Bernardo Kucinski *
Obama escolheu pesos pesados do pensamento imperial americano para tirar os Estados Unidos de sua maior crise desde a depressão dos anos 30. Entre eles o general veterano da guerra-fria, James Jones, ex-comandante da OTAN e os dois principais formuladores da estratégia americana de dominação financeira: Lawrence Summers, que foi Secretário do Tesouro de Clinton e economista chefe do Banco Mundial, e Paul Volcker que presidiu por oito anos o banco central americano, o FED.
Outro peso-pesado, o ex-almirante Denis Blair, ex-comandante da frota do Pacífico, é o novo Diretor Nacional de Inteligência, cargo criado depois do fiasco das "armas de destruição em massa do Iraque" para coordenar todas as agências de inteligência dos Estados Unidos. Obama ainda manteve como secretário de defesa o ex-diretor da CIA e defensor entusiasta da invasão do Iraque, general Robert Graves. E para o posto chave de Secretário do Tesouro, chamou o mesmo Timothy Geithner que como dirigente do FED de Nova York permitiu que Wall Street virasse o cassino que virou. Foi ainda Geithner quem aconselhou Bush a socorrer diretamente os bancos, quando a banca quebrou.
O único peso-leve da nova equipe é Leon Panetta que vai dirigir a CIA, um entendido em orçamento, não em espionagem global. Mas Panetta foi chefe de gabinete do presidente Clinton, portanto experiente nas questões do poder mundial. O preferido de Obama era John Brennan, o homem que dirigiu o Centro Nacional de Luta contra o Terror do governo Bush, inventor dos métodos de interrogatório de Guantânamo e Abu Ghraib. Só que a mera menção a Brennan provocou calafrios no comitê Obama e o nome foi retirado .
Obama alegou a seus eleitores decepcionados que escolheu os melhores, os mais brilhantes. A mudança, assegurou Obama, viria dele, de sua orientação. Mas foi infeliz nessa explicação. A cruel mídia americana logo lembrou o título "Os melhores e os mais brilhantes", da principal radiografia do governo Kennedy, escrita por David Halberstam (1), tão impactante que a expressão incorporou-se ao jargão político americano, como ironia sobre jovens brilhantes que conseguem produzir apenas fiascos, como o da invasão da Bahia de Los Cochinos.
Competência não é um atributo neutro. Que tipo de conselhos se pode esperar desses velhos comandantes da guerra fria e do sistema financeiro? Chomsky, embora considerando a vitória de Obama um marco na história da democracia americana diz que essas nomeações mostram que por trás de seu "discurso altivo", o novo presidente não passa de um típico centrista do Partido Democrata. André Muretta, do New York Times, lembra, por exemplo, que Obama tem um "histórico dúbio" na questão da luta contra o terror. Numa ocasião votou contra os grampos telefônicos, mas em outra mais recente, no Senado, votou a favor.
E o que pensa Obama da economia? Obama lecionou Legislação durante dez anos na Universidade de Chicago, o bunker do neoliberalismo. Filia-se à escola de economia chamada de "behaviorista", ou seja, comportamental, uma dissidência do neoliberalismo.
Os behavioristas confiam, como os neoliberais, na superioridade do mercado e da livre iniciativa, mas não acham que os mercados sempre tendem ao equilíbrio ou que as decisões de pessoas e empresários sejam sempre racionais. Coisa parecida diz agora George Soros, para quem "a crise do sistema financeiro foi gerada dentro dele mesmo por um defeito a ele inerente". (2)
Essa discordância não impede que Obama se encaixe com perfeição num sistema político em que o liberalismo é a cultura dominante e o aparelho de Estado é montado por uma lógica de interesses de mercado. Nesse sistema o secretário do Comércio é sempre ligado a grandes empresas, o secretário do Tesouro é sempre o homem dos bancos, e assim por diante. Obama seguiu o figurino.
Mas com uma diferença crucial: ao nuclear seu gabinete em torno dos estrategistas do poderio mundial americano Obama indica que é nessa esfera que vai ser tentada a saída para a crise doméstica. Essa é a grande diferença entre os Estados Unidos da depressão dos anos 30, quando ainda não eram a potencia hegemônica, e os Estados Unidos de hoje. (3) Apesar de restaurar quase por completo a era Clinton, Obama cooptou republicanos emblemáticos, montando um governo que a mídia americana chama de "non-partisan", ou supra-partidário, outro traço de governos que priorizam a políticas externa. Não por caso, ao revelar os primeiros nomes de seus núcleos duro, Obama disse: "Vamos reforçar nossa capacidade de derrotar nossos inimigos e de apoiar nossos amigos. Vamos renovar alianças antigas e forjar novas e duradouras parceria." Nesse gabinete de crise, a sorridente Hillary Clinton, na chefia do Departamento de Estado, o mais importante cargo na hierarquia de comando do Império americano, deverá ser apenas a "garota propaganda" do novo governo.
É cortina de fumaça a promessa de Obama de criar 3 milhões de empregos até 2011, investindo em infra-estrutura e modernização de escolas. Economistas americanos calculam que para isso seria preciso inverter a curva de desempenho da economia americana do atual encolhimento atual de cerca de 2,2% ano, para um crescimento de 3.5% ao ano. Só no que vem, prevê o Escritório de Orçamento do Congresso, o PIB deverá voltar a crescer e mesmo assim apenas 1,5% . A esse ritmo lento de recuperação, o desemprego continuará aumentando, devendo atingir 9,6% da força de trabalho em 2010.
Só no ano passado foram eliminados 2,5 milhões de empregos. Mais de 1 milhão foram cortadas só nos meses de novembro e dezembro. Ou seja, a crise está ainda na fase de aprofundamento. Martin Wolf, do Financial Times diz que impedir que o desemprego aumente ainda mais, o pacote de Obama, equivalente a 5,3% do PIB, teria que dobar.
Passado o primeiro susto, muitos economistas já tratam o que está acontecendo como uma recessão cíclica, embora atípica e muito mais severa que a maioria das anteriores, devendo durar entre 18 e 21 meses. Dados corrigidos do desempenho da economia americana mostram que a recessão começou em fins de 2007. Ou seja, foi a recessão que derrubou o castelo de cartas das hipotecas sem garantia, dos derivativos de papel e dos esquemas Ponzi do cassino em 2008 e não o contrário.
Nas economias de mercado, crises desse tipo são tão recorrentes quanto as gripes e se curam da mesma forma, por exaustão, como se purgam as gripes. Ao contrário do que Obama hoje promete, os remédios clássicos do sistema são o próprio desemprego, pressionando para baixo o custo da força de trabalho e destruindo empresas menos eficientes. Isso só se consegue com recessão. Portanto, ou Obama está enganado ou está enganando.
Mas nem a recessão e nem a derrocada dos grandes bancos de Wall Street, embora enfraquecendo o poderio americano, alteram o fato básico de que os EUA ainda detêm supremacia a militar, tecnológica e cultural e o maior poder de compra do mundo capitalista, como diz Rubens Ricupero dando o exemplo da frota naval americana, maior do que a soma das outras 13 maiores frotas navais do mundo. (4)
Da percepção desse poderio surge o paradoxo pelo qual poupança de todo o mundo em vez de fugir do dólar, nele buscou proteção, quando mais a crise se agravou, e apesar do histórico de calotes do Tesouro americano.
Esse é o paradoxo de que vai se valer Paul Volcker, chamado por Obama para dirigir o importante Comitê para Recuperação da Economia, como se valeu das duas vezes antes. Para salvar o dólar da crise provocada pelos gastos excessivos da Guerra do Vietnam, Volcker propôs a Nixon em 1971 renegar a garantia em ouro dos dólares mantidos por bancos centrais, o que levou ao sepultamento do tratado de Bretton Woods e permitiu ao tesouro americano imprimir dólares sem lastro (5). Três anos antes, o governo americano já havia abolido essa garantia para detentores privados de dólares. O fim de Bretton Woods, sem que nada de mesmo porte fosse colocado no seu lugar deu início à desordem cambial e monetária que nos levou à tragédia financeira de hoje.
Volcker atacou de novo em 1979, quando a economia americana se viu ameaçada pela a estagflação - uma combinação de inflação alta e crescimento baixo provocada pela alta do petróleo. Numa reunião de emergência do FED convocada num fim de semana, e sem consultar nenhum governo ou entidades como o FMI, Volcker baixou um arrocho monetário tal que a taxa de juros principal dos Estados Unidos, o prime rate, saltou de 9% para 12 e depois para 14% e batendo em 20% em maio do ano seguinte.
Naquele momento, a América Latina havia acumulado aproximadamente US$ 180 bilhões em dívidas atreladas ao dólar com cláusulas de juros flutuantes. Parte indexada ao Prime, parte indexada ao Libor, que seguia o Prime de perto. Dívidas contraídas quando o juro estava entre 4% e 6% ao ano e que agora teriam que ser remuneradas a um juro cinco vezes maior.
Em janeiro de 1981 o prime chegou ao espantoso nível de 21,5%. A conta de juros do México mais do que quadruplicou, de US$ 2,3 bilhões em 1979 para US$ 9,8 bilhões em 1982. Foi o primeiro a quebrar, em setembro. Seguiu-se o Brasil, cuja conta de juros mais que dobrou de US$ 4,5 bilhões para 11,9. E assim foram quebrando todos os países periféricos da áreas do dólar, um após o outro.
Durou seis anos essa política econômica conhecida como reaganomics. Nesses seis anos a América Latina pagou US$ 209,7 bilhões de juros da divida externa, e mesmo assim o principal da dívida em vez de diminuir aumentou, chegando a US$ 368 bilhões.
Quebraram países e quebraram empresas, pois poucas conseguem gerar um lucro superior a essa taxa de juros. Nos Estados Unidos, grandes empresas estavam protegidas por uma legislação que permitia descontar os juros pagos do imposto de renda devido. Mesmo assim milhares de pequenos agricultores americanos foram à ruína.
Paul Volcker pode não ter tido a intenção de quebrar a América Latina, mas sabia com certeza dos efeitos catastróficos dos juros anômalos sobre a dívida latino-americana porque antes de presidir o FED havia sido sub-secretário do Tesouro para finanças internacionais durante cinco anos - de 1974 a 1979. Sua função principal nesse período era exatamente a de acompanhar os níveis de endividamento dos bancos americanos, principais credores da dívida latino-americana.
O que Volcker e seu comitê poderiam tirar do bolso do colete desta vez? Poderia desvalorizar fortemente o dólar, incentivando as exportações americanas, impor novas barreiras protecionistas contra produtos estrangeiros e poderia pressionar para que países periféricos abram mais seus mercados a produtos americanos.O mais provável é que façam tudo isso ao mesmo tempo e com o máximo de pressão possível.
Obama já havia anunciado na campanha que "renegociaria tratados de comércio para incluir mais cláusulas de proteção aos trabalhadores e ao meio ambiente." Leia-se protecionismo disfarçado em selo verde.
Ao apresentar o ex-prefeito de Dallas, Ron Kirk, como novo representante comercial dos Estados Unidos, o homem que vai negociar ou renegociar acordos de tarifas, Obama reafirmou, "Kirk irá garantir que cada acordo comercial que eu assinar proteja os direitos de todos trabalhadores e promova os interesses de todos os americanos..."
E nem pensem que Kirk tenha se notabilizado na defesa desses direitos dentro dos Estados Unidos. Ao contrário, ele é membro da diretoria do grupo de restaurantes Brinker, um dos maiores financiadores de campanhas contrárias aos direitos trabalhistas nos Estados Unidos.
Embora a maioria dos economistas não goste do aumento do protecionismo alguns consideram inevitável um surto protecionista. O protecionismo tem a desvantagem de prolongar a vida de empresas e setores não competitivos ou pouco eficientes o que vai contra a necessidade de purgar a crise com aumento de eficiência e redução de custos.
Kirk não é peixe pequeno. Foi o primeiro prefeito negro de Dallas, notabilizando-se pela ousadia de seus projetos urbanos. Depois, virou um lobista de prestígio. Peso pesado. Fez lobby para grandes empresas entre as quais Energy Futures Holding e o banco de investimentos Merrill Lynch - esse mesmo que quebrou.
Mais fácil de impor e de efeito maior é a desvalorização do dólar, que também criaria mais empregos nos Estados Unidos, impulsionando exportações e encarecendo as importações. Por esse mecanismo o valor dos salários dos americanos em outras moedas cairia automaticamente, o que está em linha com a necessidade de purgar a recessão através da redução do custo da mão obra e aumento da produtividade.
A desvalorização tem também a enorme vantagem de dar um calote disfarçado na gigantesca dívida americana de 4 trilhões de dólares. Será esse o mico que Volcker tentará passar para o resto do mundo? Alguns analistas americanos dizem que ele já está estudando com o FED uma política de estimulo à inflação. Maior inflação nos Estados Unidos do que no resto do mundo é o primeiro passo para desvalorizar o dólar.
Os chineses, que aplicaram 1,2 trilhões de dólares em títulos do governo americano já desconfiam de um calote: "Esperamos que Washington tome as medidas de segurança necessárias à garantia do patrimônio dos investimentos chineses nos EUA", cobrou neste dezembro Zhou Xiaochuan, o presidente do Banco Central da China. (6)
A probabilidade de calote é alta. Os próprios credores podem provocá-lo, se entrarem em pânico com o brutal aumento da dívida publica americana para financiar o pacote de US$ 700 bilhões de Obama. O déficit fiscal do governo americano deve triplicar dos 455 bilhões no balanço encerrados em setembro último para mais de 1,2 trilhão em setembro próximo. Se os detentores dos títulos americanos começaram a deles se desfazer em ritmo muito veloz, a cotação do dólar desabará e a profecia do calote de auto-realizará, mesmo sem Volcker mexer uma palha.
(*) Uma versão resumida desta análise escrita antes de completada a equipe de Obama está na edição de janeiro da Revista do Brasil.
NOTAS
(1) The Berst and the brightest. Halberstam, David. Fawcett, 1973.
(2) The Crisis & What to do about it. The New York Review of Books. Vol 55, N. 19, Dezembro 2008.
(3) Mesmo assim só depois de entrar na Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos saíram da depressão, pouco tendo adiantado o New Deal de Roosevelt. Conf. entrevista de Paul Sweezy ao autor.
(4) FSP, 08/12/08.
(5) Pelo tratado de Bretton Woods, o Tesouro americano se comprometia a entregar a cada detentor de um dólar 0,7108 gramas de ouro ( 35 dólares por onça)...
(6) Seg. FSP, 05/12/08.
[Publicado em Carta Maior]
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