A presidente Dilma Rousseff foi alvo de agressiva reportagem publicada no Valor com o título “Presidente com alma de prefeita”
(caderno “Eu & Fim de Semana”, 24/5). Talvez a mais contundente
arguição lançada contra ela dentro de limites aceitáveis de civilidade.
A matéria é uma compilação de críticas ao modo de trabalhar de Dilma. Estilo “mandão” (entre aspas, sabe-se lá por que); incompetência de sua equipe (não dela), formada por “pessoas medíocres, que não a questionam” (aspas de um “alto executivo de um banco de investimento”); centralizadora, detalhista, dada a esmiuçar projetos de lei na tentativa de encontrar erros, contradições com a legislação existente, elementos de inconstitucionalidade (como se isso fosse um demérito).
Foram procurados 18 “importantes empresários e altos executivos de grande corporações do país”, dos quais dez concordaram em falar, mas só dois sem usar o recurso do anonimato. Declarações em off são admissíveis, mas não frases de anônimos entre aspas, embora povoem a imprensa diariamente. Que os repórteres – Raymundo Costa, Mônica Scaramuzzo e Fernando Exman – tivessem usado suas próprias palavras para transmitir o que ouviram. São profissionais que não distorceriam declarações, ainda que, no caso, não pudesse haver reclamações se o fizessem.
Sabor de traição
Ministros puseram lenha na fogueira sem mostrar a cara, o que confere à matéria tom de verossimilhança, mas, igualmente, sabor de traição. Se discordam tanto assim dos métodos da presidente, não deveriam ter a lealdade de lhe transmitir suas observações? E, fazendo-o sem obter acolhida, não lhes caberia pedir demissão? O nome disso seria integridade, não ingenuidade.
O conveniente anonimato não é a principal característica questionável, e sim a suposição de que empresários, grandes ou pequenos, ou ministros, muitos indicados em função de tenebrosos arranjos políticos, sejam analistas abalizados do desempenho presidencial.
Ouvir empresários decorre do viés do jornal, modus in rebus o melhor do país, diga-se, mas o Valor costuma oferecer a seus leitores, também, visões menos apaixonadas, de gente razoavelmente distante de política partidária e de empreendimentos que dependem de contratações governamentais ou medidas de política econômica.
Mandonismo ou firmeza?
Um dos episódios comentados na matéria é o da demissão do então ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ele foi mandado para casa por Dilma depois de ter feito declarações que ela não poderia ter deixado sem resposta sem perder totalmente a autoridade de primeira mandatária.
Jobim disse que havia votado em José Serra na eleição de 2010, o que não é pecado e poderia ter sido absorvido com fair play por Dilma. Mas disse também que a ministra Ideli Salvatti (Relações Institucionais) era “muito fraquinha” e que a chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, nem sequer conhecia Brasília.
Se Dilma não reagisse, Ideli e Gleisi se tornariam auxiliares inúteis, desmoralizadas pelo silêncio da chefe. A decisão de Dilma, entretanto, foi analisada na reportagem como não apenas político-administrativa, mas também “simbólica: demonstrou o gosto da presidente pelo exercício da autoridade”...
Descentralizar piora
Nos últimos parágrafos, o texto dá voz a Gleisi. Como esperado, ela defende Dilma da acusação de excessiva centralização. “Ela sempre quer saber como estão os programas, chama os ministros, pergunta os dados, quer as informações de execução, melhorias, resultados, intervém”, o que é “uma coisa muito positiva. Só dá certo porque ela está cobrando”.
O argumento de Gleisi não escapou, porém, da palmatória dos anônimos interlocutores do Valor, agora na palavra dos jornalistas: “Para os críticos, é puro centralismo que atrasa e trava o desenvolvimento do país, que hoje já não é mais o ‘queridinho’ dos Brics”. Como se a condição de “queridinho” dos Brics fosse tão importante quanto quer fazer crer a percepção dos mercados.
Esse tipo de crítica superestima a vontade do chefe. Nem Lula, que inventou Dilma, pode ter certeza de que mais se impôs aos acontecimentos do que foi por eles conduzido. E ninguém pode garantir que, num governo dessa natureza, movido menos por convicções do que por conveniências, a descentralização seja mais benéfica do que a centralização.
Pequena política
Dez dias depois da publicação da matéria, começou a revolta de junho, cujas raízes passam além da governança dilmista, ou lulista, ou fernando-cardosista etc. Não foi apenas nem principalmente no terreno da administração que Dilma deu sua contribuição para complicar as coisas, mas no da política, que não a atrai. E de política propriamente dita, com pê maiúsculo, não se tratou na reportagem.
Os autores da matéria se deixaram contaminar pela animosidade de suas fontes, cuja qualificação eles mesmos derrubam quando as descrevem no último parágrafo: “empresários insatisfeitos com o câmbio, banqueiros sem saber como trabalhar com juros baixos e ministros muitas vezes em busca de afagos”.
Sobram razões para, dentro do PT ou fora dele, criticar Dilma. Elio Gaspari deu a um artigo sobre perdão de dívidas de países africanos pelo governo brasileiro o rude título “Dilma, a mãe dos cleptocratas” (Folha de S.Paulo, 29/5). Mas o fez citando dados concretos relativos ao enriquecimento escandaloso de governantes daquele continente.
Faltou à reportagem do Valor serenidade de ânimo, distanciamento, tentativa de entender o ponto de vista e os condicionamentos da criticada, antes de tudo a própria crença dela na vontade política, tantas vezes um artifício para disfarçar que não sabe exatamente o que fazer. Perplexidade que está longe de ser só de Dilma, como mostrou o desconcerto de todas as elites do país em face das ruas em ebulição.
A matéria é uma compilação de críticas ao modo de trabalhar de Dilma. Estilo “mandão” (entre aspas, sabe-se lá por que); incompetência de sua equipe (não dela), formada por “pessoas medíocres, que não a questionam” (aspas de um “alto executivo de um banco de investimento”); centralizadora, detalhista, dada a esmiuçar projetos de lei na tentativa de encontrar erros, contradições com a legislação existente, elementos de inconstitucionalidade (como se isso fosse um demérito).
Foram procurados 18 “importantes empresários e altos executivos de grande corporações do país”, dos quais dez concordaram em falar, mas só dois sem usar o recurso do anonimato. Declarações em off são admissíveis, mas não frases de anônimos entre aspas, embora povoem a imprensa diariamente. Que os repórteres – Raymundo Costa, Mônica Scaramuzzo e Fernando Exman – tivessem usado suas próprias palavras para transmitir o que ouviram. São profissionais que não distorceriam declarações, ainda que, no caso, não pudesse haver reclamações se o fizessem.
Sabor de traição
Ministros puseram lenha na fogueira sem mostrar a cara, o que confere à matéria tom de verossimilhança, mas, igualmente, sabor de traição. Se discordam tanto assim dos métodos da presidente, não deveriam ter a lealdade de lhe transmitir suas observações? E, fazendo-o sem obter acolhida, não lhes caberia pedir demissão? O nome disso seria integridade, não ingenuidade.
O conveniente anonimato não é a principal característica questionável, e sim a suposição de que empresários, grandes ou pequenos, ou ministros, muitos indicados em função de tenebrosos arranjos políticos, sejam analistas abalizados do desempenho presidencial.
Ouvir empresários decorre do viés do jornal, modus in rebus o melhor do país, diga-se, mas o Valor costuma oferecer a seus leitores, também, visões menos apaixonadas, de gente razoavelmente distante de política partidária e de empreendimentos que dependem de contratações governamentais ou medidas de política econômica.
Mandonismo ou firmeza?
Um dos episódios comentados na matéria é o da demissão do então ministro da Defesa, Nelson Jobim. Ele foi mandado para casa por Dilma depois de ter feito declarações que ela não poderia ter deixado sem resposta sem perder totalmente a autoridade de primeira mandatária.
Jobim disse que havia votado em José Serra na eleição de 2010, o que não é pecado e poderia ter sido absorvido com fair play por Dilma. Mas disse também que a ministra Ideli Salvatti (Relações Institucionais) era “muito fraquinha” e que a chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, nem sequer conhecia Brasília.
Se Dilma não reagisse, Ideli e Gleisi se tornariam auxiliares inúteis, desmoralizadas pelo silêncio da chefe. A decisão de Dilma, entretanto, foi analisada na reportagem como não apenas político-administrativa, mas também “simbólica: demonstrou o gosto da presidente pelo exercício da autoridade”...
Descentralizar piora
Nos últimos parágrafos, o texto dá voz a Gleisi. Como esperado, ela defende Dilma da acusação de excessiva centralização. “Ela sempre quer saber como estão os programas, chama os ministros, pergunta os dados, quer as informações de execução, melhorias, resultados, intervém”, o que é “uma coisa muito positiva. Só dá certo porque ela está cobrando”.
O argumento de Gleisi não escapou, porém, da palmatória dos anônimos interlocutores do Valor, agora na palavra dos jornalistas: “Para os críticos, é puro centralismo que atrasa e trava o desenvolvimento do país, que hoje já não é mais o ‘queridinho’ dos Brics”. Como se a condição de “queridinho” dos Brics fosse tão importante quanto quer fazer crer a percepção dos mercados.
Esse tipo de crítica superestima a vontade do chefe. Nem Lula, que inventou Dilma, pode ter certeza de que mais se impôs aos acontecimentos do que foi por eles conduzido. E ninguém pode garantir que, num governo dessa natureza, movido menos por convicções do que por conveniências, a descentralização seja mais benéfica do que a centralização.
Pequena política
Dez dias depois da publicação da matéria, começou a revolta de junho, cujas raízes passam além da governança dilmista, ou lulista, ou fernando-cardosista etc. Não foi apenas nem principalmente no terreno da administração que Dilma deu sua contribuição para complicar as coisas, mas no da política, que não a atrai. E de política propriamente dita, com pê maiúsculo, não se tratou na reportagem.
Os autores da matéria se deixaram contaminar pela animosidade de suas fontes, cuja qualificação eles mesmos derrubam quando as descrevem no último parágrafo: “empresários insatisfeitos com o câmbio, banqueiros sem saber como trabalhar com juros baixos e ministros muitas vezes em busca de afagos”.
Sobram razões para, dentro do PT ou fora dele, criticar Dilma. Elio Gaspari deu a um artigo sobre perdão de dívidas de países africanos pelo governo brasileiro o rude título “Dilma, a mãe dos cleptocratas” (Folha de S.Paulo, 29/5). Mas o fez citando dados concretos relativos ao enriquecimento escandaloso de governantes daquele continente.
Faltou à reportagem do Valor serenidade de ânimo, distanciamento, tentativa de entender o ponto de vista e os condicionamentos da criticada, antes de tudo a própria crença dela na vontade política, tantas vezes um artifício para disfarçar que não sabe exatamente o que fazer. Perplexidade que está longe de ser só de Dilma, como mostrou o desconcerto de todas as elites do país em face das ruas em ebulição.
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