Mário Augusto Jakobskind
No final de agosto de 1981, o autor destas linhas estava no Uruguai cobrindo uma troca de governo para a revista Cadernos do Terceiro Mundo. Por incrível que pareça, saía um civil, o octagenário Aparício Mendez, e entrava um militar, o general Gregório Alvarez, que prometia redemocratizar o país. Não cumpriu a promessa, pois a repressão continuou e o Uruguai só conseguiu virar parte da página três anos depois.
Algumas horas antes da posse, bem cedo, agentes da repressão bateram com toda a força na porta do quarto do hotel onde eu estava, em pleno centro de Montevidéu. Os agentes foram direto no colchão, sabe-se lá por quê, e com armas na mão ordenaram que fizesse a mala para acompanhá-los. Tremi nas bases, sem condições de reagir, a não ser a clássica pergunta “o que estava acontecendo?” Fui levado numa camionete Veraneio, fabricada no Brasil, para a chefatura de polícia, próximo do local onde se encontrava preso o General Líber Seregni, fundador da Frente Ampla, a mesma coligação de esquerda que hoje é governo no Uruguai e tenta se manter com a candidatura presidencial de Pepe Mujica, um ex-preso político refém, que já foi senador e Ministro da Agricultura do atual governo do presidente Tabaré Vázquez.
Chegando à Direção Nacional de Informação e Inteligência fiquei sabendo que seria imediatamente expulso do Uruguai. Tive a sensação de alívio, aí decidi testar o dispositivo. Deu para sentir que estava lidando com agentes da repressão dispostos a qualquer coisa para cumprir o “serviço”. Um deles, um tal de Pepe, me informou que eu teria de prestar depoimento antes da expulsão e que aguardasse.
Podem imaginar que tipo de interrogatório fui submetido. Apareceu um tal de Spaldoni, um tipo assustador com aparência de torturador e neste caso as aparências não enganam. Com a voz do tipo trombone, o agente fez uma preleção idiota chamando a atenção sobre a soberania uruguaia. E por fim disse que eu seria expulso por meus “antecedentes negativos” no país de origem e que eu estava vinculado a uma “publicação subversiva”. Lembrei ao agente que Cadernos do Terceiro Mundo era legal em meu país. O cara, claro, não gostou e quase aos gritos lembrou que estávamos no Uruguai.
Spaldoni pediu para acompanhá-lo. Posteriormente fiquei sabendo que o meu “cicerone” nas dependências do serviço de inteligência era amigo de Dan Mitrioni, um agente da CIA especializado em torturas com passagem pelo Brasil e que acabou seqüestrado e morto pelos tupamaros, uma organização que fazia a luta armada no Uruguai.
Descemos umas escadas, atravessamos um corredor, voltamos a subir e, finalmente ingressamos numa sala onde se encontrava um oficial que escrevia a máquina e tinha uma colt 45 na cintura. Aí tive de responder a uma série de perguntas do tipo se eu vivia apenas do salário de jornalista, se pertencia a alguma organização política, o que estava fazendo no Uruguai, se conhecia fulano, beltrano ou mengano, gente que eu nunca ouvira falar. Alguns anos depois, ao ter acesso aos arquivos liberados dos serviços de repressão brasileiros (habeas data) pude constatar que o tipo de perguntas absurdas feitas pelos policiais uruguaios possivelmente tinham por base informações do serviço de inteligência da ditadura brasileira, fato comum como comprovam os documentos da Operação Condor.
Os agentes queriam que eu assinasse um papel com a comunicação oficial da minha expulsão. Respondi que só assinaria na presença de algum advogado ou representante da embaixada brasileira. Falei apenas para ver a reação. Os caras se entreolharam, saíram da sala e em seguida apareceram três outros policiais que pareciam lutadores de judô ou jiujist. Um deles com voz alterada avisou que se eu não assinasse seria conduzido às “masmorras” e ficaria preso por alguns meses até que fossem acertados os “trâmites burocráticos”. O outro que ouvia calado deu um soco (de advertência) numa mesa. Deu para sentir perfeitamente que se eu não assinasse o tal documento o caldo ia engrossar. Deu para perceber até onde eu poderia chegar.
Na volta de Spaldoni decidi “ceder”, ou seja, assinei o aviso, que apareceu nos jornalões uruguaios e no O Estado de S. Paulo que um “jornalista brasileiro vinculado a sedição "tinha sido expulso do Uruguai".
E agora, 28 anos depois desta violência cometida pela ditadura uruguaia, em desagravo, o prefeito de Montevidéu, Ricardo Ehrlich, assinou decreto concedendo-me o título de Cidadão Ilustre da capital uruguaia. Já os agentes da repressão uruguaia estão hoje no lixo da história e o povo vai decidir no próximo dia 25 se revoga ou não a lei de caducidade, ou seja, dirá nas urnas se os torturadores estatais, como os agentes que tive contato, devem ou não ser punidos. As pesquisas indicam que a lei dos anos 80 que concedia a impunidade deve cair.
Não é à toa que se pode dizer com muita segurança que o mundo dá muitas voltas, que fazem com que os “subversivos" de ontem virem os Cidadãos Ilustres de hoje. Obrigado, Montevidéu.
Fonte:Direto da Redação.
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