José Graziano da Silva
Vergonhoso. Assim o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, descreveu a distribuição, em plena crise econômica, de US$ 20 bilhões em bônus pelos `banqueiros de Wall Street` a eles mesmos.
A declaração foi feita em 29 de janeiro, poucos dias após a realização, em Madri, de uma reunião convocada pela Espanha e ONU para discutir o combate a fome que deu continuidade aos debates da Conferência de Alto Nível sobre a Segurança Alimentar Mundial, promovida pela FAO, em Roma, em junho de 2008.
Embora o encontro de Madri não tivesse a intenção de levantar recursos, ao seu final o presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero, anunciou novos aportes a esta luta: mais de US$ 6 bilhões ao longo de cinco anos.
As doações reafirmam o compromisso de dezenas de países com a erradicação da fome. Entre Roma e Madri foram prometidos mais de US$ 20 bilhões para este fim. No entanto, elas também demonstram a dificuldade em levantar os recursos
necessários para garantir a segurança alimentar de bilhões de pessoas em todo o planeta, estimados pela FAO em US$ 30 bilhões anuais (melhor não comparar essa cifra com o bônus distribuído!).
Há também outra questão. Para que os US$ 20 bilhões de Wall Street chegue aos seus banqueiros, basta uma transferência eletrônica; já os recursos para combater a fome precisam se transformar em ajuda alimentar para países em situação de
emergência e em investimentos em infraestrutura agrícola, saúde, educação publica, assistência técnica e crédito para os agricultores familiares para garantir a segurança alimentar.
Considerando a dificuldade de levantar recursos para combater a fome e em transformá-los em benefícios concretos na vida de quase um bilhão de pessoas subnutridas no mundo, a reunião de Madri teve alguns avanços importantes.
A declaração final, assinada por representantes de mais de 120 países, diz que a atual situação de insegurança alimentar é `inaceitável` (provavelmente adjetivo mais próximo a `vergonhoso` que uma declaração dessas possa usar).
Ao mesmo tempo, relembra que cabe aos Estados a responsabilidade primária pela garantia do direito à alimentação e reconhece a necessidade de aumentar a ajuda internacional destinada à erradicação da fome.
Também se afirma a importância de reforçar as redes de proteção social e promover o desenvolvimento rural sustentável.
Além disso, o texto formaliza o apoio ao Marco Global para a Ação, uma proposta da equipe de Alto Nível das Nações Unidas para combater a fome, que recupera o `enfoque de duas vias` defendido pela FAO e aprovado na Cúpula Mundial de Alimentação de 1996.
A estratégia consiste, basicamente, em dar apoio imediato às famílias com maior necessidade e criar as condições para que elas possam garantir a própria alimentação no médio e longo prazo.
O Marco Global para a Ação traduz o enfoque de duas vias em ações muito específicas como, por exemplo, a importância de promover programas de merenda escolar e de compras da agricultura familiar, já implantados no Brasil. São iniciativas cuja implementação mesmo países com menos recursos para investimentos sociais podem considerar, já que elas nem sempre significam maiores gastos.
A Declaração de Madri reconhece ainda que a fome é um problema global (haja vista a alta dos preços dos alimentos e o impacto da crise econômica no número de
subnutridos, que subiu de 848 milhões para 963 milhões entre 2005 e 2008) e precisa de uma solução global, incluindo a eliminação de subsídios que distorcem o comércio internacional.
Por isso, os países signatários da declaração defendem a coordenação dos esforços internacionais na luta contra a fome e apoiam a criação de uma Aliança Global para a Agricultura, Segurança Alimentar e Nutrição.
Os contornos precisos dessa Aliança Global ainda não estão claros, mas a declaração sugere que eles sejam definidos num amplo processo, facilitado pela ONU, de consultas com governos, sociedade civil e organizações internacionais.
Nem precisamos criar novas estruturas ou mecanismos de financiamento para alcançar uma maior coordenação e participação social. Podemos aproveitar melhor os recursos - humanos e institucionais - que já existem. Entre elas, está o Comitê sobre a Segurança Alimentar Mundial, no âmbito das Nações Unidas, e a Aliança Internacional contra a Fome (www.iaahp.net) criada em 2003, que pode ser a peça que falta para transformar a vontade política em obrigação. Ela pode ser o agente coordenador dos esforços para alcançar o objetivo de erradicar a fome e incentivar os novos investimentos que serão precisos.
A Aliança Internacional também reconhece a importância da sociedade civil, algo que pode ser comprovado também pela experiência brasileira.
Logo após sua posse, o presidente Lula definiu como prioridade garantir que todo brasileiro pudesse comer três vezes ao dia. Esse compromisso foi assumido por toda a sociedade, que teve um papel fundamental, especialmente através do Consea, na elaboração e promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan). A mudança é significativa: tornou um compromisso de governo em dever do Estado.
Não é a toa que o Brasil é citado como um dos modelos a ser seguido nesta área. Do reconhecimento legal do direito à alimentação à implementação da estratégia do Fome Zero e de programas específicos como Bolsa Família, a merenda escolar e as compras da agricultura familiar, o Brasil mostra como transformar o discurso em ação.
O compromisso e a experiência brasileira já foram decisivos para colocar o tema na agenda pública na nossa região. Junto com o então presidente da Guatemala, Oscar Berger, o presidente Lula promoveu a criação da Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome em 2005, coordenada pela FAO.
Em dezembro de 2008, na Cúpula sobre Integração e Desenvolvimento realizada na Bahia, os líderes de todos os países da América Latina e do Caribe referendaram a iniciativa, afirmando que deveriam conjugar nela os esforços regionais para erradicar a fome.
Obviamente que, sozinho, o Brasil - ou qualquer outro país - não acabará com a subnutrição no mundo. Mas o Brasil pode liderar através de seu exemplo, ajudando a tornar a garantia da segurança alimentar uma realidade para todos.
Publicado orginalmente no Valor Econômico dia 06/03/2009
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
Fonte:AEPET.
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