Memórias de um alemão inocente em Guantánamo
13O texto abaixo foi publicado no site DW.
O cabelo curto, a barba rala e a camisa apertada, que marca o bíceps provavelmente trabalhado em horas de treino na academia, o tornam quase irreconhecível.
O homem que entra andando numa casa de chá turca no norte da Alemanha não lembra em nada aquele que, há sete anos, deixou a prisão de Guantánamo com vastas cabeleira e barba ruivas.
“Simplesmente decidi cortar. Por um monte de razões. Nada demais”, diz.
Murat Kurnaz tergiversa, mas a aparência de certa forma o marcou. Livrar-se do estigma de ex-detento de Guantánamo pode durar décadas. E barba e cabelos longos geram desconfiança, especialmente quando se carrega a pecha de “talibã de Bremen”, dada por tabloide alemães.
“Eu não estive em um presídio comum. Estive em Guantánamo”, ressalta.
Kurnaz se desculpa por chegar meia hora atrasado e se mostra inicialmente na defensiva.
Mas relaxa depois da primeira xícara de chá e passa a conversar com naturalidade no inglês coloquial que aprendeu em seus cinco anos no presídio americano.
Ele demonstra a serenidade de um homem com bem mais que seus 31 anos. Falar com a imprensa não é novidade – diz que já “deu milhares de entrevistas”.
Mas responde pacientemente a cada uma das questões, mesmo às que já ouviu um sem-número de vezes.
Kurnaz é sucinto, mas não evasivo. Passou por tortura, humilhação e isolamento, mas garante que não tem qualquer problema psicológico. Ele parece bem resolvido com o passado, mas não esconde certa insatisfação com o presente.
“Eu trabalho em empregos temporários, não tenho outra escolha”, diz.
Kurnaz estava no lugar errado na hora errada. Aos 19 anos, decidiu fazer uma peregrinação ao Paquistão para aprofundar os conhecimentos da sua fé, o islamismo.
Era outubro de 2001, e os Estados Unidos tentavam dar uma resposta ao maior atentado terrorista da história.
Sem qualquer acusação, Kurnaz foi capturado por caçadores de recompensas, que o entregaram aos EUA por 3 mil dólares.
Foi então levado a uma prisão americana em Kandahar, no Afeganistão, onde foi submetido a choques elétricos e afogamento simulado.
O então adolescente ficou lá até 2002, quando foi transferido para Guantánamo. No presídio destinado a suspeitos de terrorismo, foi espancado, algemado e confinado numa solitária sob condições extremas.
Kurnaz nasceu e cresceu em Bremen, mas por uma peculiaridade das leis alemãs é considerado cidadão da Turquia, terra de seus pais.
Aparentemente uma burocracia, a situação acabou lhe custando preciosos anos de sua juventude na prisão.
Os americanos não tinham evidências contra ele e estavam preparados para libertá-lo ainda em 2002, mas nem o governo alemão nem o governo turco quiseram assumir a responsabilidade pelo preso.
Kurnaz ficou mais quatro anos na prisão.
Ele só conseguiu deixar o presídio em Cuba após a eleição de Angela Merkel como chanceler federal. Merkel negociou pessoalmente sua libertação com o então presidente George W. Bush.
Mesmo sete anos depois, Kurnaz ainda tenta retomar a vida. A primeira mulher se divorciou dele durante o período de encarceramento. Ele se casou novamente e hoje é um dedicado pai de duas meninas.
Desde sua libertação, em 2006, tem feito trabalhos esporádicos, ensina artes marciais e trabalha com adolescentes com problemas.
Nos últimos meses também tem dedicado parte do seu tempo para promover o filme Fünf Jahre Leben (Cinco anos de vida, em tradução livre do alemão), baseado em sua autobiografia sobre os anos que passou em Guantánamo.
“Ele voltou para uma vida regular, normal, e ao mesmo tempo nunca esqueceu o que aconteceu em Guantánamo”, diz Bernhard Docke, seu advogado. “Ele se tornou uma espécie de sobrevivente com culpa, que se sente responsável por aqueles que deixou para trás.”
Além de entrevistas e promoções de marketing, Kurnaz faz discursos de engajamento em nome de grupos de direitos humanos na Alemanha e no exterior.
Ele diz que não esquece os antigos companheiros de prisão e tenta apoiar todos os tipos de organizações de direitos humanos: “Sei o que eles fizeram por mim quando estive em Guantánamo.”
Kurnaz estava na mesma situação da maioria dos 166 presidiários que ainda permanecem em Guantánamo.
Mais da metade já poderiam ser soltos, mas ainda aguardam em um limbo até que seus países de origem ofereçam as garantias de segurança exigidas pelos Estados Unidos para deixá-los ir.
Quando presidiário, também participou de uma greve de fome, como a feita atualmente por detentos em protesto contra violações de direitos humanos em Guantánamo.
A greve entra em seu quinto mês e já mostra sinais de enfraquecimento, embora a alimentação forçada continue durante o mês sagrado o ramadã, quando muçulmanos fazem jejum do nascer ao pôr do sol.
Em maio passado, Barack Obama foi eleito para um novo mandato à frente da Casa Branca e renovou a promessa de desativar Guantánamo – foi quando a greve de fome atingiu um ponto crítico.
Para Kurnaz, apenas uma pequena parte dos presos em Guantánamo são terroristas realmente perigosos e, por isso, deveriam ser transferidos para uma prisão de segurança máxima nos EUA.
Os demais, afirma, poderiam ir para casa ou para um terceiro país.
“Se a Europa pegasse alguns deles, isso faria as coisas mais fáceis”, diz Kurnaz, que não acredita em uma verdadeira vontade política para fechar a prisão. “Obama disse que quer fechar Guantánamo antes das eleições. Agora, cinco anos depois, ele ainda não fechou o presídio. Se ele quisesse, já poderia ter feito isso.”
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