quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A ELEGIA DA AMIZADE.

Copiado do blog do Luis Nassif

Por antonio francisco.

Faz muito tempo não lia nada tão terno sobre um caso concreto de amizade, num relato que ficou em primeiro lugar no concurso para homenagear os 50 anos da revista Humboldt.

Deliciem-se:

http://www.goethe.de/wis/bib/prj/hmb/pt4903949.htm

A Humboldt 99, comemorativa dos 50 anos, mostra os resultados do concurso que promoveu tendo como tema “Amizade: Fisionomias de uma relação complexa” . Sua capa estampa o primeiro lugar em fotografia, ganho pela brasileira Renata Beltrão, mostrando peixes em sacos plásticos, que dizem muito sobre a “liberdade” que gozamos no dia-a-dia.

De guerras e pepinos

Renata Beltrão, Brasil:

Sem título, Bairro da Liberdade, São Paulo, Brasil, 2007Teaser.

Meu amigo (o melhor até hoje) chama-se (ou chamava-se?) Arnoldo Waitman. Tínhamos 12 anos e cursávamos o último ano do “primário” numa cidadezinha do Pampa Gringo, quando um medíocre escritor argentino, transformado em ministro da Educação do governo militar de 43, teve a idéia de implantar o ensino da religião católica nas escolas. Arnoldo era judeu. Os Waitman eram os únicos judeus na minha cidade e o fato de seus filhos serem “cortados” os tornava alvo da chacota de todos.

A Guerra Civil espanhola havia terminado poucos anos antes. Meus pais, meus avós - todos os meus ancestrais espanhóis até onde pude averiguar - faziam parte daquele grupo que juntara trigo para mandar para os soldados republicanos famintos que tentavam impedir que Franco tomasse Madri. Em 1939, meus pais e meus avós passaram a ser, à distância, uns derrotados a mais e, em 1943, continuavam a manter a bandeira tricolor na alma e o coração repleto de inimigos: Franco e seus malditos generais e coroneis, e os padres, os malditos padres que os haviam ajudado a subjugar o povo. Assim havia imensas causas e razões para eu ter o meu melhor amigo.

Porque meu pai decidiu que eu não tivesse aula de religião na escola, em razão de que a religião era o ópio do povo, e porque o padre de seu povoado de Zamora tinha mandado fuzilar o professor de seu povoado de Zamora, e porque Arnoldo era judeu, ele e eu, às terças e quintas, das 10 às 11 da manhã, enquanto todos os nossos colegas “tinham” religião, Arnoldo e eu, repito, ficávamos no pátio da escola sem saber bem o que fazer, sozinhos, marcados, segregados, humilhados, magoados. E, desde então, amigos.

Amigos porque, além disso, a minha mãe e a de Arnoldo resolveram levar para a escola, nas fatídicas terças e quintas, algo assim como uns sanduíches grandes que nos entregavam por um buraco da cerca: os da mãe de Arnoldo tinham pão, pepino e maionese, e os que a minha levava (dentro de uma latinha que se abria com uma chave quase mágica) eram de pão com queijo e carne moída. O jogo de xadrez veio depois. Arnoldo me ensinou e, no final do ano, eu já conseguia empatar algumas partidas. Só lhe dei o xeque-mate pastor porque ele deixou.

No mais, resta dizer que éramos o motivo do falatório de uma cidade ofendida: como os Waitman e os Rodríguez eram capazes de desacatar Deus e insultar a Igreja! Como podíamos comer, enquanto os outros rezavam? E o xadrez? O que era esse tal xadrez? Arnoldo e eu, nós sabíamos disso, passamos a integrar o grupo dos marginalizados aptos a ser chicanados e agredidos, junto com os dois homossexuais e as três prostitutas da cidade. E nossa amizade atingiu o auge assim: um espirituoso me disse que os judeus tinham um pinto diferente, que o cortavam. Peça-lhe para mostrar, peça e vai ver. E eu pedi a Arnoldo para me mostrar seu pinto, ele me mostrou e eu vi como, naquele momento, uma dor e um medo de cinco mil anos de perseguições assomavam a seus olhos e senti que ele era meu amigo, que o seria para sempre, sem me importar nem um pouco que a glande de seu pinto estivesse à mostra. “Tanto faz - disse-lhe - é igualzinho ao dos outros.” A dor e o medo de cinco mil anos, percebi imediatamente, ficaram reduzidos à metade.

Alguns anos depois os Waitman deixaram a cidade. Quando completei 20 anos, fui eu embora. Não era tempo de internet, nem de celular, e Arnoldo e eu nos perdemos de vista. Em 57, andei pelos vulcões da Guatemala com o pessoal de Arbenz que resistia nas montanhas. Em 76, li que três guerrilheiros
tinham sido mortos em Buenos Aires num “combate” com as tropas regulares. Um deles se chamava Arnoldo Waitman, mas suponho que não tenha sido o “meu” Arnoldo Waitman, porque em 76 o meu teria 45 anos, que já não era a idade normal dos guerrilheiros.

Continuo jogando xadrez. Continuo passando maionese no pão e pondo rodelas de pepino ou untando com carne moída e pondo fatias de queijo. “Que gosto mais esquisito!”, diz meu filho. Acontece que o pessoal de hoje sabe pouco sobre ritos, sobre religiões de verdade. Às vezes, até deixo que ele me dê um mate pastor. “Eh, joga direito! Você está distraído”, ele me diz. “Estou jogando bem”, lhe respondo. E inclino o meu rei com a elegância e (espero) a bondade com que o fazia Arnoldo.

Guillermo Rodríguez
nasceu em Villa Cañas (Argentina) em 1931 e reside na cidade argentina de Córdoba. Jornalista ativo, tem uma coluna diária no Hoy día Córdoba e é conhecido por seu ciclo na TV “3 a las 9″. Publicou, entre outros, os livros Encerrar la dama, El círculo y el cambio e El livro de las equivocaciones. Recebeu numerosos prêmios na Espanha e na Argentina.

Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt Redaktion
Maio 2009

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