Da Carta Maior
Vencendo o terrorismo do medo: a hora da política
POR JORGE LUIZ SOUTO MAIOR
Quando se anunciava que um Partido dos Trabalhadores poderia chegar ao poder, difundiu-se a figura do medo. Medo da reforma agrária, medo da reforma urbana, medo do “comunismo”, enfim. Para tanto chegou-se até mesmo, em uma ocasião, a expor a vida privada do candidato Lula, para prejudicá-lo perante à opinião pública e, em outra, a colocar uma camiseta do PT em um sequestrador, que fora preso dias antes da eleição, difundindo-se a imagem.
Aliás, cabe lembrar que foi essa tática do medo do “comunismo” que nos conduziu à ditadura de Vargas, de 37 a 45, e a 21 anos de ditadura militar.
Pois bem, o que se percebe agora é a utilização da mesma tática, de forma invertida. Vê-se a difusão entre a esquerda da ideia de um medo quanto à mobilização que está nas ruas. “É coisa da direita”, diz-se. Diz-se, também, que o movimento foi invadido por “mauricinhos” e que a mobilização está sendo conduzida por setores poderosos da mídia, para desestabilizar o governo Dilma ou até para apoiar um golpe militar. E o que mais se escuta de pessoas bastante esclarecidas é: “estou com medo”.
Tenta-se, com isso, tirar as pessoas das ruas, sobretudo as que iniciaram o movimento e que possuem uma orientação política de esquerda, tomando-as, inclusive, como responsáveis pelo eventual avanço reacionário da direita no cenário das ruas.
Do ponto de vista da intelectualidade, quanto às pessoas que estão nas ruas, embora constitua uma coletividade cada vez mais complexa, tenta-se difundir a ideia de que se trata de um movimento uníssono, composto de jovens de classe média, despolitizados, que estão servindo de massa de manobra aos interesses de uma direita golpista, ou que professam, por convicção, valores reacionários de direita.
Essa simplificação não corresponde à realidade verificada nas ruas, até porque o movimento está ganhando as periferias da cidade, com pautas mais concretas e emergenciais.
No que se refere aos movimentos mais centrais, digamos assim, e considerando, sobretudo, aqueles que se iniciaram, sucessivamente, no Largo da Batata, na Praça da Sé e na av. Paulista, o que se percebeu, até a última quinta-feira, foi a exposição de um número muito grande de reivindicações. Mas, ainda que se pudesse verificar a presença de muitas pessoas intolerantes e, notoriamente, querendo insuflar uma pauta de oposição direta ao governo, não há como dizer que o movimento, na sua maioria, estivesse ligado a esse propósito. Havia um pouco de tudo e é impossível quantificar, com precisão, quantas pessoas tinham tal ou qual orientação política. Abstraindo as diferenças, o que se via, no geral, era um desejo de expressar um grito de insatisfação contra 500 anos de desmandos, o que se verberava, muitas vezes, sem organização ou coerência. Vi algumas pessoas que gritavam frases que eram politicamente contrárias entre si.
Mas, como dito por Boechat, seria demais exigir dessas pessoas que tivessem propostas prontas e acabadas para resolver os problemas do país, pois, no geral, saíram de suas casas, abruptamente, motivadas por um sentimento de solidariedade com relação aos jovens que lutavam por uma pauta específica, a redução da tarifa, e que foram vítimas de forte violência policial.
O aumento das reivindicações acabou sendo proporcional ao aumento da sensação de força que se atingiu com o crescimento das fileiras, sendo que a ampliação da pauta foi ditada pelo próprio MPL. Foi quando se disse: “não é só por R$0,20”, “queremos saúde e educação públicas de qualidade”.
Claro que a partir de então se estabeleceu uma luta pelo domínio ideológico da massa nas ruas. Mas isso, ao contrário do que se faz supor, foi percebido pelas pessoas que foram para as ruas. A mudança de perspectiva da grande mídia também foi percebida. Em certo modo, da percepção da utilização de sua presença na rua para dividendos políticos de partidos revelados e não revelados foi que surgiu um dos grandes lemas da experiência vivida, qual seja, o grito “sem partido”, que acabou se constituindo, igualmente, um dos grandes problemas dos atos.
Mas não me parece, observando “in locco” as manifestações, que esse grito representasse, naquele contexto e naquele instante, uma censura ditatorial a qualquer partido especificamente ou a negação da importância de sua existência, embora, claro, daí decorra o risco da fala poder servir à completa despolitização e, consequentemente, à formação de regimes ditatoriais, que, historicamente, cooptaram as massas com o discurso do nacionalismo e, pior ainda, com propósitos xenófobos. De todo modo, vale lembrar que o grosso dos manifestantes era de jovens e a sensação que se passava era a de que não queriam servir a finalidades políticas ainda não muito bem compreendidas por eles. Penso que havia um desejo enorme de, simplesmente, exercer uma liberdade de expressão, em prol de mudanças, embora houvesse, por certo, muitos propósitos reacionários, se consideramos a construção histórica dos últimos anos. Mas havia, também, e em grande número, jovens com extrema consciência política de esquerda, coisa que, ademais, há uns 10 (dez) anos era impensável.
Talvez, também, quisessem alcançar alguma unidade, fora das disputas partidárias, para possibilitar que o movimento crescesse ainda mais. Lembre-se que o MPL, que convocou as manifestações, foi constituído como uma entidade apartidária (embora não anti-partidos) e até então não havia se expressado, claramente, como um movimento de esquerda.
Cumpre entender que não estou defendendo isso. Não tenho dúvida da relevância dos partidos para a vida política e democrática de um país. Tento apenas entender um fato que presenciei, o que está, portanto, alheio ao meu desejo.
Relevante, ainda, extrair alguma conclusão a respeito. Ao contrário de criar uma aversão ao movimento, compete aos partidos escutarem a mensagem que estava, enfim, sendo transmitida nas ruas. Há de se destacar, por certo, o problema de que muitas daquelas pessoas (não todas, evidentemente), que preconizavam democracia, não foram suficientemente democráticas para ouvir os partidos e mesmo não foram capazes de reconhecer que os partidos socialistas, que caminhavam ao seu lado, apoiando as causas, sempre estiveram, historicamente, presentes nas lutas por mudanças na sociedade. Mas, também não se pode deixar de identificar que a tentativa abrupta, e sem qualquer estratégia ou explicação lógica, do Partido dos Trabalhadores, do governo, de entrar em um movimento que trazia pautas de pressão sobre o governo, foi um grande erro e, mais ainda, foi equivocado os partidos socialistas se unirem ao PT, naquele momento, por conta de uma causa comum, a da defesa da participação dos partidos no ato, portando suas bandeiras. Isso gerou uma espécie de irritação generalizada, que provocou nos mais exaltados, uns ligados a movimentos ultradireitistas, uma reação violenta (que não se justifica, de modo algum, obviamente), provocando um marco trágico na manifestação, que foi a expulsão, pela força, de todas as pessoas que portavam bandeiras de partidos e daquelas que, como eu, caminhavam ao seu lado.
Mas não é irrelevante notar que o grupo dos anarquistas, que não era pequeno, continuou na avenida e, sem ser hostilizado, manteve-se gritando palavras de ordem, denunciado o caráter elitista, racista e violento (contra os pobres) de nossa sociedade.
O problema maior foi o de que, mesmo antes do crescimento das mobilizações, houve uma partidarização das análises, que, por mais paradoxal que possa parecer, retirou o caráter mais politizado das reivindicações, que, no geral, questionavam, naquele instante mais diretamente, o modelo de sociedade em que vivemos, o capitalismo. O mundo verifica um abalo geral do capitalismo e, de modo geral, os movimentos espontâneos de estudantes pelo mundo afora tratam da discussão do capitalismo, senão expressamente direcionando-se na direção do socialismo – embora essa pauta também se ponha –, ao menos na perspectiva da contraposição às concepções liberais ou, mais propriamente, neoliberais, preconizando maior intervenção do Estado (Social) na economia, por meio da promoção dos direitos sociais, que têm sido negligenciados desde o final do século passado.
Mesmo os tais “mauricinhos” – deixando claro que não gosto da expressão –, que, depois se integraram ao movimento, foram para as ruas defender saúde pública, educação pública e transporte gratuito (ao menos mais barato). Até mesmo a discussão em torno da corrupção, embora servisse ao enfrentamento eleitoral contra o governo, se bem compreendida, não está desvinculada do debate acerca do modelo de sociedade, pois, para a execução das atividades públicas, é preciso dinheiro; e o furto do dinheiro público é, sem a menor dúvida, o maior crime que se pode cometer contra o Estado Social. Haver-se-ia, pois, de acoplar a essa reivindicação uma discussão mais concreta, e politizada, da necessidade do Estado em coibir a sonegação, sobretudo diante de uma realidade em que é cada vez mais comum a prática de transformar empregados em “PJs”, para não pagar contribuições previdenciárias (sociais) e impostos – e vários dos estudantes e profissionais nas ruas são vítimas dessa supressão reiterada de direitos –, demonstrando o quanto isso constitui igual crime contra o Estado Social.
Na mesma linha, dever-se-ia aproveitar o momento para desenvolver senso crítico à transmissão vertical e horizontal da produção das grandes empresas para pequenas empresas, pois isso dificulta a responsabilização daquelas com relação às obrigações sociais, uma discussão que atrai a compreensão em torno da necessidade do fim da terceirização, que implica, além disso, segregação, invisibilidade, precarização e alto custo social com benefícios previdenciários, decorrentes da insegurança no trabalho.
Seria oportuno, ainda, trazer à baila a discussão em torno da tributação das grandes fortunas, buscando um sistema tributário mais justo, pois, no geral, no Brasil, quem ganha menos paga mais.
Aliás, na linha da mobilização contra a PEC 37, poder-se-ia realçar a relevância da atuação do Ministério Público Federal para coibir os crimes contra a ordem econômica, advindos especialmente da prática de falências fraudulentas, seguidas da “limpeza” dos bens do empreendimento, deixando em situação de penúria os trabalhadores; da constituição de empresas com capital estrangeiro, que se instauram no Brasil, exploram o trabalho dos empregados e depois somem sem deixar vestígios, prejudicando as empresas nacionais; e da constituição de empresas descapitalizadas ou cujo capital está em paraísos fiscais, atuando no mercado sem conferir garantias reais para efetivação das obrigações sociais, também em detrimento da concorrência. Da mesma forma, valeria ressaltar a importância da fiscalização do Ministério Público do Trabalho e do próprio Ministério do Trabalho e Emprego, para verificação da regularidade trabalhista, buscando, de uma vez, a extinção do trabalho em condições análogas a de escravo, a preservação da saúde no ambiente de trabalho e a efetiva coerção ao descumprimento reiterado da legislação trabalhista, também utilizado como mecanismo de obtenção de vantagem econômica frente à concorrência.
Lembre-se, ainda, que, na origem, esse era um movimento de jovens e os jovens estão motivados por uma preocupação estrutural, na medida em que, pelo mundo afora – e eles têm notícia disso –, percebe-se a estagnação de um modelo de sociedade que não os acolhe, principalmente aqueles que se preparam intelectualmente. Para esses jovens da classe média a frustração é muito grande. Assumindo desde muito cedo a lógica capitalista, veem-se colocados em boas escolas onde “estudar para passar no vestibular”, superando a concorrência, é palavra de ordem. Nestas instituições o ensino é forte e consistente. Aprendem muito e sobretudo estão muito bem informados, dadas as facilidades da internet. Quando entram na Faculdade, na enorme maioria dos cursos, chocam-se com o despreparo dos professores e a desorganização. Na esfera pública isso se dá por conta do descuido de décadas – desde a era militar – com o ensino público superior (nas esferas federais e estaduais); e no setor privado, por conta da consideração das entidades de se constituírem uma empresa para dar lucro. Vários anos de rigor acadêmico e muita disciplina de vida ficam sem sentido e muitos, muitos mesmo, descambam para uma libertação quase desesperada, com envolvimento com drogas e em baladas sem fim. E a frustração aumenta ainda mais quando veem os seus amigos mais velhos, que já passaram por isso, não alcançarem bons empregos ou mesmo emprego algum.
Claro que, no Brasil, pode-se ver o acréscimo desse problema com o incremento de algumas políticas de atração de jovens das classes economicamente mais baixas para as universidades e mesmo pela adoção, ainda que em pequena escala, das cotas sociais e raciais. Mas, primeiro, a dificuldade da inserção dos jovens ao mercado de trabalho transcende essas iniciativas, constituindo um problema mundial; segundo, não há uma revolta contra essa inclusão, até porque está em conformidade com a própria pauta da defesa da melhoria dos serviços públicos; terceiro, essa inclusão está muito aquém do necessário e sabe-se bem é inevitável; e, quarto, o problema da frustração pelo desemprego atinge, principalmente, os que foram incluídos nas universidades por tais políticas, que não abalaram, vale lembrar, a lógica privada de ensino.
Fato é que de repente, tendo conhecimento do que já estava acontecendo no mundo, com reações estudantis contra um sistema que não lhes confere oportunidades e que lhes engana, mas também por conta de um sentimento de solidariedade, que é o que também inspira os integrantes do MPL, esses jovens se viram chamados para uma reação nas ruas – não falo aqui da grande parcela de jovens politizada e engajada com as causas sociais de forma convicta que já estava nas ruas e que também se integrava ao movimento. Para os jovens referidos, os denominados jovens despolitizados da classe média foi a oportunidade de soltarem um grito de insatisfação contra tudo que entendiam os estava reprimindo e negando-lhes um futuro e de experimentarem a vida política, exprimindo, também, certa solidariedade.
Esses jovens foram impelidos para as ruas, encontrando-se com a vida política na sua essência, e em vez de terem sido acolhidos pela intelectualidade política, com aproveitamento de sua energia renovadora, foram acusados de “mauricinhos”, direitistas, massa de manobra de um golpe em gestação por conta do medo do que sua energia pudesse provocar em termos da instabilidade do governo. Foram chamados para as ruas, por um movimento com discurso de esquerda, cerraram fileiras com as causas sociais, depois foram convidados a se calar!!! Esse, me parece, foi um grande erro de percepção e de estratégia, até porque carregado de um conceito preconcebido. Não considero que seja correto afirmar, ademais, que a classe média seja, em si, uma classe homogênea, com inspiração necessariamente conservadora ou alheia aos problemas sociais. A maioria dos militantes e teóricos que se dizem de esquerda que conheço pertencem à classe média e, no geral, não me relaciono com pessoas da classe média que sejam reacionárias e retrógradas.
Vale compreender que o que estava pautado até então não era uma discussão “difusa”, como se disseminou. A disseminação dessa ideia se deu em virtude da partidarização do debate, atendendo, inclusive, a um interesse recíproco de conservadorismo. Ambas, direita e governo pautaram a discussão numa perspectiva conservadora, ou seja, sem permitir um debate concreto acerca do modelo de sociedade capitalista, embora a pauta de reivindicações trouxesse, intrinsecamente, tal discussão. O que se tinha era – e ainda é – um enfrentamento generalizado do modelo de sociedade, com o consequente abalo direto da concepção neoliberal. Mas o terrorismo do medo, do golpe de direita e da revolução comunista, instaurado, portanto, por todos os lados, impediu essa discussão, e tudo virou um embate por dividendos políticos deste ou daquele partido.
Claro que veículos de difusão nas redes sociais chamaram muitos desses jovens para as ruas por conta de preocupações pretensamente neutras, mas que serviriam para desestabilizar o governo, tendo sido esse chamado acompanhado, estrategicamente, pela alteração do comportamento da grande mídia sobre o assunto: os “baderneiros” passaram a ser denominados de “manifestantes”. É interessante, aliás, ver como a cobertura da mídia, que antes sempre mostrava os efeitos trágicos no trânsito e o “desespero” das pessoas que estavam sendo impedidas de chegar em casa por causa das manifestações, o que é uma tradição em todas as greves de trabalhadores, mudou de uma hora para outra para uma fala em torno da democracia, da liberdade de expressão, divulgando imagens de pessoas felizes e contentes com as “passeatas”, inclusive de quem estava sendo atingido por elas.
É evidente, portanto, que o movimento cresceu por uma tentativa de guinada a temas desprovidos de conteúdo, incentivados pela grande mídia, para desarticular o discurso de esquerda e, por tabela, para abalar a força do governo federal, retirando, inclusive, o foco das administrações municipal e estadual. Mas as coisas não estiveram sob seu completo domínio – tanto que o movimento nas ruas continuou hostil às emissoras de TV – e a intenção não era, claramente, de golpe, mas de dividendo eleitoral, tanto que se tentou manter sob controle as manifestações, procurando-se deixar claro a todo instante que elas deveriam ser pacíficas. O grito “sem violência” servia tanto contra a ação da polícia quanto contra a ação dos manifestantes, sendo acompanhado do “sem vandalismo”. O fato é que, parece-me, esses jovens possuem um conhecimento que impede que sejam tratados como mera massa de manobra e possuem uma consciência social bem maior do que se imagina.
Todavia, com medo do que estava acontecendo, a reação dos partidos de esquerda passou a ser voltada, exclusivamente, à preservação da estabilidade do governo, com atração, inclusive, dos partidos de esquerda de oposição ao governo. Interessante verificar que as explicações para o momento e a forma de conduzi-lo, advindas da esquerda e da direita, caminharam-se para o centro, como já ocorrera, ademais, por ocasião do anúncio da redução da tarifa, feito de forma conjunta pelo prefeito e o governador de São Paulo. As explicações de parte da intelectualidade governista sobre os movimentos foram exatamente as mesmas que eram difundidas na mídia, a qual era acusada por aquela de estar instigando um golpe de direita. Governo e grande mídia disseram, de forma uníssona, que os movimentos traziam uma pauta “difusa”, incompreensível.
Os teóricos governistas e da direita disseram a mesma coisa, querendo dominar o movimento, mas numa perspectiva conservadora do modelo de sociedade que aí está, destacando, unicamente, alguns pequenos problemas, numa perspectiva pontual.
Assim, enquanto o mundo tem se permitido um debate aberto sobre o capitalismo, visando sua superação ou, ao menos, sua remodelação completa, para dar um sentido renovado à condição humana, a mediocridade da partidarização despolitizada, impulsionada pelo terrorismo do medo, negou esse debate, sendo que, de certo modo, foi aquém da energia que estava nas ruas. Embora houvesse, certamente, muita força retrógrada atuando, a maioria das reivindicações tinha uma conotação social.
Mas, o que se difundiu, estrategicamente, foi uma visão de que não era o povo que estava nas ruas e, quando as manifestações atingiram a periferia e esta não atendeu ao chamado midiático de que fosse “limpinha”, pacífica, novamente impôs-se uma análise conservadora, que interessou de parte a parte. A primeira reação foi negar caráter político ao fato, tratando-o como mera obra de vândalos, bandidos e criminosos (sendo forçoso reconhecer que propósitos meramente criminosos estavam infiltrados em parte desses manifestantes, mas isso também se deu em todas manifestações). Depois, de forma mais elaborada, se disse que a reação nas periferias foi um efeito da política inclusiva do PT, que permitiu a essas pessoas o contato com bens de consumo primários e elas, agora, queriam mais. Mais do quê? Mais consumo. Mais do capitalismo! Salvavam-se, assim, o governo, dito de esquerda, e a direita, pois, ao mesmo tempo vangloriavam as ações do governo e faziam uma apologia do capitalismo. Não se disse que a ação violenta nas periferias era uma reação na mesma proporção da violência que essas pessoas sofreram ao longo de décadas, no que se refere à falência dos serviços públicos, exatamente com saúde, educação, moradia e transporte, sem falar da violência policial, da percepção da injustiça social e do conhecimento da impunidade com relação aos denominados crimes do colarinho branco.
No discurso da Presidente Dilma, a tentativa de equilíbrio, voltada à conciliação dos interesses conservadores, restou muito clara. No que tange às manifestações pacíficas, com conteúdo “difuso”, propôs-se instaurar mecanismos de diálogo para soluções futuras (sabe-se lá para quando), ouvindo-se todos os setores da sociedade. Com relação à reação vinda da periferia, o tema foi tratado apenas como “quebra-quebra”, que deve merecer a ação enérgica de repressão das forças do Estado.
O que acontecerá agora que o Movimento Passe Livre está chamando novas manifestações, mas desta feita na periferia? Parece-me que o Movimento vai se reencontrar com sua origem e os discursos golpistas contra a mobilização terão que buscar outra lógica ou terão, enfim, que reconhecer que há no Brasil uma força efetiva à esquerda, bem além do parâmetro burocratizado, permitindo um real debate por efetivas mudanças.
Por enquanto o legado que o terrorismo do medo deixa é o de que devemos ter medo da democracia, medo de buscar mudanças concretas, medo da política, medo de fazer manifestações, a não ser que sejam com poucas pessoas, conhecidas e com carteirinha do partido. Acho, ainda, que o terrorismo do medo foi provocado por desconfiança com relação à inteligência, o senso crítico, a consciência social, o espírito de solidariedade e a capacidade da juventude de assimilar informações e de realizar correlações, abandonando-se, inclusive, o desafio de conquistar os corações e mentes desses jovens. Essa desconfiança, ademais, se estendeu à população brasileira em geral. A classe trabalhadora, aliás, há muito vem sendo vítima dessa tática do medo, pois foi convencida de que não pode radicalizar suas pautas, para não gerar o risco de enfrentamento do poder econômico com o governo que, afinal, pertence aos trabalhadores, como se diz, provocando com isso até o acolhimento de pautas de redução de direitos.
Mas, mesmo reconhecendo a complexidade em que se transformou o movimento, não se pode, simplesmente, querer calar as ruas e menos ainda diminuir a importância de seu grito, que, ademais, continuará ecoando queiramos, ou não, dessa forma ou de outra, agora ou depois, pois a sensação da cidadania experimentada foi um caminho sem volta. Essa vitória do movimento em torno da consciência da força da mobilização não será perdida, por mais que não se queira destacá-la.
É hora, ademais, de produzirmos lógicas racionais que vislumbrem a complexidade do mundo e respeitem a nova inteligência humana.
Não é possível que o Brasil continue como está, e mesmo não se pode acatar a irracionalidade de afirmar que tudo é culpa do PT e que o PSDB tem a solução. Mas também não se pode ter o medo de que as mazelas sejam expressas, pois só assim, exercendo com plenitude a democracia, é que se pode produzir alguma racionalidade para a superação, por meio das instituições democráticas, da realidade presente, que tem raiz em passado longínquo, vale lembrar. A leitura marxista da história exige, ademais, a produção do conhecimento científico, a busca da verdade, superando as versões falseadas dos fatos, postas para atender interesses não revelados, de qualquer natureza, sendo que uma forma básica para se identificar a cientificidade do debate é a demonstração de coerência e correspondência.
A política dentro dos partidos é relevante, mas não se faz política apenas dentro dos partidos. A política se faz, também, por reações espontâneas nas ruas, que, posteriormente, vão se articulando. O próprio PT surgiu assim. Ou alguém vai dizer que as mobilizações dos sindicatos na década de 70, lideradas pelo ex-Presidente Lula, não foram políticas porque não tinham partido? Além disso, a política não pode ser alheia à ciência e esta, para exercer o seu papel, não pode ser atrelada aos limites de interesses eleitorais, ditados pelo medo dos dividendos que uma verdade possa conferir ao adversário político.
É momento, pois, de superar a ignorância, alimentada pelo medo, e as formas fingidas de se posicionar. Penso que ainda veremos grandes mudanças no mundo, que serão necessárias e inevitáveis diante do estágio de estagnação do modelo capitalista de produção, mas não considero que um modelo socialista possa ser imposto, ditatorialmente, às pessoas, com supressão da liberdade e da lógica democrática e, mais ainda, a partir de uma construção ideológica que despreze a realidade. As experiências históricas neste sentido foram fracassadas e, ademais, não se pode pensar uma sociedade socialista sem o conjunto das pessoas e, menos ainda, com pessoas impregnadas pela lógica capitalista, lembrando sempre que o capitalismo é um modo de ser da sociedade, não apenas um modelo de produção. Além disso, o que está em jogo não é o dividendo eleitoral ou acadêmico que uma ou outra ideia possa ter para esta ou aquela pessoa ou algum partido político. O que se discute é, na essência, a condição humana e quais são os arranjos sociais que possam favorecer a valorização de um ser humano menos egoísta, não consumista, mais solidário, mais culto, mais humano, enfim, com permissivo real à efetivação dos preceitos da liberdade e da igualdade.
A juventude que foi às ruas, ainda que boa parte dela tenha sido impulsionada por um apelo apartidário e despolitizado, está na base material dessas discussões e tem total condição de compreender as questões acima tratadas e, de forma surpreendente para muitos, possui propostas que vão muito além daquelas a que tem chegado a esquerda burocratizada. Há que se ouvir a juventude, sempre. Dizem que um problema de a esquerda não se integrar com coragem ao movimento das ruas é o de que esses jovens tendam aos quadros do raciocínio reacionário e retrógrado. Acredito que o maior risco é o da percepção por parte desses jovens da inconsistência teórica e prática de alguns dos considerados partidos de esquerda, abrindo-se o espaço para o novo, e não o de que se disponham a lutar por valores conservadores, que desprezam, no mínimo, a crítica ao neoliberalismo, pois estão sendo assolados por seus efeitos.
Não é possível saber, para onde estamos caminhando, mas o mundo não está parado e já se moveu. O Brasil não será mais o mesmo. As mobilizações sociais na luta por serviços públicos adquiriram em curtíssimo tempo, tão curto que pode ser apontado como um corte revolucionário, o senso comum, ainda que ditado por uma mídia comprometida com propósito político diverso. Trata-se trata de manifestações políticas legítimas, superando-se o tradicional e reacionário paradigma do direito de ir e vir. Esta revolução foi uma vitória incomensurável para os movimentos sociais e para a classe trabalhadora em geral.
Carrego o otimismo de que estamos dando um passo decisivo adiante. Ao menos por enquanto, é possível professar que há um reclamo geral para a construção de um mundo no qual se possa dizer, com fundamento teórico, o que se pensa, com respeito às posições contrárias, com exigência apenas do apelo à racionalidade e o requisito de que a ideia defendida sirva ao conjunto da humanidade.
Não se deve deixar derrotar pelo terrorismo do medo, sendo, ademais, relevante exaltar as vitórias já conquistadas pelas manifestações, atribuindo os méritos a todos que delas participaram, e não a uma elite política e intelectual; pois, do contrário, restará a sensação de que a luta nas ruas, pelos riscos que gera, não vale a pena, amordaçando e burocratizando a ação política, recriminando os valiosos integrantes do MPL e propugnando que a política só pode ser feita em campos limitados, sob o controle dos ajustes conciliados, com o pretexto de se preservar a governabilidade. Lembre-se que "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado" é uma concepção fascista, uma forma indireta de negar a política dos movimentos sociais espontâneos e a relevância dos partidos. E vale avaliar em que medida a vinculação dos sindicatos à base aliada do governo nos últimos anos provocou desmobilização e perda da capacidade de organização da classe trabalhadora que, inclusive, na visão do terrorismo do medo, estaria levando um banho de um “bando de jovens despolitizados”, que se organizaram, sem qualquer teorização, a partir de um único chamado na rede social – o que não me parece ter ocorrido desse modo tão simplista, como demonstrado.
Pessoalmente, não quero conviver, silenciosamente, com o engodo, em uma sociedade que se diz socialdemocrata, mas que preserva interesses econômicos de grande conglomerados econômicos, que enuncia um enorme quadro de direitos sociais e não os aplica, que institui Comissões da Verdade, mas que não quer, de fato, que a verdade seja revelada, que cria uma Comissão de Direitos Humanos e a faz presidir por uma pessoa que não tem noção do que sejam os Direitos Humanos e que se apresenta, na realidade, com profundas injustiças sociais.
Não sei qual é a verdade. Tenho mais dúvidas do que respostas. Mas não podemos ter medo de buscar a verdade e as manifestações nas ruas, com toda sua complexidade, servem, sobretudo, para nos ajudar nesta busca. A população está redescobrindo o espaço público e este é um ato essencial até mesmo para redescobrir a política e o convívio humano, que, nas passeatas, retirando os atos mais exaltados de alguns, chega a emocionar.
Cumpre às instituições, sobretudo aos partidos, compreenderem o alcance das mobilizações e estabelecerem diretrizes concretas para efetivarem, com urgência, seriedade e verdade, as reivindicações levadas às ruas, que não são despropositadas, vez que estão, a maior parte delas, consagradas na Constituição de 1988, que foi, vale lembrar, o pacto social já realizado – e até hoje não cumprido, sobretudo no aspecto dos direitos sociais – para superar o momento de crise instaurado no início da década de 80, quando a democracia começava a florir e as pessoas, da mesma forma como agora, cansadas das mentiras de um governo que prometia “tudo pelo social”, mas que nada fazia de concreto neste sentido, foram às ruas em passeatas, chegando mesmo a promover alguns saques.
Devemos aprender com a história e não podemos ter medo da democracia. Não devemos ter medo das contrariedades manifestadas, que constituem, ademais, a matéria-prima da produção da inteligência. Quando alguém vai às ruas com placas de reivindicações, às vezes contraditórias e confusas, não está participando de um golpe. No ano passado, vários estudantes da USP que ocuparam as ruas de São Paulo, com os lemas “Fora PM”, “Fora Rodas”, “Fora Alckmin”, queriam que os preceitos democráticos fossem respeitados. Estas são formas de expressão naturais do panfleto das ruas, que traduzem um sentimento, que devem ser assimiladas pela democracia e avaliadas intelectual e culturalmente, seguidas da reflexão sobre as razões da insatisfação. O grito tinha, em si, a razão de ser contra os resquícios da ditadura que ainda regem aquela entidade, gerando falência dos mecanismos de diálogo e uma atitude intolerante com relação às contestações, atingindo, sobretudo, a ação sindical, intolerância esta que foi reforçada com o apelo à violência da repressão policial, que é mais grave ainda em se tratando de um ambiente acadêmico propício à formação e à difusão de ideias.
Há de se perceber, por oportuno, o grande avanço do momento presente, pois, quando a repressão na USP ocorreu, houve uma rejeição generalizada tanto por esta mesma parcela da população que está nas ruas, quanto por aqueles que hoje acusam a existência de um golpe articulado. E, queiramos ou não, o momento presente deve trazer os legados de que as manifestações políticas não serão mais reprimidas com violência policial e de que o ambiente escolar não é lugar para atuação articulada e ostensiva da Polícia Militar.
O que se verifica concretamente das manifestações presentes, ademais, é que não há uma contrariedade tão grande assim entre a maioria das reivindicações. Por mais que se tente alimentar o medo em torno do reacionarismo ou golpismo de parte dos manifestantes ou que se possa partir da leitura que se faça do movimento, a quase totalidade das reivindicações refere-se mesmo a direitos sociais, do que não se desvinculam, de certo modo, também as pretensões que giram em torno da corrupção e da moralidade administrativa, pois o furto do dinheiro público e o seu desvio para atender interesses privados, somados à sonegação, em última análise, são o que dificulta a promoção dos direitos sociais: saúde, educação, transporte e moradia. Além de enfraquecer o Estado, na qualidade de garantidor da efetividade dos direitos trabalhistas e previdenciários.
Como já disse, é impossível prever o alcance das manifestações e não se pode negar a tentativa de desvirtuá-las para outras pautas, mas que ainda assim são importantes para o Brasil se conhecer. No mínimo, não se pode perder o momento para conduzir o governo a uma pauta verdadeiramente social, pois este é o menor alcance da maior parte das reivindicações que está nas ruas. Mas deve-se fazê-lo com rapidez, porque estes jovens insatisfeitos representam a sociedade do “click”, da mensagem “on line”, e não querem mais a lógica antiga da formação de comissões que conduzem a lugar nenhum. Seria, ademais, um efeito muito ruim abdicar do papel de auxiliar na conscientização dessa energia política e social revelada, em forma de explosão, por essa juventude, que está contagiando toda a sociedade, uma sociedade que, ao se revelar, da forma como tem feito, contra a corrupção e em favor dos direitos sociais, parece estar disposta, enfim, também, a rever seus maiores problemas que são a desigualdade social, o racismo, o machismo, o preconceito, a segregação, a intolerância e a rejeição aos movimentos sociais e às mobilizações dos trabalhadores. Ao menos essa sociedade precisa ser desafiada a enfrentar esses problemas. Estão pedindo providências do governo, então é o caso de verificar o quanto todos estão dispostos a contribuir para que se efetivem as soluções.
No que me concerne, até porque devo isso a meus alunos, como forma de demonstrar coerência, concluo dizendo que o terrorismo do medo do mal maior, ou a lógica da acomodação ao mal menor, não vai me obstruir a mente, deixando claro que não tenho medo da direita que se manifesta. Não tenho medo mais da mídia que tenta manipular, pois, diante do poder de informação da internet, a mentira sempre se revela. Tenho medo da direita que não se apresenta, assim como tenho medo da esquerda que se omite ou que se diz ser o que de fato não é. Tenho medo da ignorância, traduzida pela negação das investigações científicas. Não tenho medo do grito. Tenho medo do silêncio, pois é nele que se operam as tratativas, as negociatas e os conchavos. E devemos todos ter medo mesmo é do silêncio que se tenta impor a quem pretende e tem alguma coisa a falar!
Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP.
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