O Estado do bem-estar social na Europa está em declínio
O Estado do bem-estar social na Europa está em declínio. A
dificuldade para quem entra no redemoinho da 'mística europeia' é a de
ver que uma crise desta natureza deixa raízes e uma das possibilidade de
que o que hoje se chama “crise” na Europa é de que não seja na verdade
uma crise mas o estabelecimento de uma nova “normalidade”, na qual o
antigo estado do bem-estar social seja apenas uma sombra na lembrança.
A reportagem é de Flávio Aguiar e publicada pela Rede Brasil Atual, 26-07-2013.
Por várias e variadas razões tenho convivido com vários e variados latino-americanos (inclusive brasileiros) que viveram muitos e muitos anos na Europa e que agora, também por muitas, várias e variadas razões, retornam à América Latina no todo ou em parte.
As razões destes deslocamento vão das aventuras de juventude às de exílio forçado ou voluntário. As razões do retorno também variam. Uma delas, por exemplo, é o fato de que, depois de anos de trabalho, a renda da aposentadoria cai muito na Alemanha (ou mesmo em outros países). Daí ser preferível, para aqueles que podem, ir viver numa cidade de porte médio na América Latina a ter uma queda acentuada de padrão de vida em Berlim, o que inclui a moradia. É raro um aposentado aqui conseguir pagar o mesmo aluguel que pagava na ativa apenas com sua aposentadoria, a menos que tenha uma robusta poupança, o que nem sempre acontece e nem sempre é desejável, porque a poupança pode vir a ser necessária para outras funções, como contas de saúde, que aqui também existem e não são moleza.
Seja lá por que razões, o fato é que para muitos destes “cidadãos do mundo” viver na Europa passou a fazer parte de suas identidades pessoais. Não raro o que era uma condição assumiu ares de uma opção, e a imagem de uma certa Europa – para os destas idades a que me refiro, a Europa do Estado do bem-estar social – passou a fazer parte de uma certa imagem identitária – a do bem-estar pessoal. Uma coisa é associada inseparavelmente à outra, e quase sempre neste processo associativo a América Latina sai perdendo. Talvez com o tempo isto venha a passar, e o que hoje também é uma condição – retornar – assuma novamente ares de uma opção, se a vida e, como se dizia no meu sul do Brasil, o Patrão Velho lá de riba permitirem.
Mas no entrementes, hay que julgar as coisas, e muitas vezes, nas conversas que se seguem, a América Latina sai perdendo. Assim, mais ou menos, como já tive que debater: a América Latina não tem jeito. A atual onde de melhoria de vida que há no continente vai acabar. A América Latina apenas surfou na onda das commodities e do aumento do consumo na China; o aumento do consumo que houve na última década é apenas uma marola passageira; logo tudo vai retornar ao que era dantes do quartel do Abrantes.
Do mesmo modo, a crise europeia é também uma onda passageira. Logo logo a Europa vai se recuperar, e ressurgirá pujante como era antes da rasteira que lhe deram o Lehman Brothers e outras instituições financeiras d’além mar. A Europa tem tudo para se recuperar, a América Latina nada tem para prosperar de modo sustentável. Observo assim que, para assegurar uma identidade pessoal, torna-se necessário criar uma “mística da Europa”.
De vez em quando – se tenho paciência ou se a perco – me dou o trabalho de contestar tal mística. Choco alguns amigos, dizendo que eles têm muitas certezas demais onde eu vejo mais terreno para dúvidas. É raro que aceitem tal raciocínio. É possível até que algumas amizades se percam por causa disso. Devo dizer também que a favor desta mística existe a Europa do pós-Segunda Guerra, pois esta – justamente a do bem-estar social – ressurgiu literalmente das próprias cinzas e ruínas.
Não adianta muito reconhecer que as condições de hoje são um tanto quanto diferentes daquelas dos fins dos anos 1940 e dos anos 1950. Ainda existem, por certo, os fantasmas do nazismo e do fascismo; mas estão mais distantes, até mesmo nesta Alemanha continuamente assombrada por más recordações. Não haverá agora um novo Plano Marshall, até porque a fonte daquele Plano tampouco vai bem das pernas. Se o gigante chinêsameaça as exportações de commodities da América Latina, também ameaça as exportações de manufaturados da Europa. O projeto de um mercado comum do Atlântico Norte, pelo menos de momento, esbarrou na realidade da comunidade de espionagem transatlântica. E não há mais o fantasma do comunismo do outro lado do muro, tanto para ameaçar a pax capitalista quanto para estimular as concessões do estado do bem-estar social.
Aqui jaz a maior ameaça a esta mística europeia: se lá nos anos dourados o Estado do bem-estar social estava em construção, agora ele está em estado falimentar de desconstrução. E para o pensamento hegemônico hoje na União Europeia, ele – aquele Estado – é o principal culpado pelas crises que assolam os países do continente. Ele e suas políticas “perdulárias e irresponsáveis”.
Embora seja o que dele ainda hoje se herda o fator responsável por que não tenha havido, ainda, neste continente, uma explosão social cujas consequências são imprevisíveis, não se descartando, inclusive, a possibilidade de ascender uma nova direita, não mais declaradamente racista, mas agora “culturalista”, disposta a preservar a “integridade” (não mais a pureza) da cultura europeia.
O fato é que o Estado do bem-estar social está em declínio, senão em farrapos, ou ambos, conforme o país. Mas vou dar dois exemplos de como ele ainda funciona, nem que seja por inércia, e de como o seu progressivo declínio pode – e provavelmente vai – afetar o futuro do continente. Olhemos para dois extremos: a cambaleante Espanha e a ainda robusta Alemanha. Na Espanha as taxas de desemprego são altíssimas. 27% em geral, mais de 50% entre os jovens. Ainda assim a situação – se está a ponto de ferver – ainda não ferveu nem explodiu.
Por quê? Uma das razões é a de que a renda média de um lar espanhol é de 2 mil euros mensais. Como assim? Há pelo menos uma pessoa empregada, há aqui e ali um pensionista, embora as pensões e salários tenham sido rebaixados em meio à crise. E assim as coisas permanecem penduradas. Por um fio, mais penduradas, sem se esborrachar no chão. Mas, se depender dos programas hoje postos em prática, no futuro nem tão distante este fio será cortado. Os jovens desempregados de hoje não serão os pais ou avós provedores de segurança para a sua descendência de amanhã.
Na Alemanha o desemprego é baixo, com uma taxa brasileira: não chega a 6%. Mas com uma população envelhecendo rapidamente, as pensões estão diminuindo substancialmente. A tendência é a de serem mais rebaixadas ainda no futuro, devido à chamada “precarização” dos empregos, que atinge sobretudo a população mais jovem: empregos de curta duração, agenciados por terceiros, pouca ou nenhuma sindicalização. O grande fantasma hoje aqui na Alemanha não é o desemprego (pelo menos ainda não é): com o rebaixamento dos salários, é a certeza de que, como já sugeri antes, o aposentado não conseguirá manter o mesmo padrão de vida de antes, quando na ativa, e esta redução tende a ser dramática, conforme o caso. A tendência, portanto, é de mais precarização.
E não se materializam alternativas: a cultura econômica, em geral, permanece presa às idéias de “austeridade”, sejam nos partidos de direita, centro-direita, centro e centro-esquerda. No curto prazo isto não mudará, o que significa que também não mudará no médio. No longo prazo, qualquer mudança deste quadro dependerá da formação de uma nova geração de economistas e isto levará pelo menos umas duas dezenas de anos. Se houver.
Ou seja, a dificuldade para quem entra no redemoinho da “mística europeia” é a de ver que uma crise desta natureza deixa raízes, se não revirar a árvore de pernas para o ar. A crise de 1929 e suas consequências desembocaram na Segunda Guerra. A atual conformação da União Europeia parece neutralizar a possibilidade de uma catástrofe daquele porte, ainda que em matéria de guerras nosso tempo tampouco ande bem das pernas. Mas isto não significa que outras catástrofes deixem de aparecer no horizonte. Uma delas é a possibilidade de que o que hoje se chama “crise” na Europa não seja na verdade uma crise mas o estabelecimento de uma nova “normalidade”, na qual o antigo estado do bem-estar social seja apenas uma sombra na lembrança
A reportagem é de Flávio Aguiar e publicada pela Rede Brasil Atual, 26-07-2013.
Por várias e variadas razões tenho convivido com vários e variados latino-americanos (inclusive brasileiros) que viveram muitos e muitos anos na Europa e que agora, também por muitas, várias e variadas razões, retornam à América Latina no todo ou em parte.
As razões destes deslocamento vão das aventuras de juventude às de exílio forçado ou voluntário. As razões do retorno também variam. Uma delas, por exemplo, é o fato de que, depois de anos de trabalho, a renda da aposentadoria cai muito na Alemanha (ou mesmo em outros países). Daí ser preferível, para aqueles que podem, ir viver numa cidade de porte médio na América Latina a ter uma queda acentuada de padrão de vida em Berlim, o que inclui a moradia. É raro um aposentado aqui conseguir pagar o mesmo aluguel que pagava na ativa apenas com sua aposentadoria, a menos que tenha uma robusta poupança, o que nem sempre acontece e nem sempre é desejável, porque a poupança pode vir a ser necessária para outras funções, como contas de saúde, que aqui também existem e não são moleza.
Seja lá por que razões, o fato é que para muitos destes “cidadãos do mundo” viver na Europa passou a fazer parte de suas identidades pessoais. Não raro o que era uma condição assumiu ares de uma opção, e a imagem de uma certa Europa – para os destas idades a que me refiro, a Europa do Estado do bem-estar social – passou a fazer parte de uma certa imagem identitária – a do bem-estar pessoal. Uma coisa é associada inseparavelmente à outra, e quase sempre neste processo associativo a América Latina sai perdendo. Talvez com o tempo isto venha a passar, e o que hoje também é uma condição – retornar – assuma novamente ares de uma opção, se a vida e, como se dizia no meu sul do Brasil, o Patrão Velho lá de riba permitirem.
Mas no entrementes, hay que julgar as coisas, e muitas vezes, nas conversas que se seguem, a América Latina sai perdendo. Assim, mais ou menos, como já tive que debater: a América Latina não tem jeito. A atual onde de melhoria de vida que há no continente vai acabar. A América Latina apenas surfou na onda das commodities e do aumento do consumo na China; o aumento do consumo que houve na última década é apenas uma marola passageira; logo tudo vai retornar ao que era dantes do quartel do Abrantes.
Do mesmo modo, a crise europeia é também uma onda passageira. Logo logo a Europa vai se recuperar, e ressurgirá pujante como era antes da rasteira que lhe deram o Lehman Brothers e outras instituições financeiras d’além mar. A Europa tem tudo para se recuperar, a América Latina nada tem para prosperar de modo sustentável. Observo assim que, para assegurar uma identidade pessoal, torna-se necessário criar uma “mística da Europa”.
De vez em quando – se tenho paciência ou se a perco – me dou o trabalho de contestar tal mística. Choco alguns amigos, dizendo que eles têm muitas certezas demais onde eu vejo mais terreno para dúvidas. É raro que aceitem tal raciocínio. É possível até que algumas amizades se percam por causa disso. Devo dizer também que a favor desta mística existe a Europa do pós-Segunda Guerra, pois esta – justamente a do bem-estar social – ressurgiu literalmente das próprias cinzas e ruínas.
Não adianta muito reconhecer que as condições de hoje são um tanto quanto diferentes daquelas dos fins dos anos 1940 e dos anos 1950. Ainda existem, por certo, os fantasmas do nazismo e do fascismo; mas estão mais distantes, até mesmo nesta Alemanha continuamente assombrada por más recordações. Não haverá agora um novo Plano Marshall, até porque a fonte daquele Plano tampouco vai bem das pernas. Se o gigante chinêsameaça as exportações de commodities da América Latina, também ameaça as exportações de manufaturados da Europa. O projeto de um mercado comum do Atlântico Norte, pelo menos de momento, esbarrou na realidade da comunidade de espionagem transatlântica. E não há mais o fantasma do comunismo do outro lado do muro, tanto para ameaçar a pax capitalista quanto para estimular as concessões do estado do bem-estar social.
Aqui jaz a maior ameaça a esta mística europeia: se lá nos anos dourados o Estado do bem-estar social estava em construção, agora ele está em estado falimentar de desconstrução. E para o pensamento hegemônico hoje na União Europeia, ele – aquele Estado – é o principal culpado pelas crises que assolam os países do continente. Ele e suas políticas “perdulárias e irresponsáveis”.
Embora seja o que dele ainda hoje se herda o fator responsável por que não tenha havido, ainda, neste continente, uma explosão social cujas consequências são imprevisíveis, não se descartando, inclusive, a possibilidade de ascender uma nova direita, não mais declaradamente racista, mas agora “culturalista”, disposta a preservar a “integridade” (não mais a pureza) da cultura europeia.
O fato é que o Estado do bem-estar social está em declínio, senão em farrapos, ou ambos, conforme o país. Mas vou dar dois exemplos de como ele ainda funciona, nem que seja por inércia, e de como o seu progressivo declínio pode – e provavelmente vai – afetar o futuro do continente. Olhemos para dois extremos: a cambaleante Espanha e a ainda robusta Alemanha. Na Espanha as taxas de desemprego são altíssimas. 27% em geral, mais de 50% entre os jovens. Ainda assim a situação – se está a ponto de ferver – ainda não ferveu nem explodiu.
Por quê? Uma das razões é a de que a renda média de um lar espanhol é de 2 mil euros mensais. Como assim? Há pelo menos uma pessoa empregada, há aqui e ali um pensionista, embora as pensões e salários tenham sido rebaixados em meio à crise. E assim as coisas permanecem penduradas. Por um fio, mais penduradas, sem se esborrachar no chão. Mas, se depender dos programas hoje postos em prática, no futuro nem tão distante este fio será cortado. Os jovens desempregados de hoje não serão os pais ou avós provedores de segurança para a sua descendência de amanhã.
Na Alemanha o desemprego é baixo, com uma taxa brasileira: não chega a 6%. Mas com uma população envelhecendo rapidamente, as pensões estão diminuindo substancialmente. A tendência é a de serem mais rebaixadas ainda no futuro, devido à chamada “precarização” dos empregos, que atinge sobretudo a população mais jovem: empregos de curta duração, agenciados por terceiros, pouca ou nenhuma sindicalização. O grande fantasma hoje aqui na Alemanha não é o desemprego (pelo menos ainda não é): com o rebaixamento dos salários, é a certeza de que, como já sugeri antes, o aposentado não conseguirá manter o mesmo padrão de vida de antes, quando na ativa, e esta redução tende a ser dramática, conforme o caso. A tendência, portanto, é de mais precarização.
E não se materializam alternativas: a cultura econômica, em geral, permanece presa às idéias de “austeridade”, sejam nos partidos de direita, centro-direita, centro e centro-esquerda. No curto prazo isto não mudará, o que significa que também não mudará no médio. No longo prazo, qualquer mudança deste quadro dependerá da formação de uma nova geração de economistas e isto levará pelo menos umas duas dezenas de anos. Se houver.
Ou seja, a dificuldade para quem entra no redemoinho da “mística europeia” é a de ver que uma crise desta natureza deixa raízes, se não revirar a árvore de pernas para o ar. A crise de 1929 e suas consequências desembocaram na Segunda Guerra. A atual conformação da União Europeia parece neutralizar a possibilidade de uma catástrofe daquele porte, ainda que em matéria de guerras nosso tempo tampouco ande bem das pernas. Mas isto não significa que outras catástrofes deixem de aparecer no horizonte. Uma delas é a possibilidade de que o que hoje se chama “crise” na Europa não seja na verdade uma crise mas o estabelecimento de uma nova “normalidade”, na qual o antigo estado do bem-estar social seja apenas uma sombra na lembrança
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