sexta-feira, 20 de março de 2009

A RECONSTRUÇÃO DO PARLAMENTO

Mauro Santayana

As denúncias se avolumam contra o Senado. O presidente José Sarney tomou a iniciativa de exonerar do cargo o diretor-geral da Casa, e, em seguida, solicitou o afastamento de mais 131 diretores e administradores. A prudência recomenda aguardar a investigação dos fatos imputados. Comprovadas as irregularidades, cabem, contra os culpados, as medidas administrativas e judiciárias pertinentes. E os cidadãos têm o direito de indagar por que o Senado necessita de tanto pessoal e tantos diretores para os serviços de apoio aos seus membros. Na Câmara, ocorre o mesmo.

A transferência da capital se fez em ato de ousadia necessária, com providências que deveriam ter sido excepcionais e de curta duração, como as vantagens oferecidas aos servidores a fim de que se transferissem para o interior. Logo depois de inaugurada, em 1960, Brasília era a magra e seca paisagem do sertão central, dilacerada pelas máquinas, suja de poeira, em meio ao vazio e à desolação. Era preciso atrair os servidores com as "dobradinhas", as necessárias moradias funcionais e vantagens ainda maiores para a cúpula do governo. Se o país estivesse em tempos estáveis, tudo chegaria a seus eixos, alguns anos depois. Mas a renúncia do presidente Jânio Quadros levou à turbulência política durante os meses seguintes e ao golpe militar de 1964. Registre-se que os norte-americanos já vinham tentando o golpe desde o governo Vargas, e estimularam as agitações políticas daqueles meses de Jango, para lhes facilitar a ação. O país crescia e ameaçava Washington, com sua posição interna e externa, naquele momento da Guerra Fria. Depois do governo de Juscelino, o Brasil democrático já não cabia no passado do "yes sir".

O governo militar, como não podia permitir a independência do Legislativo, e precisava de servidores civis, não só manteve as vantagens excepcionais: ampliou-as, com as famosas "mordomias". É de se lembrar que um só ministro consumiu 900 quilos de carne em sua residência, durante um mês. Essas abusivas facilidades só deixaram de existir com a redemocratização, em 1985. Mas o Parlamento, ressalvadas que devem ser as exceções, não conseguiu recuperar-se plenamente dos 21 anos de sujeição, em que a maioria servidora do regime era mantida mediante o uso combinado da cenoura e do açoite.

O que era aberração, causada pelas circunstâncias do salto histórico, tornou-se uma forma de viver, um simulacro de cultura. A transição democrática, acossada pela urgência de restabelecer os ritos constitucionais, com a nova Carta, não ajudou na restauração dos padrões parlamentares republicanos. Ao mesmo tempo, o governo se via atormentado pelas dificuldades econômicas, a dívida pela inflação crescente, as reivindicações sociais e a pressão dos neoliberais. Além disso, a implacabilidade da sucessão biológica foi mudando o perfil dos parlamentares, que era muito mais discreto durante a República de 1946. Em suma, o Parlamento foi perdendo substância, e muitos aventureiros – alguns até mesmo facínoras – o assaltaram. O que ocorreu em Brasília passou a ser modelo nos estados. As mesas diretoras das casas parlamentares deixaram de acompanhar o dia-a-dia da instituição, delegando a responsabilidade aos diretores-gerais. Alguns deles foram íntegros servidores, outros, não. Estabeleceu-se, ao longo do tempo, a cumplicidade entre parlamentares e os administradores, mediante a troca de favores.

O senador José Sarney, o deputado Michel Temer e seus companheiros das mesas diretoras do Congresso são chamados a realizar profunda reforma no Parlamento. A primeira providência aconselhável é a de congelar os quadros do pessoal e não contratar mão-de-obra terceirizada. Os servidores concursados – em número mais do que suficiente para atender às necessidades das duas Casas – têm a proteção constitucional da estabilidade (menos, é claro, quando infrinjam as leis), mas, em caso de vacância, não devem ser substituídos, até que se reduzam ao estritamente necessário.

O contrato entre os cidadãos e o Estado se baseia na confiança dos eleitores em suas instituições. No momento em que essa confiança se rompe – e, pelo que estamos vendo, essa ruptura é a cada dia mais evidente – as instituições perdem a legitimidade. Tudo pode ocorrer.

Sendo de crise, a hora é de sacrifícios que devem ser distribuídos com equidade, já que a recessão é resultado direto da iniquidade. E para restabelecer o bom senso é necessário ter coragem. Temer e Sarney estão sob os olhos escrutadores da História.
Fonte:JB

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