segunda-feira, 10 de novembro de 2008

IMPACTO GLOBAL.

Ignacio Ramonet.

O apocalipse financeiro não terminou. Está a transformar-se em recessão global. E tudo indica que estamos a caminhar para uma Grande Depressão. As medidas adoptadas na Europa e nos Estados Unidos, por muito espectaculares que sejam, não vão provocar o fim das dificuldades. Admitiu-o o próprio Henry Paulson, secretário do Tesouro estadunidense: «Apesar do nosso grande plano de salvamento, mais instituições financeiras vão falir».

Numa nota de informação sobre as crises dos últimos trinta anos, o Fundo Monetário Internacional (FMI) confirma que as crises cujos protagonistas são os bancos e o sector imobiliário se revelam especialmente «intensas, longas, profundas e prejudiciais para a economia real». Os efeitos já se estão a estender pelos cinco continentes: em poucas semanas, o real brasileiro perdeu 30 por cento do seu valor; o zloty polaco, 22 por cento; a rupia indiana, 10 por cento; o peso mexicano, 14 por cento. Pressões semelhantes estão a sentir a Indonésia, as Filipinas ou a República Checa.

As autoridades estadunidenses já injectaram mais de um bilião e meio de euros (o equivalente ao dobro do que custaram, desde 2001, as guerras do Afeganistão e do Iraque) nos seus diversos planos de salvamento de bancos, caixas de aforros e companhias de seguros. E os grandes bancos do mundo ainda necessitam de uns 500 milhões de euros… Coisa que os leva a restringir o crédito às empresas e aos particulares. Com as consequências muito negativas que isso está a ter na economia real.

Os países avançados, entre eles a Espanha, que recorreram à inovação financeira para garantir altas rendibilidades aos investidores, são os que encaixam o golpe mais duro. O FMI estima que a economia destes países irá ter o crescimento mais fraco desde há 27 anos. O mundo está em vias de passar pelo seu pior pesadelo desde 1929.

Pelas suas inéditas dimensões, esta crise põe fim ao período neoliberal baseado nas teses monetaristas de Milton Friedman, que dominaram o campo capitalista durante três décadas. E ofuscaram também a social-democracia internacional. A queda repentina desse credo deixa a maioria dos dirigentes políticos desamparados. O patético espectáculo dos responsáveis que multiplicam de forma disparatada as reuniões e as “medidas de salvamento” mostra como estes se encontram desorientados.

Nos Estados Unidos, os bancos operaram em condições de liberdade absoluta, concedidas em nome de fundamentos ideológicos. Por isso, a classe política norte-americana tem a responsabilidade do caos actual. O dogma do mercado infalível autodestruiu-se. Em contrapartida, é agora reivindicado o modelo dos países que mantiveram alguma forma de controlo cambial – a China ou a Venezuela, por exemplo. E embora o impacto da crise se vá fazer sentir em todo o planeta, essas economias que não adoptaram a desregulamentação ultraliberal estarão mais bem preparadas. No que diz respeito à América Latina, alguns analistas sublinham o interesse de mecanismos como a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), o Banco do Sul ou a ideia de um banco da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), recentemente proposta pelo presidente venezuelano Hugo Chávez.

É um momento histórico [1]. Desmorona-se assim não apenas um modelo de economia, mas também um estilo de governo. Esta situação altera a liderança dos Estados Unidos no mundo. Em particular a sua hegemonia económica. As suas finanças dependem de continuarem a entrar grandes somas de capital estrangeiro. E os países de onde procede esse dinheiro – China, Rússia, petromonarquias do Golfo – vão agora influir no seu futuro.

Em 2006, a China e o Médio Oriente financiaram, em partes iguais, 86 por cento do défice dos países industriais. Em 2013, o superavit chinês irá exceder a totalidade do défice dos países industriais. Tudo isso atribui a Pequim um papel decisivo na manutenção da estabilidade do sistema financeiro internacional. Sendo provável que em troca a China procure obter concessões em questões como as de Taiwan ou do Tibete.

O declive da economia anuncia, em geral, a decadência dos impérios [2]. Poderá a enfraquecida economia estadunidense continuar a assumir a muitíssimo dispendiosa guerra do Iraque? A guerra do Vietname acabou com a equivalência entre o dólar e o ouro e fez cambalear o sistema de Bretton Woods. A guerra do Iraque, pelos custos que tem, provocou uma transferência de riqueza dos Estados Unidos para os seus concorrentes. A influência dos fundos soberanos e da China reforçou-se. A crise actual está a fortalecer esse movimento, provocando um reequilíbrio fundamental: o centro de gravidade do mundo está a deslocar-se do Ocidente para o Oriente.

Mas uma tal deslocação desencadeia consequências em cascata, como as que levanta o ensaísta britânico John N. Gray: «Se os Estados Unidos se retirarem do Iraque, o Irão ficará a ser o vencedor regional. Como irá reagir a Arábia Saudita? Haverá mais ou menos probabilidades de uma acção militar para impedir que o Irão obtenha armas nucleares?» [3]. É evidente que Washington está a perder poder. A guerra da Geórgia, em Agosto passado, mostrou que a Rússia estava a redesenhar o mapa geopolítico do Cáucaso e que os Estados Unidos não podiam fazer nada.

A situação económica é tão grave que muitos governos estão a atirar pela borda fora as suas crenças ideológicas, mostrando-se dispostos a adoptar medidas que ainda há pouco eles próprios teriam considerado heréticas. Por exemplo, aumentar as despesas públicas. E relançar os investimentos, como estímulo económico, em obras de infra-estruturas importantes. O próprio FMI defende agora uma intervenção pública mais radical.

Morreu o modelo de capitalismo concebido pelos Estados do Norte para grande proveito dos países ricos. A nova arquitectura de uma economia social de mercado irá ser definida, a partir da reunião do próximo dia 15 de Novembro, em Washington, não só pelos grandes países do G8, mas também, pela primeira vez, por potências do Sul como a Argentina, a África do Sul, o Brasil, a China, a Índia e o México. Já era tempo.

[1] John N. Gray, “Mucho más que una crisis financiera”, El País, Madrid, 11 de Outubro de 2008.

[2] Paul Kennedy, Ascensão e Queda das Grandes Potencias, Campus, 1989.

[3] Op. cit.

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