações assim extrapolam para a política, para a ideologia, para a cultura.
Numa atividade como essa, ter a presença do Evo Morales e do Hugo Chávez, do próprio Raúl Castro, é muita honra para nós, brasileiros do MST. Por isso a nossa movimentação para representar aqui o MST e a Via Campesina. A nossa vontade era estar com uma delegação muito maior para receber esses presidentes. Mas, como não foi possível, viemos nós aqui trazer nosso abraço fraterno a tão importantes chefes de Estado.
Fonte:Site O Vermelho.
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