Tent-cities: a favelização no coração do capitalismo
Quem pensa que favela, cortiço, barraco de lona e papelão é uma
realidade específica dos países da periferia do capitalismo como o
Brasil pode começar a rever seus conceitos. Esta chegou ao Estados
Unidos, tem o nome de tent-city (cidade-acampamento), as cores vibrantes
do nylon das barracas e os mesmos problemas de sua equivalente no
Brasil. A favelização americana é o resultado cada vez mais visível da
precarização das condições de vida e trabalho nos Estados Unidos e seu
surgimento se deu em várias partes do país, especialmente a partir de
2005. São cidades-acampamento que funcionam como abrigo para moradores
de rua e trabalhadores desempregados especialmente em regiões
metropolitanas, mas também em áreas rurais e florestais das grandes
cidades.
Interessante notar que essa não é a primeira vez em que os
norte-americanos enfrentam a favelização. As tent-cities possuem como
referência histórica as “Hoovervilles”
(nome dado em referência ao então Presidente Herbert Hoover),
acampamentos criados espontaneamente e por iniciativa da administração
pública nos difíceis anos 1930. Uma das cidades-acampamento surgidas na
época, “Weedpatch Camp”, situada na Califórnia, aparece retratada pelo
romancista John Steinbeck na famosa obra As vinhas da ira, de 1939, que
narra a história de uma família de agricultores arrendatários que é
expulsa do campo durante a Grande Depressão e, sem ter onde morar, acaba
por se juntar a este acampamento.
Estima-se que existam hoje por volta de 30 cidades-acampamentos em todo o
país, reunindo centenas de pessoas, mas esse número não é estável, já
que muitas são fechadas pela polícia enquanto outras surgem todos os
anos. Em um documentário
realizado em 2012 para retratar a história de “Camp Take Notice”,
cidade-acampamento situada em uma área de auto-estrada de Ann Harbor (no
estado de Michigan), o jornalista e professor da Universidade de
Michigan, Anthony Collings, se deparou com a situação da maioria dos
acampados: abandono pelo poder público, efêmera e demagógica
visibilidade de seus problemas pelas empresas midiáticas e luta
cotidiana contra a degradação humana.
O acampamento Take Notice (em português, “Olhe para nós”) surgiu em 2008
composto por entre 20 e 70 pessoas, a depender da estação do ano,
majoritariamente desempregados da classe trabalhadora ou classe média
empobrecida após a crise e alguns veteranos do exército norte-americano.
Em seu documentário, “Take Notice: um acampamento para desabrigados”,
Collings buscou retratar a trajetória de homens e mulheres que
procuravam a cidade-acampamento como uma forma de sair das ruas,
procurar emprego ou ainda conseguir voltar a pagar aluguel para morar.
De acordo com estudo realizado em 2008 para a Conferência de Prefeitos
do Estados Unidos, as três maiores causas da existência de desabrigados
no país são a falta de moradia à preços acessíveis, a pobreza e o
desemprego. Dados do Departamento de Habitação estimaram, em 2010, a
existência de quase 700 mil pessoas desabrigadas no país, valor 20%
maior do que em 2007. Nesta estimativa, é significativa a presença de
homens negros e jovens e, no caso de famílias desabrigadas, de jovens
negras mães solteiras. Além disso, se for considerada a parcela da
população que depende diretamente dos subsídios do governo, o cenário de
pobreza no centro do capitalismo se torna bem mais complexo. De acordo
com o Departamento de Agricultura, em 2012, 46 milhões de pessoas
usufruíram de algum tipo de subsídio alimentar mensal (os chamados
foodstamps), crescimento espantoso se comparado aos 17 milhões
contabilizados em 2001 e aos dois milhões em 1969. Os dados apontam,
ainda, que entre os 41 milhões de cidadãos americanos que alugam sua
moradia, mais de 10% participam de algum programa de assistência à
moradia, somados à mais de 2 milhões de família que usam vouchers
oferecidos pelo governo para custear moradia e aos 4,4 milhões de
americanos favorecidos por algum tipo de auxílio desse tipo em áreas
metropolitanas.
O acampamento de Ann Harbor foi fechado pela polícia em junho de 2012,
com a remoção de todos os seu moradores e o cercamento da área à beira
da estrada. De acordo com Collings, “alguns dos maiores problema
enfrentados pelos moradores de Take Notice eram o alcoolismo e a
rejeição da comunidade ao redor do acampamento”. Tampouco os dois
principais partidos políticos dos Estados Unidos, Republicano e
Democrata, manifestaram qualquer tipo de apoio aos acampados que, após a
remoção, retornaram para as ruas e abrigos temporários. Além disso,
sinaliza Collings, apesar de surgir como clara consequência da crise
econômica e do desemprego que assola o país, os acampamentos “ainda são
vistos pela opinião pública como agrupamentos de ‘desocupados’ e
criminosos”.
Assim como nas favelas e ruas brasileiras, o papel do trabalho
filantrópico de igrejas e Organizações Não Governamentais aparece como
forma imediata de intermediar certos auxílios públicos, a inserção nos
abrigos locais e todas as formas de ajuda comunitária. Porém, este
trabalho é incapaz de orientar a conquista de moradia digna e trabalho,
realidade que não parece incomum aos brasileiros. Da mesma forma como
no Brasil, a solidariedade é uma marca da vida nas tent-cities, nascida
da luta contra à repressão policial e da experiência do coletivismo.
De cidade-arsenal à cidade fantasma
Em 1941, durante a II Guerra Mundial, quando o sucesso dos Estados
Unidos no conflito não era um fato, circulava nas altas rodas dos
dirigentes políticos e grandes capitalistas norte-americanos a
expressão: “Nós temos Detroit”. Com isso, faziam referência à vantagem
que o país poderia adquirir no conflito dado o enorme complexo
industrial e a força de trabalho ali concentrada, bem como a
possibilidade de converter rapidamente a produção metalúrgica,
especialmente automobilística, em produção de armamentos e tanques de
guerra. A força da capital do estado de Michigan era a força da
indústria, e esta era o centro da potencia em que se convertiam os
Estados Unidos. A recuperação econômica da crise que estourara em 1929
coincidia com o tempo de guerra, e Detroit era considerada a esperança
produtiva e tecnológica dos Estados Unidos, em um ciclo de crescimento
que perduraria até meados dos anos 1970 e a crise do petróleo.
Em 2013, Detroit não é senão a sombra do seu passado. Aliás, quase uma
espécie de assombração nacional. A profunda e progressiva
desindustrialização pela qual os Estados Unidos passou a partir dos anos
1980 e seu caráter crônico depois da crise financeira de 2007, atacou a
cidade-automóvel em cheio. Dados do Bureau of Labor Statistcs mostram
que na região de Detroit, a taxa de desemprego, atualizada em maio de
2013, é de 9,3% da força de trabalho, bem superior ao índice nacional.
Além da destruição do parque industrial, a profunda crise fiscal local e
a recente crise imobiliária levaram à migração da força de trabalho
para outros estados, desertificando partes inteiras da cidade.
Entre 2005 e 2009 os fotógrafos franceses Yves Marchand e Romain Meffre
percorreram Detroit semanalmente, fotografando prédios, hotéis,
delegacias de polícias, igrejas, bibliotecas e teatros completamente
vazios e destruídos. As imagens impressionantes de uma grande cidade
fantasma deram origem ao livro “Detroit em ruínas”.
Este, nas palavras dos fotógrafos, revela fotos de “uma cidade
abandonada para morrer”. Em nada se parece com a cidade na qual, em
1913, Henry Ford montou sua primeira planta para produção do modelo Ford
T e para a qual contratou 90 mil operários. Hoje em dia, a mesma
companhia contrata pouco mais da metade deste número e é a principal
empregadora da região.
O povo do abismo
Há cem anos atrás, em 1913, o romancista e jornalista norte americano
Jack London publicou pela primeira vez o livro reportagem “O povo do
Abismo” sobre os dias em que viveu ao lado de moradores de rua e
frequentadores de abrigos em Londres, capital da maior potência
econômica da época. Neste, anunciou o que percebera como uma realidade
perfeitamente harmoniosa ao centro do capitalismo: “eu encontrei uma
condição crônica de miséria que nunca é resolvida, mesmo nos períodos de
grande prosperidade”.
Passados mais de cem anos, é notável perceber que a vida miserável
continuou parte constitutiva do centro e da periferia do mundo
capitalista, bem como sua ampliação nestes tempos de crise. No período
mais recente, em especial depois da crise econômica internacional
iniciada em 2007, é perceptível o crescimento no coração dos Estados
Unidos, país mais rico e poderoso do planeta desde a II Guerra Mundial,
do mesmo “povo do abismo” com o qual London conviveu nas praças inglesas
do início do século passado.
De acordo com o último Censo (2011), 14,3% da população norte americana
vive abaixo da linha da pobreza (pessoas que vivem com menos de um dólar
por dia), o que equivale a 40,9 milhões de pessoas. Outro fator
importante é a diferenciação geográfica e racial da vida pobre nesse
país. Os dados oficiais mostram que a população negra, equivalente à
12,3% dos habitantes país, é maioria relativa entre os mais pobres, 36%.
A população branca, ao contrário, equivalente à 74,2% do total de
norte-americanos é apenas 41% da população mais pobre.
Esses dados sinalizam, guardadas as devidas proporções, que é possível
estabelecer marcos de comparação razoáveis entre a economia
norte-americana e o desenvolvimento desigual das economias periféricas
do mundo. Além da pobreza, a economia norte-americana enfrenta hoje o
fantasma do desemprego e do subemprego, que pressiona paulatinamente a
qualidade de vida e estabilidade da população. Segundo o Bureau of
Labour Statistics, com uma população de 308 milhões de habitantes, entre
os quais apenas 241 milhões compõem a força de trabalho, os Estados
Unidos enfrentou um crescimento paulatino da taxa de desemprego nos
últimos anos. Esta chegou a atingir 10% em 2009, bem superior aos
números da década anterior, quando oscilou entre 4 e 6%.
Apesar de uma pequena recuperação no último ano, os índices de
desemprego não caíram abaixo dos 7,3% desde o início da crise. Mesmo
entre os economistas reunidos no Fórum Econômico Mundial em Davos está
clara a divisão de opiniões nos últimos anos a respeito de uma possível
retomada da situação de emprego anterior e da liderança internacional
para saída da crise. Ao que tudo indica, a favelização do Império e a
ampliação de seu abismo social veio para ficar.
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