"Os torturadores têm que responder pelo que fizeram"
O ex-padre português Alípio de Freitas, que participou da luta armada nos anos 70, fala dos tempos de guerrilha, da prisão sob a ditadura e do surgimento do crime organizado nas prisões.
Norma Couri, de Lisboa
ÉPOCA – Por que o senhor lutou durante duas décadas para reaver a cidadania brasileira?
Alípio Freitas – A cidadania brasileira me livrou da expulsão imposta pelo (então ministro da Guerra Amauri) Kruel em 1962. Ao general minha atuação nas Ligas Camponesas soava incômoda. Na mesma hora em que soube disso Jango reuniu o (ministro das Relações Exteriores) Hermes Lima, o João Mangabeira (da Justiça), e ordenou “tratem disso”. Não é uma cidadania qualquer. Jango sabia que se eu voltasse ao Portugal de Salazar estava perdido. Graças a ele sou o único que escapou vivo das Ligas Camponesas, tinha passaporte, fugi para Cuba em 64 quando o golpe militar acabou com tudo. Contei isso na carta que enviei ao Tarso Genro, não quero que a terra me caia em cima sem que eu reveja minha cidadania.
ÉPOCA – Junto veio a indenização pela expulsão da Universidade de Brasilia?
Freitas – Veio, uns R$ 700 mil, mais aposentadoria de R$ 6 mil mensais, de que, apesar de o (jornalista) Cláudio Humberto ter dito na coluna que eu já recebi duas mensalidades, não vi a cor, e nem me interessa tanto. Acho imoral uma aposentadoria astronômica concedida a gente que não perdeu nada. Soube por exemplo que as filhas do Vinicius de Moraes pleiteiam uma, em nome do pai. Mas eu perdi muito, se não fosse o Helio Fernandes (jornalista, diretor da Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro), que nem era de esquerda, me tirar dos camelôs, eu, professor universitário, só teria sobrevivido vendendo camisas.
ÉPOCA – A Tribuna da Imprensa deu espaço para você?
Freitas – Não podia aparecer na redação porque minha carteira foi negada pelo Sindicato de Jornalistas (na época presidida no Rio pelo Caó), mas escrevia e ganhava. Era um apátrida, até o passaporte que me levou primeiro a Moçambique e depois a Portugal era clandestino, concedido por um cônsul, desses que salvaram vidas por outras guerras. A Tribuna, que durante oito dias apoiou o golpe militar, foi o único jornal empastelado pelo general Figueiredo, e o Helio Fernandes, o único que me aceitou como jornalista. Não pedi nada a ninguém, tinha um passado “negro”, estava metido em tudo que o golpe ceifou, até na revolta dos fuzileiros navais, já tinha sido preso e seqüestrado ainda na campanha do Arraes, e o (delegado Sérgio) Fleury queria me ver morto como matou o Marighela (Carlos Marighela, ex- deputado comunista e fundador do grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional). Só não tive problemas com os bombeiros. Não podia comprometer um amigo.
ÉPOCA – Seu passado negro inclui a fundação da Falange Vermelha?
Freitas – Isso foi a salvação dos presos políticos da Ilha Grande, onde fui parar cinco vezes, sempre misturado a assaltantes e bandos armados para nos apontar a todos como assaltantes de bancos. Mas o exemplo é mais forte do que qualquer teoria, os presos aprenderam muito conosco, como leitura dos clássicos – eu emprestava livros (teses marxistas, teatro, cinema)--, organização e noção do coletivo.
ÉPOCA – Não foi o germe do PCC?
Freitas – A polícia percebeu tarde o erro de juntar os dois grupos, e cometeram mais dois erros ao nos separar. Porque mataram na prisão essas lideranças que aprenderam noções importantes sobre como estar no mundo, e depois levaram presos paulistas às cadeias cariocas para desmantelar grupos. Deu no que deu, a população é refém dos prisioneiros. Quem está preso são os cidadãos ricos cercados de grades, guardas armados na porta, carros blindados. O medo toma conta enquanto livres estão os da cadeia.
ÉPOCA – Havia mais estrangeiros presos?
Freitas – Um colombiano preso por engano e outro português, quase fundador do PCB, passaram por lá. Eu era o único estrangeiro metido nessa história e devo ter sobrevivido porque a coisa estourou lá fora. Se me matassem o mundo ia saber. Isso não me livrou do pau-de-arara, das solitárias, dos choques no corpo todo, das torturas violentas, dos guardas do manicômio, de perder 25 quilos, de ouvir os berros dos companheiros. Não me livrou de ser o último a ver o Mario Alves, e o João Macena feito um coelho esfolado no Doi-Codi do Rio. Os torturadores têm de responder pelo que fizeram, a Justiça deve isso à memória das pessoas, o Brasil tem de ter vergonha.
ÉPOCA – Não poderia ter sido trocado pelo embaixador alemão ou suíço ?
Freitas – Estava na lista mas meu nome foi vetado. Tinham medo da minha influência sobre os presos, era removido a toda hora de prisão e estado, um inferno, eu chegava a torcer para voltar ao Carandiru. Mas forçava todos a se importar com os outros, a barganhar com os guardas, trocamos a TV na cela pela retirada do (poeta) Alex Polari do isolamento. Aliás durante a Copa de 70 não queríamos dar ponto para o Médici e foi só os soldados ouvirem nossa torcida pelos estrangeiros para um engatilhar o fuzil, e o outro avisar que ia tirar a TV da cela. Na Ilha Grande fiquei amigo de presos comuns, como William da Silva, que dos 16 aos 70 só teve cinco anos em liberdade, organizou a fuga de presos políticos na Lemos de Brito em 67. E dos políticos, como Nelson Rodrigues Filho, que me apresentou ao pai, que só conversava sobre futebol, que não ia mudar de lado, mas mudou a cabeça. Quando ouviu tanta coisa, ele nunca mais foi amigo dos amigos dele.
Fonte:Revista Época.
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