NA CONTRACORRENTE da euforia e do otimismo generalizados com a eleição de Barack Obama, cumpre pensar em algumas contradições entre o `sonho` e a realidade; peço antecipadas desculpas pela saturação da `obamania`.
Na cultura política norte-americana, forjada por uma simbiose do protestantismo calvinista com `afinidades eletivas` -Goethe `apud` Weber- com o êxito capitalista, no chão de uma nação de imigrantes, ser rico não é uma falta, mas até um sinal de salvação. Entre nós, como bem o sabia Sergio Buarque de Holanda, mesmo um catolicismo complacente não encontra muitas afinidades entre a salvação eterna e o desfrute das riquezas do mundo.
Assim, talvez o anúncio da equipe de transição de Obama não ofenda seus milhões de eleitores. Mas há uma contradição flagrante entre sua mensagem de mudança e a nomeação de figurões de Wall Street para fazer a transição entre o (des)governo Bush e a esperança obamista. Até porque a periferia, ainda que a contragosto, -Lula: o problema não é só do Bush- terá parte nas soluções que o eleito presidente dos EUA vier a concretizar para resolver a crise -ou prolongá-la.
Deve-se desconfiar dos ricos, que não podem morder o próprio rabo nem operar contra seus interesses? Isso é luta de classes de botequim, que os leitores desta Folha não merecem. A menos que exista entre os nomeados algum Keynes escondido -e a folha corrida deles não deixa a ver nenhuma ponta desse iceberg- e que Obama seja, de fato, uma reinvenção de Franklin Roosevelt, o aristocrata novaiorquino que enfrentou sua própria classe social para reerguer os EUA atolados na mais funda depressão da história do capitalismo e de sua própria história nacional; mas a lista divulgada promete mais do mesmo, pelos breves currículos publicados por esta Folha em 7/11.
Dos 17 citados, 11 são diretamente ligados a grupos financeiros da linha de frente de Wall Street. Não estavam eles entre os barões ladrões que inflaram as bolhas até o recente estouro?
Fica patente também que o Partido Democrata preparou-se para uma outra administração Clinton, sob a presidência da chata da Hillary; Obama foi um cavalo azarão. A tão propalada preparação do senador por Illinois pode ter sido um blefe: ele está inteiramente nas mãos dos clintonianos. Capacidade de ouvir não é capacidade de governar. Lembra o folclórico governador Valadares, de Minas, que dizia com bom humor ficar `rouco de tanto ouvir`.
O keynesianismo civil sozinho não conseguiu reerguer os EUA. Foi preciso o `keynesianismo de guerra`, na forma das pesadas encomendas do governo rooseveltiano às indústrias bélicas, para a economia norte-americana levantar vôo e manter-se no ar durante os chamados `30 anos gloriosos` até os anos 70.
Obama não dispõe de nada disso: ao contrário, o keynesianismo não funciona numa economia globalizada, porque o poder nacional, mesmo o dos EUA, é limitado pelos constrangimentos da globalização, tanto que os esforços agora são para uma concertação geral de políticas, sobretudo a monetária, entre os principais países capitalistas; e os EUA não estão saindo de uma guerra vitoriosa. Muito ao contrário, estão quase como no Vietnã: de rabo entre as pernas.
E do brevíssimo período, uns dez anos se tanto, da arrogância unilateral da única potência que restou da Guerra Fria, caminhou-se para uma multipolaridade -a aposta de Togliatti, o velho líder comunista italiano- na qual emerge, com destaque, uma nova potência como a China. Para uma crise global, só uma saída global: mesmo o delírio de Bush e asseclas não conseguiu criar uma guerra global, que era na verdade seu projeto, o Armagedon, e ficou só na destruição do Iraque -então uma próspera economia- e na rematada destruição do já combalido -a ex-URSS havia feito sua parte- Afeganistão.
Ninguém deseja uma guerra para resolver uma crise do capitalismo: o último clone de Hitler está saindo de cena. Melhor seria que o sistema se esvaísse sem a necessidade de um trauma global, mas nem Papai Noel sonha com isso. Assim, é preferível que Obama cumpra suas promessas, o que já seria um otimismo cauteloso ou um pessimismo melhorado (fórmula parecida com o `silêncio obsequioso` da mais que dialética Igreja Católica), que é o desejo quase geral do establishment para o futuro governo de Obama.
A ausência de uma teoria sobre o capitalismo globalizado dá lugar apenas a tímidas perspectivas que não vão além de uma semana. Já vimos esse filme, muito recentemente: o de uma esperança que venceu o medo para depois entregar-se a ele. E, embora os atores possam ser competentes, os resultados das histórias, não dos filmes, que são ótimos, podem ser desastrosos: entre a abertura respeitosa, mas sem esperanças, de um `Linha de Passe` e a tragédia anunciada de `Última Parada 174`.
FRANCISCO DE OLIVEIRA , 75, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Fonte: AEPET.
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