Copiado do blog "Vi o Mundo", do Azenha.
Vi o Mundo, por Luiz Carlos Azenha
William J. Astore, Tomgram Dispatch
É início de 1965, e o presidente Lyndon B. Johnson enfrenta decisão crucial. Os EUA devem “escalar”, no Vietnã? O presidente deve dizer “sim”, ao pedido dos comandantes militares, que querem mais soldados? Ou deve mudar de estratégia, diminuir o envolvimento dos EUA (considerar, inclusive, a completa retirada), decisão que lhe permitirá concentrar-se no front doméstico e cuidar de construir “A Grande Sociedade” que espera construir?
Todos sabemos o que aconteceu. LBJ ouviu os generais e especialistas em política exterior, e houve a escalada, com consequências trágicas para os EUA e resultados calamitosos para o povo do Vietnã, sobre o qual choveram as bombas do poder dos EUA. Naufragado cada vez mais fundo no Vietnã, LBJ em pouco tempo perdeu o rumo, depois perdeu também a coragem – e sequer candidatou-se à reeleição em 1968.
O presidente Obama está hoje à beira de precipício semelhante. Deve aceitar o pedido do general Stanley A. McChrystal – mais de 40 a 60 mil soldados para o Afeganistão? Ou deve seguir outra estratégia, desescalar, diminuir o número de soldados, considerar, mesmo, a completa retirada – decisão que lhe permitirá concentrar-se na assistência pública à saúde dos norte-americanos, uma de suas principais urgências domésticas?
Temo que o impasse seja total. Nessa sua “guerra de necessidade”, Obama evidentemente já excluiu qualquer possibilidade de seguir a via da “redução”; de “retirada”, então, nem se fala. O caso, então, está limitado a uma “escalada light”, com mais soldados, embora não tantos quantos McChrystal está pedindo; mais especialistas norte-americanos, para treinar o exército afegão; e, mesmo, mais investidas com aviões não tripulados em território do Paquistão e novas 'operações especiais', e guerra, também, contra o Paquistão.
Obama fracassou no primeiro teste de comandante-em-chefe, o que o impedirá de chegar ao segundo mandato; e acabará como LBJ, cujos sonhos grandiosos foram derrotados por uma guerra que os EUA jamais venceriam e não venceram.
Os saberes convencionais: escalada militar
Que conselhos Obama tem ouvido, e o levaram a decidir sobre a estratégia atual para o Afeganistão e sobre aumentar o número de soldados? Com certeza não ouviu os mais céticos. Tampouco, os independentes, equivalentes, no século 21 ao que Mary McCarthy ou Norman Mailer foram, no século 20. Com certeza, Obama está ouvindo os militares, os almirantes, ou ex-generais e ex-almirantes que hoje ocupam posições-chaves ditas “civis”, na Casa Branca e no círculo mais interno do poder nos EUA.
Vê-se, pelos gestos, que Obama aderiu aos saberes convencionais de militares de carreira, aposentados ou da ativa, saberes que, nos corredores do Pentágono são chamados de “expertise técnico-militar comprovada” em tudo quanto tenha a ver com estratégia, guerra e, também, como sempre, relações internacionais.
Mas... os EUA não têm acumulados saberes melhores que esses? Não sabem, como Glenn Greenwald lembrou recentemente, que a revisão da estratégia conduzida pelo general McChrystal, foi ditada por uma “comunidade de política exterior amante da guerra”, que reúne os suspeitos de sempre – “os Kagans, um representante do Brookings [Institute], Anthony Cordesman, alguém da Rand [Corporation]” – exclusivamente para exigir mais soldados e mais guerra?
Os EUA não sabem, como Tom Engelhardt recentemente lembrou, que os “conselheiros civis” de Obama incluem “Karl W. Eikenberry, tenente-general aposentado e atual embaixador dos EUA no Afeganistão; Douglas Lute, tenente-general, hoje principal conselheiro especial da presidência sobre Afeganistão e Paquistão (que foi chamado “czar da guerra” quando, no governo Bush, ocupava a mesma posição que ocupa hoje); e James Jones, general aposentado dos Marines, atual conselheiro para segurança nacional; para não falar de Robert Gates, secretário de Defesa de Obama, ex-diretor da CIA”? Por que, então, tanta surpresa, se “as decisões cruciais sobre a guerra são entregues aos militares e, na prática, os EUA entregaram a eles também as questões de política exterior”? Os militares sempre pedem mais soldados, mais dinheiro e mais guerra. Sempre foi as sim.
Pois Norman Mailer[1], com certeza, não se surpreenderia com o atual estado de coisas. Infelizmente, morreu em 2007. Veterano de guerra, autor afamado do romance de guerra The Naked and the Dead (1948) [Os nus e os mortos]; premiado com o Pulitzer, por suas matérias sobre os protestos da era Vi etnã (The Armies of the Night (1968) [Os exércitos da noite. Os degraus do Pentágono], autodidata, durão, dos que não gostam de dança de salão, Mailer testemunhou (e dissecou) a versão Vietnã do que vemos hoje se repetir no Afeganistão. Em 1965, Mailer declarou, em frase curta, que a melhor opção para os EUA era “sair imediatamente da Ásia”. Ponto. Parágrafo.
Os saberes não-convencionais: arrancar de lá os rapazes
Obama terá coragem e sabedoria, para arrancar de lá os soldados norte-americanos? Cortesia de Norman Mailer, aqui vão três ideias-marcadores não-convencionais, que o podem dirigir nessa direção:
1. Não faça guerra – e, claro, não aprofunde o envolvimento dos EUA – em local que nada signifique para os norte-americanos. Em palavras que se aplicam perfeitamente ao Afeganistão de hoje, Mailer escreveu, em 1965: “O Vietnã [para os norte-americanos] não tem rosto. Quantos norte-americanos algum dia visitaram aquele país? Quem conhece a língua que lá se fala, que indústrias existem, que cara tem o país? Nem sabemos nem queremos saber. Os vietnamitas não nos interessam. Se estivéssemos guerreando contra marcianos, o povo dos EUA estaria mais emocionalmente envolvido na guerra.”
2. Cuidado com “efeitos dominó” e outras metáforas enviesadas, no sudeste da Ásia, ou seja onde for. A teoria do dominó afirmava que, se o Vietnã, então dividido entre norte e sul, se unisse num só país comunista, outros países asiáticos, inclusive Tailândia, Filipinas, talvez até a Índia, render-se-iam ao comunismo inevitavelmente, caindo como dominós que dependem uns dos outros para manter-se em pé. Nada disso aconteceu. Quem caiu foi o comunismo, ou, melhor dito, metamorfoseou-se sob nova cara, “com a qual podemos fazer negócios” (parafraseando a ex-ministra britânica Margaret Thatcher).
Não é o caso de dominós comunistas, no teatro de operações que já se conhece como Af-Pak. Mesmo assim, os medos dos norte-americanos são igualmente enganadores: se o Afeganistão cair em mãos dos Taliban, o Paquistão também cairá, abrindo uma caixa de Pandora de terroristas anti-EUA, cujas metralhadoras, na fervente imaginação dos EUA, outra vez estão sendo convertidas em nuvens de cogumelos atômicos.
Apesar da ampla difusão da teoria dos dominós em seus dias, Mailer jamais lhe deu qualquer importância. A retórica dos dominós, escreveu ele em 1965, “sugere que, muito mais do que proteger nossa posição contra exércitos que se aliem contra nós, nós estamos tentando ocultar o fato de que não há inimigos – que nunca houve dominós; que sempre só houve castelos de areia; e que estamos a um passo de nos afogar numa maré montante de nacionalismo. Estranha política internacional, que vive de metáforas para pregar a favor de cada vez mais guerra; metáforas imprecisas são fraude.”
Eu ainda acrescentaria que considerar países e pessoas como dominós inertes (podem cair ou não, mas não se podem mover de onde sejam postos), que só poderiam ser ‘salvos’ pela ação ou pela inação dos EUA, exagera a importância real que os EUA tenham e superinfla a importância que supõem ter. Antes que comece a inevitável discussão sobre “Quem perdeu o Afeganistão?” ou “Quem perdeu o Paquistão?”, acho necessário lembrar que nunca, nem por um instante, Afeganistão e Paquistão e seus cidadãos foram propriedade dos EUA e, portanto, dado que jamais foram ganhos, tampouco podem ser perdidos.
3. Cenouras e porretes podem funcionar para fazer andar mula empacada, mas não se recomendam para um povo determinado a encontrar seus melhores caminhos. Como diz Mailer, de outro ponto de vista: “Bombardear um país e ao mesmo tempo oferecer-lhe ajuda é tão moralmente repugnante quando surrar alguém e, entre uma surra e outra, exigir beijos.”
Ao mesmo tempo em que teleguiados Predator e Reaper norte-americanos escaneiam o território afegão, lançando mísseis para decapitar terroristas e, embora sem intenção, decapitam também crianças, os EUA se autoconsolam oferecendo dinheiro para que os afegãos reconstruam seu país. Acontece então que, cada vez que a hidra inimiga perde uma cabeça, nascem-lhe outras cabeças, porque os ‘danos colaterais’, que só fazem aumentar, já estão dando origem à segunda geração de vingadores. Os dólares da ‘ajuda’ são canalizados para corporações multinacionais ou para funcionários corruptos de governos corruptos, e sobra bem pouco para os afegãos realmente necessitados. Mesmo que sobrasse muito, nem assim haveria o suficiente para comprar a adesão deles; e, isso, ain da sem cogitar de comprar “corações e mentes”.
Se os EUA continuarem a argumentar com bombas, ao mesmo tempo em que seus dólares são usados para azeitar os esquemas da corrupção, nada conterá a sangria daqueles (só até hoje!) 228 bilhões de dólares.
E se Lindon Johnson tivesse dado ouvidos a Mailer em 1965?
Pouco antes de LBJ cruzar seu Rubicão e determinar a escalada no Vietnã, poderia ter escolhido outro caminho e determinado a retirada. Nas palavras de Mailer:
“A cena estava preparada para partirmos – só se falava da corrupção do governo do Vietnã do Sul e dos generais do Sul, covardes que faziam da covardia meio de vida. Ouvíamos notícias de que os 40 mil soldados do norte estavam derrotando os 400 mil soldados do governo. Líamos nos nossos jornais, que os Vietcongues já estavam usando armas norte-americanas, compradas de desertores ou capturadas em combate contra forças do governo; àquela altura, já sabíamos que, do nosso lado, era uma guerra vazia.”
Onde acima se lê “o governo do Vietnã do Sul”, leia-se “o governo de Hamid Karzai”; e onde se lê “os vietcongues”, leia-se “os Taliban”. Basta isso, e o parágrafo acima poderia ter sido escrito ontem, sobre o Afeganistão. Sabemos que o governo de Karzai é corrupto; que as últimas eleições foram fraudadas; que o exército afegão é construção imaginária, quase totalmente inventado por Washington; que os soldados afegãos vendem ao inimigo as armas que recebem dos EUA. Mas por que as lideranças políticas norte-americanas não viram até hoje o que Mailer já vira no Vietnã: que a guerra do Afeganistão também é “uma guerra vazia” para os EUA?
Mailer jamais entendeu a escandalosa autorreferência e a estupidez estratégica de Washington, para ele impenetráveis e incompreensíveis como um grande mistério, mas nem por isso deixou de condenar a decisão de Johnson, que concordou com a escalada no Vietnã.
Para Mailer, LBJ revelou-se “homem regido pela compulsão, como um jogador que teme que, caso pare, caso se afaste da mesa de jogo, seu coração exploda de tensão.” Johnson, como quase todos os norte-americanos, Mailer concluiu, era de uma espécie de grupo minoritário, que não se define em termos de raça ou etnia, mas em termos de “alienação, um alienado dentro da própria identidade; alienado por um duplo senso de identidade e, por isso, à mercê de um ego que exige ação, ação, cada vez mais ação, para assim definir, pelo menos, alguns limites rudimentares de algum tipo de identidade.”
Mailer descreveu esse ímpeto norte-americano para a autoconsciência mediante ação ininterrupta, sempre em aceleração contínua, e que, sendo o caso, sempre exige mais e mais escaladas militares, numa espécie de metáfora mista: “é como o pântano de uma praga” no qual os norte-americanos foram apanhados e no qual continuam a afundar. Nessa condição, o único alívio possível é “massacrar gente que não conhecemos.”
Sinceramente, não sei o que fazer da análise de Mailer, muito mais emocional à maneira de “No coração das trevas”, do que racional. Mas acho que o presidente Obama precisa exatamente disso: de algum tipo de conselheiro Maileriano – feroz, apaixonado, profético, provocador e profano. Precisa muito. Precisa já.
Os especialistas militares que cercam Obama não fazem senão exibir sua métrica guerreira e exigir mais força, mais força (a ser distribuída, é claro, com precisão infalível e perfeita competência técnica). Acho que Mailer argumentaria: supomos que eles só entendam a força. Mas e se o problema formos nós? Se nós, mais do que ele, só entendermos a força?
Mailer, certamente, teria coragem para deixar-se ver como “fraco” em matéria de defesa, porque saberia ver que os norte-americanos não temos cavalo nesse páreo. Acho que Mailer reconheceria intuitivamente a sabedoria do grande estrategista chinês Sun Tzu, que escreveu, há mais de 2 mil anos, em A Arte da Guerra, que “vencer 100 vitórias em 100 combates não é o ápice da sabedoria. Subjugar o inimigo sem combater, sim, é o ápice da sabedoria.” Os generais norte-americanos querem sempre os 100 combates! Mesmo sem qualquer esperança de realmente subjugar algum inimigo algum dia.
Obama precisa, em resumo, de menos generais e ex-generais e de mais Normans Mailers – vozes de livre-pensadores que se querem cada vez mais distanciados da caixa pentagonal onde fenece, manietado, todo o pensamento de Washington. Obama deve fazer calar essas vozes que pedem mais soldados e mais guerras, que vêm dos “especialistas” e dos militares que o cercam; só assim conseguirá ouvir a voz dos Mailers de hoje, dos dissidentes mais corajosos e mais obcecados. E Obama terá de ouvi-los, para não repetir LBJ e seu maior erro – e para não ter aquele mesmo patético destino político.
Nota de traducão:
[1] Quase todos os excertos de Mailer foram extraídos de um discurso que ele escreveu para o “Dia do Vietnã”, 25/5/1965, em Berkeley, California, reproduzido em Cannibals and Christians (New York, 1966), fascinante coleção de prosa afinadíssima e poesia ruim.
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