| 29/07/2013 | Copyleft
O que o povo que estava na rua no mês de
junho queria, em último término, de forma consciente ou inconsciente?
Para responder me apoio em três citações inspiradoras.
A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998):”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.
A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil: ”A refundação do Brasil: Rumo à sociedade biocentrada (São Carlos, 2011): ”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade” (contracapa).
A terceira é do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848): ”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.
Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas, sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos — corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e com o maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios, como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.
Diz com fina sensibilidade social Souza Lima: ”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construíu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz” (pág. 235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.
Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense, 1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea, com suas necessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas” (pág. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.
Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira. ”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais” (pág. 127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor/a a este livro, que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes olhou para trás e tentou mostrar como se construíu o Brasil que temos. Souza Lima olha para a frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que ele chama de “uma sociedade biocentrada”.
Não serão estes milhares de manifestantes os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como evitar o fim do mundo (Record, 2010).
O sentido das manifestações não seria a refundação do Brasil?
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities. Por Leonardo Boff
Leonardo Boff*
A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998):”Nós brasileiros surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar um povo. Queria tão somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo desgaste de gentes”.
A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais recente e criativa interpretação do Brasil: ”A refundação do Brasil: Rumo à sociedade biocentrada (São Carlos, 2011): ”Quando se chega ao fim, lá onde acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de outra procura; é hora de o Brasil se refundar; a Refundação é o caminho novo e, de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É hora de se refundar como sociedade” (contracapa).
A terceira é do escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848): ”Nada é mais forte do que uma ideia quando chegou o momento de sua realização”.
Minha impressão é que as multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas, sem cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil que temos e herdamos — corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e com o maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético, tolerante e místico.
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências centrais, antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos, carnes, minérios, como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso projeto de nação independente e aberta ao mundo.
Diz com fina sensibilidade social Souza Lima: ”Ainda que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A sociedade construíu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz” (pág. 235). Nos movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.
Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense, 1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida do país de maneira consentânea, com suas necessidades mais gerais e profundas e as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas” (pág. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.
Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil? Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura brasileira. ”É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficente para escapar dos constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e suas valências universais” (pág. 127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese original. Remeto o leitor/a a este livro, que está na linha dos grandes intérpretes do Brasil, a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes clássicos intérpretes olhou para trás e tentou mostrar como se construíu o Brasil que temos. Souza Lima olha para a frente e tenta mostrar como podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que ele chama de “uma sociedade biocentrada”.
Não serão estes milhares de manifestantes os protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o queira Deus e o permita a história.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. É dele o livro ‘Proteger a Terra e cuidar da vida: Como evitar o fim do mundo (Record, 2010).
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