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"Chave para entender América Latina está nos movimentos
sociais", diz sociólogo espanhol
Brasil de
Fato
"Nunca havia
suspeitado de que a América Latina pudesse mudar tanto e para tão melhor. Nos
últimos quinze, vinte anos, houve mudanças imprevisíveis", diz Juan Carmelo
García
Patricia Simón,
Quase cinco horas de aula com apenas um recesso de
quinze minutos. Com toda referência, um mapa de Peters ampliado no continente
latino-americano para o qual só olha quando a tela se apaga, ao passar para o
modo de espera. Aproveita esse lapso para fazer alguma piada e, assim, dar um
rápido descanso à quinzena de estudantes que acompanham seu trepidante discurso
em um sábado desde às nove da manhã no master de Cooperação da Universidade de
Oviedo. O sociólogo e politólogo Juan Carmelo García fala de modo apaixonado
sobre a atualidade com o devir histórico do continente latino-americano,
tecendo, com dados, uma geografia dos povos e dos movimentos sociais. Está há
meio século estudando o assunto no Instituto de Estudos Políticos para a América
Latina e África (IEPALA), um espaço de análise e divulgação da esquerda, do qual
é presidente.
“Nunca havia suspeitado de que a América Latina
pudesse mudar tanto e para tão melhor. Nos últimos quinze, vinte anos, houve
mudanças imprevisíveis, que estavam na estrutura profunda do continente, mas não
claramente manifestadas nas estruturas públicas. Há muitas Américas Latinas e,
nessa complexificação a que estamos assistindo, cada um vai se afirmando, se
recuperando”. E, para começar, lembra as estudantes mulheres – da quinzena, só
há cinco – que a história não é linear, que “o que vemos agora não é
consequência lógica do que aconteceu anteriormente (…) Nós mistificamos a lógica
da razão e isso causou muitos danos, pois acreditamos que sabemos o que está por
vir pelo fato de conhecermos as premissas”. Aqui está a chave de seu enfoque
para a análise do continente: “A chave para entender a América Latina está nos
movimentos sociais”. E aponta como os mais importantes a educação libertadora,
liderada por Paulo Freire, a filosofia da libertação, de Enrique Dussel, e a
teologia da libertação. “Não se compreendeu sua importância até comprovar que
não houve agressão mais violenta que a do Vaticano à teologia da
libertação”.
Volto a me encontrar com ele uma semana mais tarde
em seu escritório, na sede do IEPALA, em Madri, rodeado por lembranças de suas
viagens e entrincheirado atrás de uma enorme mesa literalmente repleta de livros
e documentos. Ao fundo, toca a rádio Clásica. E começamos pelo país da
atualidade, Venezuela.
Periodismo Humano: Durante a aula, o senhor
argumentou que é uma incógnita se os sucessores de Chávez serão capazes de
encher com conteúdo o chamado chavismo, tendo como referência um líder que se
converteu em um mito. Chávez estava consciente de que estava construindo um
mito? E, em caso afirmativo, estando ciente dos problemas futuros que isso
poderia acarretar, ele foi vaidoso?
Carmelo García: A construção de um
mito de gente lúcida, como ele era, é, de alguma forma, consciente. O mito vai
sendo construído pelas pessoas, mas ele vai respondendo e as provocando. E vai
engrandecendo o que as pessoas esperam dele. Boa parte do chavismo se baseia no
fato de que o fizeram dizer muitas coisas que seriam possíveis no futuro, mas
que não as pôde realizar porque não tinha nem capacidade nem recursos
suficientes para colocá-las em prática a partir do aparelhamento de Estado que
ele construiu.
Há uma parte da qual ele está consciente. Tenho a
sensação, além disso, de que ele descobriu isso muito rapidamente, tão logo saiu
da prisão após o golpe militar. Ele se dá conta de que tem poder e que gerou
expectativas em um círculo pequeno. E começa a construir o chavismo,
contraditoriamente, às vezes com coerência e outras dando saltos. E dá um muito
complicado, que é o de partilhar um dinheiro que tem graças aos petrodólares,
sem um projeto socioeconômico e político para os receptores, que são as pessoas
das pequenas comunidades afastadas. Isso lhe convém porque fomenta o chavismo e
uma clientela fiel, dentro do que seria um populismo normal. Isso foi feito por
muitas pessoas, como Perón, López de la Torre... Mas Chávez obtém uma resposta
muito grande porque havia muitos pobres. E continua havendo muitos.
Mas não reestrutura o sistema produtivo
venezuelano, muito polarizado em torno do petróleo, em uma economia muito mais
participativa, organizada. E não sei se é porque não tem os mecanismos ou os
recursos de inteligência para fazê-lo, porque esse é outro problema: não houve
muita inteligência orgânica dentro do chavismo e foi ele quem teve de
construí-lo por completo.
Ele se dá conta de que é um mito, começa a fazer as
coisas na América Latina e as expectativas são muito grandes. As esquerdas da
Europa, que desde a queda do Muro de Berlim não tinham em quem se agarrar, o
fazem em Chávez. Por sua vez, está surgindo um Brasil muito novo com Lula, ao
qual deveria se voltar mais, porque precisava de um apoio internacional forte e
foi deixado um pouco sozinho.
A partir desse momento, não creio que o problema
seja de vaidade. É verdade que os líderes políticos têm o problema do ego
inflado. Mas a iniciativa que ele provoca é algo muito sério e pode trazer
complicações: manifestar excessivamente sua repulsa aos Estados Unidos, quando
este é seu principal cliente. Na lógica do discurso chavista, era preciso ter um
inimigo, mas Maduro, a quem falta muita maturidade, não controla o que diz e
solta algumas grosserias que podem gerar conflitos nas relações internacionais.
O que Maduro e os dirigentes chavistas poderiam fazer é colher o que Chávez
disse e fazer disso o seu programa.
Porque se as últimas eleições ocorrem após dois
meses da morte do mito – que vai se esvaziando se não é alimentado –, perdeu-se
uma porcentagem muito alta de eleitores. Ou isso é bem apreendido ou o chavismo
durará um ano. E não vale se meter com os Estados Unidos, Espanha, ou chamar o
Capriles de todo tipo de barbaridade. Maduro poderia ter vencido a vaidade e
acreditado que é um filho de Chávez. E não. É um sindicalista não muito bem
preparado, que tem uma boca da qual saem barbaridades facilmente.
O senhor diz que as esquerdas internacionais não
apoiaram suficientemente o Brasil de Lula. Por quê?
Primeiro, porque têm medo dele, pois é um país
grande: a América Latina sem o Brasil é muito pouca coisa, ainda que o Brasil,
sem a América Latina, também o seja. O Brasil é a força importante na economia
mundial e nas relações internacionais. E o Partido dos Trabalhadores do Brasil é
muito especial, uma formação política alternativa integrada por 30 organizações
pertencentes a movimentos sociais, sindicatos, que acabam se transformando em um
partido político, seguindo o rastro de muitos outros países latino-americanos,
nos quais não funcionaram nem os partidos tradicionais, nem os conservadores,
nem os liberais e nem os social-democratas. E também encontram em Lula uma
pessoa um tanto mitificada: um trabalhador que perdeu um dedo trabalhando em um
equipamento em mal estado, preso por fazer parte da oposição sindical durante a
ditadura, que vai emergindo e que se converge em um líder social que se
candidata nas eleições e não as ganha... Até que as ganha. E chega depois que o
presidente social-democrata Fernando Henrique Cardoso reestruturou a economia
brasileira e foi ganhando credibilidade no exterior.
Lula é uma pessoa sensata que não perde a cabeça
por estar na presidência, que não pôde fazer tudo o que queria por conta da
estrutura econômica e política de um Estado muito difícil de controlar, mas que
talvez tenha feito menos do que poderia. Mas cumpre um papel muito importante
frente aos organismos internacionais, frente às Nações Unidas, ao G7 e ao G20.
Cria-se o grupo dos emergentes, BRICS, que são os únicos com capacidade para
mudar o Conselho de Segurança da ONU... E agora chega Dilma Rousseff, também uma
presa por terrorismo, uma revolucionária que se transforma em presidenta de um
país no qual o machismo é infinito.
Estamos em um momento de transição, com uma
tendência altamente positiva. A América Latina é o único continente que continua
crescendo e de maneira mais homogênea – ainda que continue tendo o problema da
desigualdade, e aí faltou coragem a Lula para miná-la –, que continua
solucionando a democratização pouco a pouco... E, para isso, não bastam nações,
mas são necessárias uniões.
Se os Estados Unidos entendessem que a América
Latina amadureceu politicamente em muitas de suas camadas e que já não são mais
apenas oligarquias, que há um projeto democratizador... E, nesse processo de
entendimento, a Europa poderia ajudar, para servir como referência quanto aos
direitos humanos, a boa governança, os direitos dos povos... Mas temos uma
Europa néscia e estúpida, e não se pode esperar muito dela. Se mudasse a partir
das eleições alemãs, e depois do Parlamento da União Europeia, poderíamos pensar
que assumiria outro papel.
No caso do Chile, chama a atenção que uma sociedade
formada politicamente nas esquerdas e com uma ditadura tão recente eleja como
presidente Sebastián Piñera, dono de uma das maiores fortunas do
país.
Piñera é muito de direita, mas não é pinochetista,
é democrata, de uma direita inteligente, poderosa e civilizada. E à frente tinha
o conjunto das forças de esquerda, preso com alfinetes, uma força que poderia
ser interessante, mas que não tinha um projeto comum. E, além disso, que teve
presidentes que não foram coerentes com o fato de resgatar a democracia e
colocá-la a serviço do povo, mas que se deixaram levar pela economia criada por
Pinochet, liberalizada e aberta por completo ao capital exterior, incluindo
Ricardo Lagos. E o último mandato de Michele Bachelet foi muito errático, não
fez política com o enfoque de gênero, como foi colocado em prática na ONU
Mulheres, e poderia ter dito “eu sou socialista de Allende”, em vez da coalizão.
Também teve o problema que se rebelaram os jovens e os indígenas, com os quais
nunca se lidou bem, nem nos tempos de Allende. Tampouco houve muita
inteligência, por parte das populações indígenas, em suas relações a respeito do
projeto nacional.
Mas o fato de que Bachelet tenha decidido voltar é
muito bom porque aprendeu uma lição em nível mundial de política de gênero e
porque se deu conta da decadência do Chile quanto ao significado político. O
maior capital do Chile continua sendo Salvador Allende e a referência ante o
mundo de que aquela foi uma possibilidade que solaparam da maneira mais
selvagem, violenta e néscia. E sua volta pode ser muito positiva para toda a
América Latina. A vantagem do Chile é que é um país muito grande e tem que ter
relação com muitos países, tem uma economia avançada e bem articulada, sem ter
que passar por essa oligarquia reduzida. Se isso é colocado em prática, teremos
um par de legislaturas muito boas, que contribuirão muito inteligentemente para
essa latino-americanização do continente.
E, em todo esse panorama esperançoso que o senhor
traça para a América Latina, como o narcotráfico pode malograr esses
processos?
Tem um papel muito importante, é uma potência
financeira internacional, mas poderia ser controlado se o presidente da
Colômbia, Juan Manuel Santos, fosse capaz de conseguir a paz, que depende dele,
e não dos guerrilheiros, que já não têm nada a propor.
Nem sequer a reforma agrária?
Eles têm que propô-la porque, se não, vão perguntar
a eles o que estão defendendo, mas quantos deles irão ao campo trabalhar?
Quantos criarão cooperativas de produção para colocá-las a serviço dos
despejados? Eles perderam categoria política. Mas Santos precisa da paz mais do
que eles e, então, poderiam ir pelo narcotráfico, que, ainda que não dependa
apenas da Colômbia, os cartéis dependem, em uma porcentagem muito alta, da
produção, transformação e venda desse país.
E no caso do presidente Santos, que era ministro da
Defesa do governo de Álvaro Uribe quando se cometeram os falsos positivos,
assassinatos de civis, apresentando-os à opinião pública como baixas dos
rebeldes, isso não vai acarretar um custo político? E, em relação a seu
enfrentamento público com Uribe, trata-se de uma fofoca política ou tem algo a
mais?
Na realidade e, de fato, a apresentação de Santos
nas eleições já foi uma maneira de se distanciar e assinalar que era ele quem
tinha categoria política. Porque é verdade: Uribe tinha que se travestir de
“ditadorzuelo” porque o pobre homem não tinha capacidade para mais. Santos pode
governar um grande país como pode ser a Colômbia, com uma economia mais
articulada e diversificada que a venezuelana, com uma classe média mais ampla e
mais formada... Mas deveria abrir mais o processo de paz à participação da
cidadania, em vez de fazê-lo com secretismo. As FARC poderiam se fazer de
valentes, mas isso seria muito torpe porque não têm nada a oferecer e tudo para
ganhar em nível pessoal, grupal e também como projeto.
“Passar do Estado de bem-estar ao de bem-querer,
conversas nas quais o outro tenha importância, que as relações não sejam de
poder, mas de querer (…) Me pergunto se estamos assistindo a mudanças de
paradigmas fundamentais, se surge outra forma de convivência baseada na
soberania do povo. Se começa a tomar corpo no 15M... Ainda estamos vivendo da
Revolução Francesa”, disse Carmelo na aula.
No caso da proposta indígena do Bem Viver,
incorporada nas constituições bolivianas e equatorianas, que influência podem
ter, para além desses países, na concepção dos Estados?
É um referencial que tem muitos níveis. No plano
teórico, pois se atreveram a propor, em um momento de grande crise teórica, um
Estado não-nação, que mantém a unidade e que incorpora um quarto poder, o
comunitário, colocado como base dos outros. E isso fez com que comunidades como
as Aymara e as Quechua enfrentassem Evo porque ele não sabe ser coerente com o
que foi estabelecido constitucionalmente. Mas também é certo que não há um
substituto, como ocorria com Lula no Brasil. O Movimento dos Sem Terra (MST)
rompia com o PT, mas logo tinha que votar por ele porque, se não fosse assim,
seria por quem?
No caso do Equador, Rafael Correa, que é mais
inteligente, mas mais mentiroso, tem mais estrutura de poder porque já foi
ministro com Lucio Gutierrez, que tinha um artifício para fazer com que os
indígenas acreditassem que eles estavam participando.
Essas constituições acolhem os direitos humanos,
mas também os da natureza, e os juristas estudam como a natureza pode ser
sujeito de direito... Ainda não sabemos bem o que significam, mas poderiam ser
um modelo alternativo de organização para a convivência, a economia, a vida
cotidiana, a produção que se leva nos países desenvolvidos. E, logicamente,
parece mais coerente que sejam os povos aqueles que decidirão.
A Espanha reduziu, nos últimos anos, 70% do
orçamento dedicado à Cooperação ao desenvolvimento, e muitas ONGS tiveram que
abandonar projetos já iniciados e demitir uma grande de seu pessoal contratado.
Nesse sentido, rodeado de profissionais que se especializam em um master para
trabalhar no Terceiro Setor, também reivindica que essa crise seja aproveitada
pelas organizações para questionar e repensar a cooperação ao desenvolvimento.
“Também não é ruim que desapareça a cooperação ao desenvolvimento tal como
ocorre hoje, esse humanismo que encobre o desastre da desigualdade. Mas o ruim é
que não vai desaparecer, mas será substituída por alianças
político-empresariais. Os únicos que têm consciência crítica estão no mundo das
ONGs. Se, nesse meio, pudessem surgir movimentos para questionarem a cooperação
atual...”
O que o governo espanhol está fazendo com a
cooperação?
O mesmo que estavam fazendo antes, o ridículo. Não
entenderam isso, pois a utilizam como uma arma política externa e agora mais
ainda, com o ministro de Relações Exteriores tão arrogante que temos. Mas não
apenas na Espanha, como também na União Europeia e na ONU. Levamos sessenta anos
com isso, e algo de errado devemos ter feito, se o mundo está como
está.
Tenho pena do fato de, por conta da política de
cooperação, caírem um monte de organizações que estavam fazendo pequenas coisas,
com um senso crítico, e permanecerem apenas as que têm capacidade econômica. O
que a capacidade econômica tem para colocar a serviço dessas pessoas, fazendo
emergir um sujeito sociopolítico e econômico alternativo? Isso me entristece
porque é um dos grandes temas que temos pendentes no mundo.
Tradução: Opera
Mundi
Foto: Reprodução/PeriodismoHumano |
Carlos Augusto de Araujo Dória, 82 anos, economista, nacionalista, socialista, lulista, budista, gaitista, blogueiro, espírita, membro da Igreja Messiânica, tricolor, anistiado político, ex-empregado da Petrobras. Um defensor da justiça social, da preservação do meio ambiente, da Petrobras e das causas nacionalistas.
terça-feira, 11 de junho de 2013
GEOPOLÍTICA - Chave para entender a América Latina.
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