sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O DIREITO DE COMER GELATINA.

Urda Alice

Sem citar o Bolsa Família, o Pro-Uni, as reformas e a expansão de oportunidades ao ensino, Urda Klueger demonstra aqui a necessidade de radicalização da democratização do sistema escolar no Brasil, de forma simples e cativante:

A Salete foi menina temporã, nascida quase por engano, quando sua mãe já passava muito dos quarenta anos. Ela nasceu já com irmãos casados e sobrinhos. É importantíssimo, nesta história, contar desde já que a mãe, os irmãos, as cunhadas, os sobrinhos, toda a gente na casa de Salete era analfabeta, gente que não tivera a menor chance de aprender no passado e que não via o porquê de aprender mais tarde. Lá na casa dela defendiam-se coisas assim:

- “ Vacinas? Cruz credo, toda a nossa gente se criou sem tomar dessas besteiras! Nem morta que deixo filho meu tomar!”

Há que se considerar que Salete poderia ter seis irmãos vivos, mas só tinha três. Os outros, a falta de vacinas levara fazia tempo, pequenos ainda.

Não houve o que fizesse a mãe de Salete deixá-la tomar uma vacina – ela cresceu, mesmo, porque tinha saúde e sorte. Nem mesmo a madrinha conseguiu convencer a mãe.

Pois é, a madrinha. Quando se viu mãe de novo, D. Zulmira pediu à patroa que batizasse a menina, já que a patroa fora boa e dera enxovalzinho e tudo para a criança extemporânea. E a patroa levou a função a sério: não conseguiu nada com as vacinas, mas bateu pé quanto à escola: a Salete iria para escola, custasse o que custasse. A madrinha matriculava, comprava uniforme, comprava material, inventava histórias tenebrosas para a mãe da menina – o fato é que Salete foi para a escola desde o prézinho, a mãe se sentia obrigada ao ver a madrinha gastar dinheiro com aquelas bobagens de cadernos e livros.

Vamos dar um pulo na história. Tínhamos parado no prézinho – eu presenciei bem a coisa quando Salete já estava na quinta série. Mesmo aos trancos e barrancos, inteligente e esperta como era, na quinta série Salete estava plenamente alfabetizada e muitas outras coisas já aprendera, mas o seu grande diferencial em relação à família era a leitura. Pela primeira vez naquela família as pessoas podiam comer ... gelatina, ou pudim de caixinha, porque agora havia alguém que podia ler as embalagens e dizer como aquelas coisas deveriam ser feitas! Virou um luxo naquela casa comer gelatina, um luxo negado a todas as gerações anteriores daquela família. E a gelatina era só um símbolo: a capacidade de leitura de Salete modificava um monte de coisas para todo o mundo. Por exemplo, chegava gente naquela casa e dizia:

- “Dona Zulmira, a senhora pode fazer faxina para mim? É na rua tal, número tal.” – ou – “Fulano, estou precisando de um ajudante de pedreiro. Esteja amanhã cedo na rua tal, número tal.”

E, no mais das vezes, a gente daquela casa não conseguia chegar lá e perdia os empregos, porque não conseguia ler os nomes das ruas, os números das casas, o que estava escrito no ônibus. Eu presenciei estas coisas. E presenciei como Salete foi se tornando o centro da família: ela ia junto, achava o endereço, sabia o ônibus certo, ninguém mais perdia emprego ou oportunidade. Aí todo o mundo começou a dar valor à escola de Salete. Aí os sobrinhos dela começaram a ir para a escola também.

Hoje Salete é uma moça prestes a fazer vestibular. Quer ser professora. Ninguém mais que ela viu bem de perto a amargura de não se saber ler. Acho que quando ela alcançou o poder de fazer a sua família comer gelatina, inteligente como é, ela entendeu tudo. Você, que está lendo esta crônica, e que sempre comeu gelatina desde pequeno, saiba como é que é terrível o desconhecimento da leitura: até o direito de se comer gelatina pode ser tirado de quem não sabe as letras! Uma idéia é olhar aí em torno do seu mundo, para ver se alguém está sem esse direito. Sempre é tempo de encaminhar a tal pessoa para uma escola de adultos.

Blumenau, 22 de Julho de 2003

Urda Alice Klueger

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