domingo, 16 de junho de 2013

EUA - Revogação da Carta dos Direitos.

Salvos da “Stasi Unida da América”?

Daniel Ellsberg (The Guardian)
Na minha estimativa, não houve na história dos Estados Unidos nenhum vazamento mais importante que a divulgação feita por Edward Snowden de materiais da Agência de Segurança Nacional (NSA) –e isso inclui a divulgação dos papéis do Pentágono pela qual eu fui responsável 40 anos atrás.
A iniciativa de Snowden nos abre a possibilidade de reverter algo que equivale a um golpe executivo contra a Constituição americana. Desde 11 de setembro de 2001 vem ocorrendo, inicialmente em segredo mas desde então de maneira cada vez mais aberta, uma revogação da Carta dos Direitos pela qual os EUA lutaram 200 anos atrás.
Foram virtualmente suspensas especialmente a quarta e a quinta emendas da Constituição, que protegem o cidadão da ingerência indevida do governo em sua vida privada. O governo alega estar judicialmente autorizado graças à lei de monitoramento de inteligência estrangeira (Fisa), mas essa autorização foi dada por um tribunal secreto, protegido contra fiscalização efetiva, e é aberta à interpretação mais ampla possível.
Tudo isso infringe frontalmente o que prevêem as leis do país, o que dirá a Carta dos Direitos. Nas palavras de Russell Tice, um ex-analista da NSA, “é um farsa judicial aprovada por burocratas”.
Portanto, que o presidente venha dizer que há supervisão judicial é um absurdo, assim como é absurda a função supervisora dos comitês de inteligência do Congresso.
O fato de os líderes desses comitês terem sido informados deste assunto e o terem sancionado sem questionar vem apenas mostrar como está decrépito o sistema de responsabilidades e prestações de contas nos EUA.
UMA TIRANIA
Como escreveu o fundador da Constituição, James Madison: “O acúmulo de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, nas mesmas mãos, quer sejam as mãos de um, de alguns ou de muitos, e quer sejam hereditárias, autonomeadas ou eletivas, pode com razão ser descrito como a própria definição da tirania”.
Quando a segurança nacional é evocada nos Estados Unidos, é isto o que temos hoje. Na prática, o Congresso delegou suas responsabilidades e seus poderes ao Executivo. Foi demonstrado que a estrutura de supervisão é uma farsa total e que os comitês relevantes do Congresso foram cooptados. Eles são simplesmente buracos negros de informação à qual o público precisa ter acesso.
O monitoramento revelado pelos documentos divulgados por Snowden expõe este golpe executivo. O fato de isso ser feito com o Congresso sendo informado do fato, mas sem que tenha a capacidade de resistir ou sequer de debater as medidas abertamente, converte a separação dos poderes em farsa. O que foi criado é a infraestrutura de um Estado policial.
Não estou dizendo que os Estados Unidos é um Estado policial. Não temos visto as detenções em massa que completariam esse processo. Mas, em vista da extensão desta invasão da privacidade das pessoas, possuímos, sim, a infraestrutura eletrônica e legislativa de um Estado policial.
Temo por nossa democracia no caso de, por exemplo, começar agora uma guerra que resulte num movimento antiguerra em grande escala, como o movimento que tivemos contra a guerra no Vietnã. Se o governo possuísse então a capacidade que possui agora, não tenho dúvidas de que teriam ocorrido prisões em massa. Esses poderes são extremamente perigosos.
Em 1975 o senador Frank Church declarou o seguinte a respeito da NSA: “Conheço a capacidade que existe para criar uma tirania total na América, e precisamos garantir que esta agência e todas as agências que possuem esta tecnologia operem dentro da lei e sob supervisão apropriada, para que nunca atravessemos esse abismo. Esse é o abismo do qual não existe retorno.”
CAÍMOS NO ABISMO
Eu diria que nós de fato já caímos nesse abismo. Com as novas tecnologias digitais, a NSA, o FBI e a CIA possuem poderes de monitoramento com os quais a Stasi, da antiga Alemanha oriental, só poderia ter sonhado.
Aquilo que se temia e contra o qual foram lançados avisos se concretizou. A chamada comunidade de inteligência tornou-se os “United Stasi of America”.
A questão agora é se o senador Church estava certo ou equivocado ao dizer que a travessia desse abismo seria algo irreversível. Três dias atrás eu teria concordado que a democracia efetiva agora é impossível.
Mas, com este corajoso Edward Snowden se dispondo a arriscar sua vida para levar esta informação a público, criando a possibilidade de que outros venham unir-se a ele, acredito que possamos retornar do outro lado do abismo.
Enquanto o acesso de Bradley Manning foi muito mais limitado a informações ao nível de campo, o conhecimento que Snowden tem de sua área é profundo e extenso. Os materiais que ele divulgou são de nível de classificação mais alto do que foi meu caso com os papéis do Pentágono.
SIGILO ILEGÍTIMO
Existem razões para respeitar sigilo que são legítimas, mas o que não é legítimo é usar desse sigilo para ocultar atos que são anticonstitucionais. Nem o presidente nem o Congresso têm o direito de revogar a quarta emenda –mas é por isso que aquilo que Snowden revelou era secreto.
Ele não merece ser levado a julgamento ou punido por sua iniciativa; em lugar disso, merece nosso agradecimento e admiração. O chanceler alemão Otto von Bismark disse: “A coragem no campo de batalha é algo comum a muitos”, mas “coragem civil falta mesmo a pessoas respeitáveis”. Snowden demonstrou coragem civil enorme.
O que eu disse 40 anos atrás foi que não me importava com o que dissessem sobre mim — “leiam os documentos, apenas”. Para proteger outras pessoas, revelei o que eu tinha feito, para que pudesse dizer “fiz isto por conta própria”, sem o conhecimento ou a ajuda de outras pessoas que poderiam ser suspeitas.
Já sabemos que o Departamento de Justiça ordenou uma investigação sobre o vazamento. Portanto, Snowden fez o mesmo.
Pelo fato de ter se identificado, Snowden pode agora depor sob juramento diante do Congresso –se este o convocar. Ele não poderia fazer isso se ainda estivesse anônimo ou se estivesse nos EUA.
Em 1971, fui libertado após pagamento de fiança de US$50 mil por minha participação na divulgação dos papéis do Pentágono, mas no clima atual Snowden não seria libertado sob fiança –seria encarcerado sem fiança e incomunicável, exatamente como Manning.
Snowden fez o que fez porque reconheceu os programas de monitoramento da NSA como o que eles são: atividades perigosas e anticonstitucionais. Esta invasão atacadista de nossa privacidade não contribui para nossa segurança e coloca em perigo as próprias liberdades que estamos tentando proteger.
DANIEL ELLSBERG é ex-analista militar dos EUA. Em 1971 ele divulgou os papéis do Pentágono, que revelaram como o público americano tinha sido enganado sobre a guerra do Vietnã.

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