Como os franceses se livraram do jornalismo que assassina a reputação
30 de julho de 2013Os franceses se livraram de um tipo de jornalismo que assassina reputações de uma maneira drástica.
Em 1914, pouco antes da Guerra, o jornal conservador Fígaro vinha massacrando o ministro da Fazenda, Joseph Caillaux, de esquerda. Caillaux, para o jornal, era pacifista demais num momento em que a Alemanha flexionava seus músculos.
O Fígaro conseguira uma correspondência íntima de Caillaux dirigida a uma mulher da sociedade parisiense, Henriette.
Eram cartas em que se misturavam lascívia e inconfidências políticas, e datavam da época em que Caillaux e Henriette mantinham um caso clandestino.
Quando o Fígaro obteve as cartas, Caillaux e Henriette já eram marido e mulher, depois de cada qual se divorciar para viver plenamente seu amor.
O editor do Figaro, Gaston Colmette, era o jornalista mais poderoso da França.
Henriette queria que Joseph o desafiasse para um duelo para preservar a honra e a carreira. Mas depois teve uma segunda ideia.
Dirigiu-se à sede do jornal e pediu para ser recebida por Calmette, num final de dia. Um amigo de Calmette lhe recomendou que não a recebesse, dadas as circunstâncias da campanha movida contra o marido dela.
Mas Calmette era um francês, e respondeu que não poderia deixar de atender uma mulher sozinha.
Henriette tinha um véu na mão.
“Você sabe para que eu vim aqui, não?”, disse ela, segundo testemunhos. E então, sem perda de tempo, Henriette mostrou o que carregava embrulhado no lenço: uma Browning automática. Descarregou-a em Calmette. Quatro tiros acertaram seu peito, e o mataram em poucos minutos.
A polícia não tardou a aparecer. Os policiais iam levar Henriette a uma delegacia na viatura que estava estacionada na frente da sede do Figaro.
“Não toquem em mim”, disse ela. “Je suis une damme.” Ela foi para a polícia em seu próprio carro.
Poucas semanas depois, num julgamento que chacoalhou a França e a Europa, e obscureceu entre os franceses os acontecimentos que logo levariam à Primeira Guerra Mundial, o caso foi examinado por um júri composto apenas de homens.
Henriette acabou inocentada. Agira, o júri decidiu, em legítima defesa da honra, e sob intensa emoção.
A opinião pública, no julgamento, se inclinou por Madame Caillaux – que na prisão era atendida por duas de suas empregadas – e não pelo jornalista morto, ou pela causa deste.
Houve entre os franceses um consenso de que Calmette e o Figaro tinham cometido um abuso intolerável de poder, e o veredito refletiu isso.
Acabou assim espetacularmente, pelas mãos de Madame Caillaux, une damme, o jornalismo que assassinava reputações na França.
O Brasil viveu um caso de alguma similaridade algumas décadas depois.
O Calmette brasileiro era o “Corvo”, o jornalista e político Carlos Lacerda, que se lançou a uma campanha selvagem que levaria Getúlio Vargas ao suicídio, em 1954.
É um exercício fascinante imaginar o que teria ocorrido se Vargas tivesse a seu lado uma Madama Caillaux.
Mas não tinha.
Lacerda foi vítima de um atentado em que saiu apenas com um pé ferido. O mandante, segundo a polícia, foi o chefe da guarda pessoal de Getúlio. Sob a pressão da imprensa, Getúlio poucos dias depois se mataria.
Madama Caillaux, na Paris de 1914, acabou de uma só vez com Calmette e com um tipo de jornalismo que os franceses julgaram destrutivo e nocivo ao interesse público.
Lacerda pôde seguir, revigorado, sua carreira deletéria. Anos depois, seria protagonista no assassinato do caráter do presidente João Goulart, no começo dos anos 1960.
O Corvo seria o nome essencial para justificar, pela imprensa, a instalação de uma ditadura militar que, sob o pretexto infame de impedir o “triunfo do comunismo”, mataria milhares de brasileiros e faria do Brasil um campeão mundial da desigualdade social.
Henriette, com seu gesto extremo e desesperado, forçou a França a avaliar o jornalismo que se fazia então.
O Brasil jamais passou por este tipo de avaliação, e isso explica em grande parte o jornalismo sem limites que vigora entre nós ainda hoje, um século depois de os franceses terem imposto limites imprescindíveis ao interesse público.
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