E se o mundo ainda não estiver pronto antes da chegada do nosso olhar?
Em um ‘Encontro com Milton Santos – O mundo global visto do lado de cá’ (2006), de Sílvio Tendler, descobrimos que há três mundos em um só. Tese: o 1º é a imagem idílica que dele desponta do mundo – a globalização como fábula. Antítese: o 2º é o mundo como ele é – a globalização como perversidade. Síntese: o 3º é o mundo como ele pode ser – uma outra globalização. Por Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler
“O centro do mundo está em todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está”. Assim falou Milton Santos (1926-2001), o geógrafo brasileiro que refletiu profundamente sobre o processo de globalização capitalista como uma tensão dialética. Em um ‘Encontro com Milton Santos – O mundo global visto do lado de cá’ (2006), documentário dirigido por Sílvio Tendler, descobrimos que há três mundos em um só. Tese: o primeiro é a imagem idílica que dele desponta do mundo – a globalização como fábula. Antítese: o segundo é o mundo como ele é – a globalização como perversidade. Síntese (há muito inviabilizada pelos donos do poder): o terceiro é o mundo como ele pode ser – uma outra globalização.
“Nunca na história da humanidade houve condições técnicas e científicas tão adequadas para construir o mundo da dignidade humana. Ocorre que essas condições foram expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo perverso. Cabe a nós fazer dessas condições materiais a condição material da produção de uma outra política”. O professor Milton Santos entrevê a discrepância entre os Estados nacionais que, como os Estados Unidos, vaticinam o arrefecimento do Estado-Nação, mas, ao mesmo tempo, exponencializam seus gastos militares e fortalecem as próprias demandas a despeito dos países combalidos. A circulação de capitais e mercadorias não poderia ser mais intensa e global, ao passo que a circulação das pessoas esbarra nas fronteiras farpadas e, no limite, na introjeção da própria lógica do escravo. “Aquele não é o meu lugar, eu devo ficar aceitar minha condição”. Mas Milton Santos entrevê o surgimento da antítese contestatória quando o torpor e a inércia mais parecem consolidados. “Penso sempre em meio ao processo contraditório. Tenho muito medo da ortodoxia, do marxismo ortodoxo, do pensamento que não se renova, que não se historiciza. É quando há o risco da religião e do dogma. Assim, num sentido heterodoxo, eu me considero um marxista e um marxizante. Pois se tudo se torna capitalista, obrigatoriamente a contradição se instala”.
Sílvio Tendler cita um fragmento de ‘Geopolítica da Fome’, de Josué de Castro, para ilustrar a tensão contraditória que contrapõe a tese das grandes corporações à antítese do miseralato. “A humanidade se divide em dois grupos: o grupo dos que não comem e o grupo dos que não dormem com receio da revolta do que não comem”. Porque a inanição historicamente (re)produzida, como bem ensina Milton Santos, não se refere a uma restrição das forças produtivas, mas à distribuição da riqueza social que os donos do poder insistem em chamar de “recursos escassos”. Assim, o desemprego e a pobreza atuam como forças da natureza; trata-se, segundo os porta-vozes da opressão, de fenômenos cíclicos contra os quais somente se pode proteger atrás dos muros altivos e farpados dos condomínios-bunkeres. No mais, se os sindicatos e as entidades de classe protestam pela manutenção e expansão dos direitos trabalhistas, as grandes corporações podem globalizar a produção e particularizar os salários. Socialização das perdas, privatização dos lucros. A jaqueta cujo tecido foi costurado no Bom Retiro, o zíper foi fabricado na Malásia e os botões, na China, custa menos para o consumidor final por conta dos centavos que mal forram os pratos daqueles agora rebaixados a subproletários. Pois é preciso orar financeiramente diante do altar do consumo, “este sim o verdadeiro fundamentalismo da contemporaneidade”.
Mas mesmo com o poder mundial das grandes corporações e de seus Estados nacionais fortemente armados, Milton Santos entrevê importantes possibilidades de resistência justamente no conceito contraditório de humanidade. Quando dos primórdios da globalização, com as grandes navegações primeiramente capitaneadas pelos portugueses, a expansão territorial significou a submissão colonial e a chacina dos povos nativos. O outro era visto como escravo. A globalização de nossos tempos comporta um fator de dominação ainda mais brutal e cínico, pois a pobreza é fomentada e explorada a despeito da possibilidade de erradicá-la. Mas, agora, as distâncias planetárias se tornam contíguas não apenas para as grandes corporações e os aparelhos de repressão, mas também para os movimentos de contestação. As causas sociais deixam de ser meramente locais para se articularem mundialmente. Se a exploração é global, o desenvolvimento tecnológico passa a ser alvo de disputa, pois suas benesses são impessoais e dependem de quem delas se apropria – as grandes corporações e sua lógica instrumental de exclusão e maximização dos lucros ou a grande maioria da humanidade representada pelos movimentos de resistência que pretendem reconstruir o mundo sobre novas bases.
Milton Santos, que se considerava um intelectual outsider por não pertencer a nenhum partido político, por não ter credo, por não fazer parte de nenhum grupo intelectual, estruturou seu pensamento sobre a dialética que diagnostica a desestruturação do presente para, em meio aos escombros entre os quais os oprimidos precisam se esgueirar, projetar o reordenamento futuro do real. Algo como uma retomada do ímpeto do marxista italiano Antonio Gramsci, que, acossado pelo cárcere do ditador fascista Benito Mussolini, propugnou pelo pessimismo do intelecto para que o otimismo da vontade e da resistência se tornasse libertador. “É preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e insurreições. Eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro”. (Jean-Paulo Sartre, no prefácio de Os condenados da terra, de Frantz Fanon.)
Há 10 anos, quando eu começava a caminhar pelo corredor polonês da dialética, as várias leituras que Milton Santos me propiciava me levaram a um livro de homenagens ao grande intelectual brasileiro e universal – o local como momento indissociável da configuração histórica universal, mas sem perder suas características de identidade e resistência. Cheguei a um fragmento que falava sobre a juventude do escritor russo Liev Tolstói. Quando criança, o menino Tolstói, trêmulo, tinha medo de olhar para trás. “E se o mundo ainda não estiver pronto antes da chegada do meu olhar?” Se tivesse lecionado para o jovem Tolstói, o geógrafo baiano de Brotas de Macaúbas teria ensinado ao autor de Guerra e Paz que novo ainda desconhecido pressupõe não apenas o temor da expectativa incerta, mas o ímpeto da descoberta e da transformação.
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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