It’s about nothing
Seminário Liberdade de Imprensa e Democracia na América Latina frustra a platéia por não apresentar qualquer discussão relevante e ainda deixa palestrante estrangeira sozinha na noite fria de São Paulo. Evento poderia suscitar discussões acaloradas a partir do próprio texto de convocação, que em sua primeira linha afirma a mentira de que a América Latina está “há mais de 20 anos sem ditaduras nem golpes de Estado bem sucedidos”, ignorando solenemente o golpe que derrubou o presidente legítimo de Honduras em julho de 2009, impediu pelas armas o seu retorno, fechou meios de comunicação contrários ao golpe e segue matando os líderes da resistência democrática.
Vinicius Souza
Nos anos 90, o seriado cômico estadunidense Seinfeld fez enorme sucesso na TV mundial apesar de ser explicitamente “sobre nada”. Quatro sujeitos comuns, em situações aparentemente comuns, conversando o tempo todo sobre lugares-comuns. Isso pode ser até engraçado na TV. Mas quando um seminário internacional se dispõe a tratar de temas importantes como liberdade de imprensa, formas de censura, controle estatal sobre a mídia, crise de representatividade e relação entre mídia e democracia, o que se espera dos palestrantes, especialmente nesse momento histórico no Brasil, são análises profundas, tomadas de posição claras, denúncias sérias de movimentos contrários à liberdade e indicação de caminhos para superar os problemas nessas áreas tão críticas.Foi o que fizeram no ano passado, por exemplo, os participantes da Confecom, tendo como resultado 672 propostas para mudanças no setor de comunicações no Brasil e um saldo organizativo da sociedade que levou a formação de entidades como a Altercom para se contrapor às tradicionais ANJ e Abert. Foi também essa a intenção dos representantes dos grandes meios de comunicação e da direita mais reacionária do país reunidos em março no convescote do Instituto Millenium, cujas teses têm orquestrado a ação da velha mídia para a manutenção de seus privilégios históricos e em torno da candidatura do PSDB.
Já no Seminário Liberdade de Imprensa e Democracia na América Latina, realizado entre 7 e 9 de abril no Memorial da América Latina, em São Paulo, a tônica foi a troca de elogios entre os palestrantes, pontos de vistas superficiais tangenciando as questões e respostas esquivas às perguntas da pequena e, na maior parte das vezes apática, plateia. Isso, enquanto se permitiu as perguntas...
Com curadoria do ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, e do professor da USP e articulista de O Estado de S.Paulo, Eugênio Bucci, o evento poderia suscitar discussões acaloradas a partir do próprio texto de convocação, que em sua primeira linha afirma a mentira de que a América Latina está “há mais de 20 anos sem ditaduras nem golpes de Estado bem sucedidos”, ignorando solenemente o movimento civil/militar/midiático que derrubou presidente legítimo de Honduras em julho de 2009, impediu pelas armas o seu retorno, fechou meios de comunicação contrários ao golpe e segue matando os líderes da resistência democrática.
Contudo, em sua terceira frase o texto vai ainda mais longe ao admitir “que até hoje convivemos com prisões e até mesmo assassinatos de jornalistas, mas alguns dos principais constrangimentos à imprensa livre se manifestam sob um manto de improvisada legalidade, como a censura prévia por via judicial”. Ou seja, para o redator do texto de apresentação do seminário, a proibição ao Estadão de tocar em um único tema referente a um único personagem, chamada pelo jornal de “censura”, é mais “constrangedora à liberdade de imprensa na América Latina” do que o encarceramento e morte de alguns jornalistas continente afora.
Interessante notar ainda que até o cronograma do evento parece ter sido montado para a conveniência dos organizadores, sem qualquer preocupação com a audiência. Qual outra lógica poderia justificar um programa com atividades marcadas no primeiro dia para 19:00 às 22:00 horas, no segundo das 10:00 às 17:00 em diferente sala do Memorial e no terceiro das 17:00 às 20:00 de volta ao auditório da primeira noite do outro lado da avenida que separa o espaço cultural em dois?
De fato, a organização aparentemente não se preocupou sequer com seus convidados internacionais, já que nos dois últimos dias do evento não havia nem mesmo um estagiário com conhecimentos mínimos de inglês para ajudar a ombudsman da National Public Radio dos Estados Unidos, Liza Shepard, que participara do painel de abertura, a entender pelo menos um pouco do que supostamente se debatia nas mesas. Sim, porque debates, de fato, não houve.
Um exemplo foi a total falta de posições contrárias mas exposições do painel Mídia, Estado e Crise de Representatividade, da manhã de 8 de abril. Em sua palestra, o consultor de empresas e professor da Universidad de San Andrés, na Argentina, Eliseo Verón concentrou-se em criticar o suposto “medo da mídia” de que sofreria a presidenta Cristina Kirschner que, “diferente de Lula cujo primeiro ato após vencer as eleições foi dar uma entrevista na Globo, em sua única ‘entrevista’ na TV a presidenta quis ser entrevistada não por um jornalista mas pela apresentadora do Big Brother”. Apesar de dar tanta importância à TV, ele previu, em seguida, o fim próximo da chamada “mass media” e migração dos telespectadores para a Internet.
O palestrante seguinte, o sociólogo e professor da UFMG Fabio Wanderley Reis, seguiu na mesma linha de que a Internet está mudando a forma como eleitor conhece e avalia os candidatos, tirando parte do poder de manipulação da velha mídia. Mas preferiu centrar sua análise de diferenciação da “opinião pública” da “opinião eleitoral”, não em exemplos recentes como a ficha falsa de Dilma Rousseff na Folha ou dos constantes factóides da Veja, mas no foco midiático que os escândalos do senador Renan Calheiros teria tirado da reforma política proposta pelo senador Ronaldo Caiado.
Para fechar, o também editorialista do Estadão e professor de direito da USP, José Eduardo Faria, finalmente fala de uma ameaça real à democracia com a globalização das decisões econômicas e o consequente esvaziamento do poder político dos parlamentos. Contudo, Faria encara isso de forma fatalista, diz que é preciso avançar nas experiências democráticas, mas teme qualquer mudança no status quo.
O painel seguinte, Formas de Censura, foi ainda mais tedioso. Primeiro, a fala do jurista Joaquim Falcão, da FGV do Rio de Janeiro, citando a proibição da tipografia no Brasil Colônia, a censura pelo presidente José Sarney ao filme Je vous Salue Marie, por pressão da igreja católica nos anos 1980, e fazendo um relato superficial do caso do Google na China, antes de dizer que não há como regular a Internet e por isso essa campanha eleitoral será a mais sangrenta da história. Depois, o presidente da ESPM (um dos patrocinadores do seminário no Instituto Millenium), José Roberto Whitaker Penteado, declamou uma longuíssima lista de “ataques à liberdade individual” no Brasil.
Entre os pontos citados estão as normas de vendas de medicamentos pela Anvisa, a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, o novo modelo de tomada de energia, as lombadas nas ruas, a apresentação dupla de documentos nos aeroportos, a possibilidade de embargo de contas bancárias para pagamentos de dívidas, portas com detetor de metais nos bancos... Somente no final, ele deixa claro onde quer chegar: a “ameaça” de maior regulamentação na propaganda, especialmente sobre bebidas alcoólicas e produtos destinados a crianças. “Como diz Roberto Civita: os meios de comunicação em massa não existiriam sem a publicidade, que não existiria sem a competição, que não existiria sem uma economia livre, que não existira sem a democracia. Então, a publicidade é um dos pilares da democracia”. E a plateia engoliu calada essa pílula de pensamento lógico do dono da Abril.
Na última noite do seminário houve duas palestras eminentemente jurídicas do professor Dalmo de Abreu Dallari, dizendo que não há direitos absolutos na Constituição brasileira e que portanto é possível sim regulamentar o exercício da liberdade de imprensa, enquanto o ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, defendia seu voto pelo fim da Lei de Imprensa como uma “decisão sintonizada com o futuro, que aponta para a auto-regulamentação”, vale dizer para uma relação entre o cidadão e a mídia sem “interferência” do Estado ou do poder judiciário como se o telespectador fosse tão “forte” quanto a indústria das comunicações.
Por sua parte, o jornalista Alberto Dimes apontou para o fato de que foi censurado muito mais vezes pelas empresas do que pelo Estado, que a Opus Dei continua tendo poder suficiente na imprensa brasileira para barrar as justas homenagens ao pioneiro jornalista Hipólito José da Costa por ter sido punido pela Inquisição no século XIX, e que o Conselho Nacional de Comunicação Social foi enterrado pelos interesses corporativos da Globo por meio do mesmo e sempre José Sarney. Na única mesa com algum potencial para um debate mais quente com o público, no entanto, o moderador Eugênio Bucci decidiu fechar a possibilidade de perguntas “para não estragar a plasticidade e serenidade das palavras aqui evocadas”.
Para fechar o evento com chave de ouro, enquanto a ombudsman da NPR tentava entender o teor geral das principais posições expostas e principalmente o real motivo de não se abrir um espaço final para perguntas, os organizadores, palestrantes brasileiros e audiência rapidamente seguiram seus caminhos sem olhar para trás. Ninguém pediu um táxi para ela e nem ao menos deixaram o dinheiro para o transporte. Sozinha na portaria da Biblioteca Victor Civita, numa fria e chuvosa noite de outono em São Paulo, Liza Shepard teve sorte desse repórter estar de carro e falar inglês. Na carona para o hotel, em meio ao sempre engarrafado trânsito de sexta-feira, finalmente ela teve chance de ouvir uma análise, ainda que pessoal, de como funciona de fato a indústria da comunicação no Brasil. Pode, enfim, compreender um pouco melhor quais são as forças que lutam nesse momento histórico por uma mídia realmente mais livre, ampla, plural e democrática. E saber também quem aposta no retrocesso e no conservadorismo. Espero sinceramente que isso possa ter quebrado um pouco da primeira má-impressão que ela certamente teve de um povo cuja imagem lá fora é de ser caloroso, amigável, cortês, receptivo, atencioso...
Nenhum comentário:
Postar um comentário