segunda-feira, 9 de setembro de 2013

ESTAMOS DECAINDO NA ESCALA DA CIVILIDADE, constata sociólogo.


"Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade", constata o sociólogo

"Para criminosos como os que iam enterrar um mendigo vivo, existem pessoas e quase pessoas", escreve José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, no artigo "Homens de menos", publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 08-09-2013.
Segundo ele, "nossa sociedade, nesses já frequentes casos, vem botando a cara pra fora, como se costuma dizer. Essas ocorrências são indícios de que a sociedade brasileira está doente. A certeza de que esses crimes são lícitos e impunes está presente em quase todos os casos. Quando, em 1997, foi queimado vivo o índio pataxó hã-hã-hãe Galdino Jesus dos Santos num ponto de ônibus de Brasília, os assassinos, de famílias de alta classe média, alegaram que pensaram ser ele um mendigo".
"Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade", constata o sociólogo.
Eis o artigo.
Não se pode deixar de ver com horror a tentativa de três jovens, entre 18 e 15 anos de idade, numa madrugada da semana passada, de enterrar vivo, nas areias da praia de Ipanema, no Rio, um morador de rua, depois de espancá-lo com uma pá e tentar sufocá-lo com um saco plástico.
Surpreendidos pela polícia, foi o homem resgatado e levado para um hospital. O maior de idade foi autuado por tentativa de homicídio e corrupção de menores e os menores foram encaminhados para a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Os criminosos alegaram que a vítima era um estuprador.
Poderia ser apenas mais uma aberração no rol de maldades que, vez ou outra, são noticiadas e espantam os que se preocupam com a condição humana. Exceções a contrariar a consciência social.
Não se trata de caso excepcional, porém. Excepcional e inovador apenas na técnica de violência criminosa: enterrar viva a vítima. De julho para cá, foi registrada ao menos meia dúzia de ocorrências de pessoas queimadas vivas em diferentes lugares do Brasil, na maior parte dos casos por jovens, algumas vezes menores, quase sempre do sexo masculino. Com exceção de um caso em Guamá, Brasília, em que do trio criminoso fazia parte uma menor, filha de policial. Em Barretos, São Paulo, foi gravemente queimado quando chegava em casa um jovem carteiro, pai de família, porque tinha pouco dinheiro no bolso. Tivemos recentemente o caso da dentista queimada viva no subúrbio de São Paulo e do dentista também queimado vivo no interior.
Nem sempre se trata de casos em que a violência cruel é complemento de uma ação criminosa, como o roubo. Um número grande de casos envolve pessoas que agridem e até matam cruelmente por pura diversão. Quase sempre se trata de vítima indefesa ou desvalida. Não é raro que a vítima seja negra. Com grande frequência os criminosos são de classe média, cenário que se alarga se nele incluirmos os casos de atropelamento e morte ou mutilação de pedestres por motoristas socialmente bem situados, que fogem e no ato e na fuga dão explícitas demonstrações de menosprezo pela vida alheia.
Nossa sociedade, nesses já frequentes casos, vem botando a cara pra fora, como se costuma dizer. Essas ocorrências são indícios de que a sociedade brasileira está doente. A certeza de que esses crimes são lícitos e impunes está presente em quase todos os casos. Quando, em 1997, foi queimado vivo o índio pataxó hã-hã-hãe Galdino Jesus dos Santos num ponto de ônibus de Brasília, os assassinos, de famílias de alta classe média, alegaram que pensaram ser ele um mendigo.
Isto é, em seu entender, se fosse mendigo, podia.
Em vários desses casos são fortes as indicações de que o pressuposto da violência é o mesmo: o de que há pessoas que não têm direito ao tratamento de sujeitos de direito, porque menos humanas que as demais.
Menos humanas porque negras, mestiças, indígenas, mulheres, pobres. Polícia e Justiça não raro agem segundo esse mesmo entendimento, o de que uma parcela da população brasileira é menos humana e menos gente que outra. No caso de Galdino, os assassinos em pouco tempo estavam em liberdade. Se vasculharmos mais fundo, vamos encontrar um padrão recorrente de comportamento de classe média, que vem de nossas heranças históricas de desigualdade social e mando. O que antes era atributo da minoria senhoril, agora se difunde com a ascensão social de gente que chega economicamente às camadas superiores da sociedade sem ter chegado às camadas superiores da cultura e da civilização. Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade.
Essas coisas costumam acontecer altas horas da noite, como no caso ocorrido na praia de Ipanema e nos outros mencionados. Nos numerosos casos de linchamento no Brasil, um crime do mesmo gênero dos aqui mencionados, em longa série histórica, há notória diferença entre linchamentos praticados à noite e os praticados de dia. Os linchamentos noturnos são mais violentos e neles são maiores os indicadores de crueldade, como a de mutilar a vítima ou a de queimá-la ainda viva.
Tanto o justiçamento popular quanto a diversão juvenil de queimar vivas pessoas sozinhas e desamparadas são manifestações de uma covardia estrutural: os violentos são corajosos quando ninguém está vendo, quando não há testemunhas, quando há apenas cúmplices. Quando, nos casos de linchamento, se leva em conta que as multidões espontâneas que deles participam são extrações ao acaso do conjunto da sociedade, temos uma significativa indicação de uma disposição que vem das nossas estruturas sociais profundas, aquelas sem visibilidade imediata na maquiagem social do cotidiano, dos fingimentos que asseguram uma sociabilidade de superfície, aparentemente conforme as normas da civilidade. Uma disposição, também, que se aproveita do amortecimento da consciência social numa sociedade em que os direitos da pessoa não têm raízes fundas nem são cuidados com amor de jardineiro.

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