Crescimento, estabilidade e desigualdades
por James Petras
Imagens do passado
A imagem da América Latina retratada nos mass media e comummente aceite pelo público é a de uma região onde pululam golpes de estado, revoluções periódicas e ditaduras militares eternas, alternando entre ciclos de altos e baixos e intervenções constantes do Fundo Monetário Internacional que ditam a política económica.
Por outro lado, os mesmos mass media, bem como os seus aliados académicos, projectam a imagem dos Estados Unidos e da União Europeia como sociedades estáveis, com um crescimento económico sustentado, expansão crescente e programas de protecção social, que resolvem os seus problemas através de compromissos consensuais e políticas fiscais eficazes.
Nos últimos tempos, a maior parte desta última década, estas imagens ganharam contornos de verdadeiros dogmas ideológicos, não correspondendo já à realidade dos factos. Na verdade, poderíamos mesmo defender que os papéis se inverteram: os EUA e a UE encontram-se numa crise perpétua, enquanto a América Latina, pelo menos a maior parte dos seus grandes países, conhecem a estabilidade e o crescimento que faz corar de inveja (ou deveria fazer) os comentadores e especialistas financeiros de Washington. Esta inversão de papéis foi já reconhecida por muitos investidores europeus, americanos e asiáticos, tão respeitáveis quanto os manipuladores jornalistas do Financial Times, NY Times e Wall Street Journal que ainda escrevem acerca das vulnerabilidades, desequilíbrios e outras fraquezas da América Latina, enquanto reconhecem a contra-gosto o crescimento dinâmico da região.
A opinião progressista revela-se ela também errada ao focar-se nos "avanços" dos regimes de esquerda, enquanto ignora as dinâmicas mais profundas que afectam grande parte da região, perdendo a capacidade de compreender os novos focos de conflito e controvérsia.
Tentaremos caracterizar as realidades contrastantes entre as crises do "Norte" (EUA/UE) e o crescimento sustentado do "Sul" (América do Sul). Esta análise levantará questões acerca da aplicabilidade da experiência sul americana no Norte e acerca dos "ajustamentos estruturais" que serão necessários para retirar os EUA e a UE da espiral descendente de estagnação e conflitos violentos que têm caracterizado estas regiões durante a maior parte da última década.
A década perdida, à moda dos EUA e UE
Os países da América Latina experimentaram durante os anos 80 uma época de crises persistentes, que se materializou num crescimento negativo, num aumento dos níveis de pobreza e num grande endividamento que permitiu aos credores (tais como o FMI) impor medidas de austeridade duras e agressivas juntamente com políticas de "ajustamento estrutural", que ficaram conhecidas pelo termo de "neo-liberalização". Nelas se incluíam a privatização das mais estratégicas e lucrativas empresas públicas, assim como o fim de qualquer estratégia estatal de industrialização. Para os camponeses, a classe operária e a classe média, o curto boom neoliberal dos anos 90 foi a continuação da "década perdida" dos anos 80. As políticas neoliberais dos anos 90 baseavam-se na destruição dos fundamentos estruturais da economia e em enormes transferência das receitas e das despesas públicas para o capital enquanto se cortavam nos salários e na segurança social. Os regimes neoliberais entraram numa crise profunda em 2000 provocando grandes contestações sociais. O resultado foi um novo enquadramento político e uma nova equação social que culminaram em novos regimes pós-neoliberais na maior parte dos países da América Latina.
Por outro lado, e em parte devido às oportunidades lucrativas que surgiram com a crise da dívida e com a neoliberalização da América Latina nos anos 90 (assim como na ex-União Soviética, Europa de Leste e Balcãs), os Estados Unidos e a UE prosperaram. Na América Latina, mais de 5000, bastante lucrativas, indústrias de extracção de recursos, bancos, telecomunicações e outras passaram para as mãos das multinacionais privadas estrangeiras e para as do capital local. Os grandes lucros derivados das acções, empréstimos e rendas das transferências de tecnologia enriqueceram os capitalistas do Norte, na mesma medida em que a pobreza se multiplicava pelo Sul. Os anos 90 foram a "idade de ouro" do capital Ocidental que conheceu um crescimento dos seus lucros, enquanto os partidos de esquerda e os sindicatos pareciam incapazes de fazer frente a esta "onda" de conquista da economia por parte do capitalismo predatório.
O êxito dos EUA e da UE, os enormes ganhos fáceis obtidos através da pilhagem, especulação e exploração, levaram ao domínio do capital financeiro e à crença numa irrevogável "nova ordem mundial". O domínio dos Estados Unidos e da UE foi construído sobre a sua superioridade militar, apoiada por regimes neoliberais colaboracionistas e clientelistas. A "nova ordem" durou menos de uma década: a crise económica de 1999/2000 esmagou o sonho de um século de dominação imperial. Ao mesmo tempo que os mercados entravam em colapso, assim também caíam os regimes oligárquicos eleitorais sul-americanos (ditos "democracias"), que formavam, com a elite financeira e militar, a tripla aliança que definia a supremacia Ocidental. O golpe final foi a crise económica de 2001-2002 nos EUA e na UE, que acabou paulatinamente com a capacidade de intervir e de sustentar os regimes clientelistas sul-americanos depostos pelas rebeliões populares.
A primeira década do novo milénio foi a "década perdida" do Norte. Ao longo dos últimos onze anos o Norte conheceu a estagnação e a recessão, que não permitiram qualquer recuperação económica. Os estados capitalistas salvaram temporariamente os bancos, mas demonstraram-se impotentes para relançar o crescimento económico.
A classificação da economia norte-americana foi cortada pelas agências de notação. O desemprego e o emprego precário dispararam para um quinto da força de trabalho, números só comparáveis com os dos países do terceiro mundo. Os programas sociais sofreram graves cortes nos Estados Unidos e nos países da União Europeia, destruindo décadas de conquistas sociais. Os défices orçamental e da balança comercial tornaram-se crónicos, enquanto os credores públicos e privados ficavam cada vez mais preocupados com as tendência recessivas da economia. O sector financeiro dos Estados Unidos e União Europeia está ferido pela corrupção em larga escala, pelas fraudes, gestão negligente e contas falsificadas, algo que antes encontrávamos na América Latina. A União Europeia enfrenta cortes brutais nos salários, pensões e empregos que afectam milhões de trabalhadores e os jovens desempregados da Grécia, Portugal, Espanha e Itália tomaram as ruas. As greves gerais ameaçam a estabilidade de regimes cada vez mais isolados e lembram as rebeliões populares que levaram a mudanças de regime na América Latina no final dos anos 90 e princípio dos anos 2000. Nos Estados Unidos, os protestos públicos reflectem um crescente descontentamento: mais de 75% da população tem uma visão negativa do Congresso e 60% da Casa Branca. O aprofundamento da alienação do eleitorado norte-americano é já comparável à perda de fé nos governos latino-americanos durante as "décadas perdidas" de 1980-2000.
Tanto os Estados Unidos como a União Europeia sofreram transformações radicais durante a "década perdida" do presente século. Económica, política e socialmente, o "Norte" foi latino-americanizado: instabilidade social, estagnação económica, alienação política, crescimento das desigualdades entre as classes e pobreza, tudo isto liderado por elites políticas corruptas.
Sinais de tempos melhores: a América Latina
Recentemente, o ministro das Finanças brasileiro levantou a possibilidade de os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tomarem parte num "plano de resgate" para fazer frente às crises económicas da Europa. Tal declaração teve mais importância simbólica que real, mas reflecte no entanto uma certa realidade: enquanto o Norte mergulha numa profunda crise sem fim à vista, as economias latino-americanas estão com relativa boa saúde.
Com excepção dos países latinos que estão ainda sob domínio dos EUA, especialmente o México e a maior parte da América Central, a América Latina não somente evitou as crises que afligem o Norte, mas tem crescido de forma saudável, três vezes mais que os EUA ao longo da década. O novo milénio, especialmente entre 2003 e 2011 (excepto durante um breve interlúdio em 2009) tem sido um período de crescimento elevado, prosperidade generalizada, explosão das exportações, aumento das importações, aumento da cooperação inter-regional e redução da pobreza a larga escala.
O Brasil, por si só, reduziu o número de pobres em 30 milhões. Eleições normais, relativamente honestas e competitivas, resultaram em transferências estáveis e legitimadas do poder político. Exceptuando o golpe, apoiado pelos EUA, nas Honduras e a intervenção no Haiti e na Venezuela, as tomadas violentas do poder desapareceram durante a década passada. A construção de instituições regionais prosperou com o advento da UNASUL e do banco regional da América Latina.
Graças ao controlo fiscal e à regulação do sector bancário, resultados de lições aprendidas durante a crise das décadas perdidas (1980-2000), a América Latina foi apenas ligeiramente afectada pelo crash financeiro europeu e estado-unidense de 2008-2011. O comércio latino-americano duplicou, especialmente com a Ásia, ajudado pelo crescimento a dois dígitos da China. A procura de recursos agro-minerais triplicou. A chave deste crescimento baseado no aumento das exportações é a crescente independência económica da América Latina, que levou a que esta diversificasse os seus mercados, aproveitando as novas oportunidades e reduzindo a dependência em relação aos EUA. A ênfase posta pela América Latina no crescimento económico, nos novos mercados e investimentos, levou-a a evitar o envolvimento nas múltiplas e dispendiosas guerras coloniais com as quais estão comprometidos os EUA e a UE.
Enquanto os EUA e a UE cunham mais moeda e aumentam a dívida para cobrir os défices da sua balança comercial, a América Latina quadruplicou as suas reservas de divisas estrangeiras. Isto serve de amortecedor a eventuais recessões e evita a dependência do FMI, arquitecto das décadas perdidas de 1980 e 90.
Dentro da América Latina, a questão da redução da pobreza foi abordada de vários modos, com maior ou menor grau de eficácia. Com a Venezuela do presidente Chávez a mostrar o caminho, a tendência geral tem sido para um aumento dos pagamentos sociais, automático na maior parte dos casos mas feito, noutros casos, com grande esforço. À excepção do México não houve em nenhum país da América Latina cortes sociais semelhantes aos que tiveram lugar nos EUA e na UE. Os avanços estruturais mais impressionantes tiveram lugar na Venezuela e, em menor escala, na Argentina: o salário mínimo e as pensões foram aumentados significativamente, bem como os subsídios de bem-estar pagos às camadas mais vulneráveis da população (mães solteiras, inválidos, pessoas em situações de pobreza extrema).
À excepção da Colômbia (o principal aliado militar dos Estados Unidos na região) – que ainda é a capital mundial do assassínio de advogados dos direitos humanos, sindicalistas e os activistas camponeses – as violações dos direitos humanos diminuíram. Enquanto os EUA e a UE aumentaram enormemente as violações dos direitos humanos através das múltiplas guerras coloniais no Iraque, Afeganistão, Líbia, Paquistão, Somália, Iémen e de "operações" de esquadrões da morte, as violações de direitos humanos perpetradas pela América Latina fora do seu território limitam-se às suas forças de ocupação no Haiti – às ordens dos EUA e da UE. Não obstante a repressão de movimentos populares, especialmente de indígenas, camponeses e estudantes aumentou na Bolívia, no Chile, no Brasil e noutros sítios, ao mesmo tempo que crescem as políticas que promovem os direitos comunitários e as despesas sociais.
Graças à corrente estabilidade política e crescimento económico da América Latina, chovem investimentos institucionais e empresariais na região. Pelo contrário, os EUA e a UE sofrem com o desinvestimento e o declínio do investimento privado. Por outras palavras, o desenvolvimento da América Latina é o outro lado da moeda do subdesenvolvimento do eixo EUA-UE.
América Latina: novas contradições
A luta de classes continua a ser o motor do progresso social na América Latina. Mas, ao contrário do que acontece no eixo EUA-UE, a luta de classes na América Latina dirige-se para um aumento dos salários mínimos e médios, mesmo que automaticamente, como parte de uma estratégia ofensiva destinada a capturar uma parte cada vez mais significativa das crescentes receitas. Nos EUA e na UE a luta de classes é «defensiva», é um esforço para travar o declínio das receitas, as perdas de postos de trabalho e os cortes nas pensões.
Enquanto as acções militantes de classe, incluindo ocupação de terras, manifestações e greves fazem parte do repertório de armas sociais da classe trabalhadora, têm lugar dentro dos parâmetros das instituições democráticas. Na Europa, as elites têm vindo a ignorar cada vez mais os massivos protestos e as greves, teimando em seguir políticas de austeridade ditadas pelo não-eleito sector bancário nacional e estrangeiro.
Os limites e «contradições» que afectam todos os países da América Latina localizam-se ao nível interno das desigualdades de classe. Enquanto as receitas nacionais aumentam e as exportações disparam, as desigualdades entre a classe dominante dos investidores e a massa dos assalariados crescem. Embora inicialmente o problema das desigualdades sociais tenha sido encoberto pelo aumento geral da qualidade de vida e do emprego, com o passar do tempo as classes produtivas e assalariadas deixaram de estar satisfeitas com aumentos automáticos dos salários que pouco vão além da inflação. O aumento da qualidade de vida aumentou as expectativas. A percentagem de pobres pode ter diminuído, mas subsistir com pouco mais de 4 dólares por dia torna-se cada vez menos aceitável. O crescimento gera as suas próprias contradições e novas exigências. As classes anteriormente excluídas têm apenas, ao serem incluídas num sistema que as explora, as suas organizações de classe como armas para fazer avançar as suas reivindicações sócio-económicas.
Este é claramente o caso do Chile contemporâneo, país onde um crescimento a longo termo é acompanhado por desigualdades cada vez mais vincadas, comparáveis às dos piores países da OCDE. Desde Julho de 2011, grandes protestos estudantis contra o custo elevado da educação, tanto pública como privada, e o baixo nível dos apoios sociais foram o detonador de acções sindicais de massas cobrindo a totalidade das actividades económicas, desde os professores aos mineiros de cobre.
A nova e explosiva questão que põe face a face governantes e governados numa América Latina em crescimento acelerado é a de saber quem vê aumentado o seu rendimento? As questões de classe tomam a dianteira no presente e no futuro imediato.
Crescimento, estabilidade e luta de classes democrática caracterizam a maioria dos grandes países, mas não todos. Em vários países, continua bem viva a herança autoritária e violenta dos regimes ditatoriais. A prática colombiana de assassinar sindicalistas, líderes camponeses, jornalistas e activistas dos direitos humanos não regista nenhum decréscimo: mais de 30 sindicalistas foram assassinados durante os primeiros oito meses de 2011.
O regime que está no poder nas Honduras, resultado de um golpe perpetrado pelos exércitos paramilitares privados dos latifundiários e apoiado pelos Estados Unidos, matou números recorde de camponeses e dúzias de activistas políticos e sociais pró democracia.
Os campos da morte do México também são famosos: mais de 40 mil pessoas foram mortas pela polícia, pelo exército e pelos gangs da droga numa «guerra à droga» promovida por Obama e posta em prática pelo Presidente Calderon.
O ponto comum destes três regimes da velha guarda é o facto de continuarem a seguir os ditames de Washington, de continuarem a ser estados altamente militarizados, com uma presença forte dos EUA a nível policial e militar sob a forma de bases e conselheiros no exterior e de um papel intrusivo nas decisões políticas. Todos eles falharam a diversificação dos mercados e continuam muito dependentes de um mercado americano estagnado. Todos eles consolidaram ou então em vias de assinar acordos bilaterais de livre comércio, em vez de procurarem aprofundar as suas relações com os dinâmicos mercados asiáticos.
Estes três regimes da velha guarda nunca experienciaram o tipo de revoltas populares e consequentes regimes de centro-esquerda que emergiram na maior parte da América Latina. No México, candidatos pró-democracia foram por três vezes vítimas de fraudes eleitorais que lhes roubaram a vitória, pela primeira vez em 1988 e mais tarde em 2006. Nas Honduras, um presidente progressista democrata-liberal, que tentou diversificar os mercados, foi deposto em 2010 por um golpe militar apoiado pela administração Obama. Na Colômbia, o assassinato de 5000 activistas e líderes da democrática União Patriótica entre 1984-86 e o subsequente assassinato de vários milhares de activistas bloqueou qualquer abertura democrática. O fim abrupto das negociações de paz em 2002 e a total militarização do país (2002-2011), financiada por US$6 mil milhões de ajuda militar estado-unidense impediu o surgimento das mudanças políticas e sociais que dinamizaram o crescimento sustentado da restante América Latina e abriram a porta para uma «luta de classes democrática».
Enquanto a maior parte da América Latina avançou, evitando assim a instabilidade e a crise económica do eixo EUA-UE, os legados do passado e as desigualdades do presente foram um novo quadro de obstáculos estruturais à consolidação de um crescimento a longo prazo e da estabilidade político-social. A maior contradição estrutural encontra-se no binómio crescimento elevado / crescimento das desigualdades, modelo sócio-económico baseado na "aliança 3 mais 1/2": o capital estrangeiro, o capital nacional, o estado desenvolvimentista e os cooptados líderes sindicalistas e camponeses. Os lucros e investimentos desta configuração do poder têm sido dinamizados pelo crescimento das exportações agro-minerais, pelo aumento do preço das mercadorias, pelo crédito fácil ao consumo e pela regulamentação estatal dos mercados financeiros. Os benefícios económicos deste crescimento têm sido desproporcionalmente apropriados pelas cúpulas, em conjunto com benefícios dados a uma minoria dos trabalhadores mais bem pagos e mais bem organizados. O restante tem sido usado para elevar a vida dos pobres da pobreza mais abjecta para a sobrevivência. Estas crescentes desigualdades têm sido encobertas pelo aumento geral da riqueza, pelo crédito fácil e pela melhoria dos serviços públicos. Mas o crescimento da riqueza pôs em marcha um conjunto de novos conflitos de classe que serão exacerbados quando os preços das mercadorias caírem e os governos já não puderem proceder a actualizações automáticas. Mesmo actualmente, conflitos graves surgem entre as multinacionais predadoras de recursos mineiros e madeira e os índios/camponeses no Peru, Equador, Bolívia, Brasil e Chile. Estas lutas, por vezes violentas, entre o estado/multinacionais e os camponeses na «periferia das zonas rurais» podem desencadear um conflito mais alargado nas cidades, se o lucro das exportações diminuir.
A segunda contradição está entre «trabalhadores pobres marginalizados» e um novo grupo de investidores de classe média-alta que investiram as suas «poupanças» em acções das empresas mineiras detidas pelo capital local ou estrangeiro. Conservadores e estreitamente alinhados com a orientação das multinacionais, estes novos investidores da classe média enriqueceram graças a uma exploração desregulamentada dos bens naturais e à contaminação das comunas rurais contíguas. Se, e quando, o preço das mercadorias cair a pique, os regimes terão de lidar com uma classe média arruinada e histérica à procura de um salvador político onde este não existe, ou pelo menos não entre as facções civis existentes.
A viragem à direita dos regimes de centro-esquerda e as suas oportunas relações com o grande capital, especialmente no Brasil, no Uruguai, na Bolívia, no Equador e no Paraguai levou à corrupção das altas esferas. A liberalização e o aumento exorbitante dos salários dos executivos foram acompanhados por «pagamentos oficiosos» a funcionários públicos. A corrupção erodiu a ética social dos políticos de centro-esquerda, substituindo-a pelo princípio do «gerar novos e maiores investimentos», por mais atalhos e subornos que sejam necessários. A corrupção espalha-se desde as cúpulas até à base da pirâmide social, facilitando a vida aos investidores estrangeiros, mas diminuindo sem dúvida a confiança e a lealdade dos trabalhadores do mercado formal e informal que se encontram excluídos do «ciclo mágico» dos subornos. Os «patrocínios» e os investimentos na redução da pobreza podem limitar o impacto da corrupção das elites nas camadas pobres subsidiadas. No entanto, quando a economia abrandar, pode também levar a que os protestos sociais se orientem no sentido de uma mudança de sistema político.
A terceira contradição encontra-se entre o elevado nível de dependência da exportação de matérias-primas (que até agora têm sido um elemento dinamizador do crescimento) e o declínio relativo ou absoluto das exportações de produtos manufacturados e industriais. O crescimento do rendimento proveniente das matérias-primas levou a uma valorização da moeda que diminui a competitividade dos produtores nacionais de produtos manufacturados, levando-os a um profundo declínio e mesmo à falência.
Os exportadores industriais asiáticos – especialmente na China e em menor escala na Índia e na Coreia – estão a entrar cada vez mais nos mercados latinos com produtos acabados a preços mais baixos, desindustrializando as economias latinas. Nalguns casos, os capitalistas latino-americanos procuram investir na Ásia para diminuir os custos de produção e exportar novamente para os seus mercados nacionais. A indústria brasileira, que foi a mais afectada, impôs recentemente medidas proteccionistas que incluem taxas, leis que impõe 65% de bens locais e subsídios públicos que contrariem o recuo da diversificação da economia.
A quarta contradição encontra-se precisamente no bem-sucedido crescimento económico e nos altos níveis de rendimento, que atraem tanto capital especulativo como investimento produtivo. O capital especulativo irá fugir, desestabilizando o sistema financeiro, ao primeiro sinal de abrandamento económico. A propriedade estrangeira irá diminuir a capacidade do governo para influenciar as decisões de investimento em tempos de crise. Os investimentos produtivos respondem a mercados em expansão, mas não os criam.
Em suma, o crescimento dinâmico que a América Latina tem vindo a conhecer ao longo da década levou-a sem dúvida a ultrapassar os EUA e a UE numa série de questões fundamentais, a nível não só económico como social e político. Ainda assim, deste crescimento surgiu uma nova série de contradições, bem como a necessidade de corrigir graves desequilíbrios: a exigência popular de uma alteração na distribuição da riqueza, as pressões dos industriais para uma transição de uma economia dependente da finança e das matérias-primas para a industrialização e a exigência das camadas urbanas pobres de melhores serviços públicos, especialmente no sector da saúde e no que toca à sobrelotação das escolas. Estas mudanças implicam um ajustamento estrutural na estrutura do poder. Os desequilíbrios económicos reflectem a concentração crescente do poder político nas mãos dos capitalistas, dos banqueiros e da classe média local dos investidores das grandes cidades. Os funcionários públicos, os trabalhadores, as classes urbanas mais desfavorecidas, os camponeses, os ecologistas e os indígenas com preocupações ecológicas são postos à margem das posições económicas chave. Eles precisam de tomar novamente as ruas, com novos movimentos independentes que levantem duas questões fundamentais: Que tipo de crescimento e crescimento para quem?
Lições da América Latina: ouçam ianques e eurocratas
Será que as lições positivas tiradas da dinâmica experiência latino-americana podem fornecer um «modelo» para os EUA e a Europa? É este «modelo», na totalidade ou em parte, transferível para o Norte ou são as duas regiões tão diferentes que tais lições não são aplicáveis?
Embora tendo em conta as vastíssimas diferenças históricas, culturais, económicas e políticas entre as regiões, algumas lições podem ser tiradas da década de crescimento dinâmico da América Latina, fornecendo novas ideias para contrariar as fórmulas económicas autodestrutivas que têm sido postas em prática pelos especialistas, economistas e governantes dos EUA e da UE.
Comecemos pelo princípio. A ascensão da América Latina foi precipitada por uma profunda crise económica, pelo colapso da economia, o desemprego em larga escala e o empobrecimento da classe média. A crise levou a um total descrédito daquilo a que se chamou alternativamente «mercado-livre», «neoliberalismo» e capitalismo «desregulamentado». Até aqui tudo bem: da mesma forma, os EUA e a UE estão a passar por uma crise económica prolongada e em vias de aprofundamento, que levou à falência do Sul da Europa, a uma dupla recessão nos EUA e a 20% de desemprego. A «classe política» dos EUA e da Europa está amplamente desacreditada. É a partir daqui que as duas regiões divergem.
Na América Latina, as crises levaram a protestos de massas, sublevações populares e mudanças de regime. Governos pós-neoliberais de centro-esquerda, sob a pressão das massas, lançaram investimentos geradores de emprego e programas públicos de redução da pobreza. A Argentina, que fazia face a uma crise financeira semelhante àquela que atinge hoje a Grécia, Portugal e Espanha, incumpriu a sua dívida externa – canalizando os dinheiros públicos para uma revitalização da economia. Tendo em conta que a especulação financeira ligada à Wall Street e à City de Londres precipitou a crise, os governos latinos instituíram mecanismo de controlo e regulamentação que limitaram a volatilidade financeira. Os novos regimes, influenciados pelo boom das matérias-primas, diversificaram os seus parceiros comerciais, entrando nos dinâmicos mercados asiáticos, colhendo elevados lucros e estimulando o consumo local e o investimento público. Que lições podem os EUA e a UE, mergulhados na crise, tirar da recuperação bem sucedida da América Latina?
Em primeiro lugar, o início de uma resposta bem sucedida depende de uma transformação política. Os regimes devem mudar em completa ruptura com o mercado-livre neoliberal e com os líderes e partidos políticos que estão profundamente comprometidos com as instituições e as políticas fracassadas. A mudança de regime pressupõe a erupção de organizações de massas dinâmicas, novas, velhas, improvisadas e organizadas, capazes de fazer o caminho que vai do protesto e da resistência à tomada do poder político.
O objectivo é reequilibrar as economias dos EUA e da UE, levando-as da «financiarização» e do «militarismo» a investimentos a longo prazo e larga escala em produção, tecnologia, infraestruturas e serviços sociais. Investimentos públicos directos e empréstimos aplicados na geração concreta de projectos; rejeição total do gotejamento, das políticas monetárias que nunca se transferiram de bancos privados para obras públicas.
Toda a mentalidade militarista-sionista da guerra permanente é vulnerável à mudança: fazer isso, criará empregos, a principal prioridade para dois terços do público estado-unidense. A "guerra ao terrorismo", a bandeira dos senhores da guerra que estão no poder, é considerada uma prioridade por somente 3% dos americanos. Uma vez: mais, a viragem do "militarismo" para a economia civil nos países da América Latina foi o resultado de levantamentos populares na rua e nas urnas.
Claro que para as repúblicas latino-americanas foi mais fácil redireccionar as suas prioridades económicas a partir de ditaduras militares fracassadas e políticas neoliberais desacreditadas. Para os movimentos sociais nos Estados Unidos e na União Europeia não será tão fácil fechar centenas de bases militares, despojar as elites políticas militaristas que são apoiadas por imponentes lobbies nacionais e internacionais, e converter por fim os impérios em repúblicas produtivas. Os exportadores latino-americanos conseguiram no entanto prosperar ao recusarem participar em guerras imperialistas. Estes continuam a procurar novos mercados no Médio Oriente e noutras regiões, em vez de destruírem os adversários de Israel como fazem os Estados Unidos e a União Europeia ao levarem a cabo guerras coloniais, como no caso do Iraque e da Líbia, e ao imporem sanções ao Irão, Síria e Venezuela.
A diferença de comportamento entre as repúblicas latino-americanas e o império euro-americano agudiza-se. Os Estados Unidos e a União Europeia devem abandonar as suas imagens egocêntricas de países desenvolvidos "bem-sucedidos", assim como o estereótipo obsoleto da América Latina como um conjunto de países instáveis e subdesenvolvidos. Os Estados Unidos lidam hoje com um problema real, encaminhando-se para uma profunda e descontrolada crise económica contra a qual não têm muitos recursos. Internacionalmente, estão cada vez mais isolados, entrando mesmo em conflito com os seus parceiros económicos. Washington alinha-se por Israel, alienando, nesse mesmo processo, 1500 milhões de cidadãos de repúblicas islâmicas (ricas e pobres) desde a Arábia Saudita ao Paquistão e em toda a região. Antagoniza o Brasil através da sua política de ajuda à finança que sobrevaloriza o Real, sem no entanto conseguir beneficiar realmente a recuperação económica americana.
Os fracassos internos e externos multiplicam-se, enquanto a crise se aprofunda sem que os bafientos governantes ou a patética oposição sejam capazes de oferecer qualquer alternativa programática.
Tal como na América Latina durante os primeiros anos desta década precisamos de uma rebelião popular: precisamos de uma profunda mudança de regime; precisamos de pensar em termos de investimentos públicos produtivos e não de perdas monumentais de capital dos especuladores da Wall Street ou de desperdício de recursos públicos em armas de destruição.
02/Outubro/2011
O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=26887 . Tradução de MQ.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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