sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

EUA - Uma prática chamada "waterboarding"

Flávio Aguiar

DEBATE ABERTO

Uma prática chamada “waterboarding”

Assim como na América Latina os sucessivos sucessos das várias esquerdas exacerbaram as unhas e os caninos das direitas, também nos EUA a eleição de Obama, com todas as contradições que ele e ela trazem, exacerbou a direitona da direita.

Entre as vitórias da direita neste começo de 2010 – da aparente estabilização do golpe em Honduras à do ex-pinochetista Piñera no Chile – uma tem um significado muito especial. Refiro-me à vitória do republicano Scott Brown contra a democrata Martha Coakley para o mandato-tampão como senador pelo Estado de Massachussets, nos Estados Unidos, no lugar vago pela morte de Ted Kennedy.

As manchetes e os olhos das notícias logo se encheram com as referências de que ele é contra a reforma do sistema de saúde que o presidente Barack Obama pretende implantar, que ele é contra também os acordos negociados para a diminuição das emissões de carbono, e de que com ele os republicanos estarão capacitados (por um voto) a usar métodos de bloqueio das votações.

Um item que não mereceu tanta atenção é o de que esse novo senador se posicionou por uma exclusão de um método de interrogatório chamado de “waterboarding” da lista das torturas. Esse método adquiriu relevância por ter sido usado pelo menos em três prisioneiros suspeitos de serem da Al-Qaeda em Guantánamo, e desde então cresceu o debate sobre ele.

O “waterboarding” (não sei como traduzir o termo para o português) consiste em deitar o prisioneiro de costas, com a cabeça rebaixada e coberta por um pano ou algodão ou outro tecido, e em ir derramando água sobre ela, de modo que o tecido encharcado e a água que dele se infiltra na boca e no nariz da vítima provocam uma sensação imediata de sufocação e morte. Dizem os médicos especialistas em tratamento de torturados que a sensação é pior do que a que acomete os que têm a cabeça enfiada num tonel com água, por exemplo. Com uma vantagem para os torturadores: não deixa marcas físicas no corpo do torturado.

O debate é tão grande nos EUA que a CNN, depois da eleição de Brown, promoveu um debate entre dois especialistas, um professor britânico (a favor de considerar o método como tortura) e outro norte-americano (contra). Confesso aos leitores e leitoras que fiquei tão horrorizado pela discussão que me esqueci de tomar nota dos nomes dos debatedores.

O norte-americano tinha uma cara de borracha, uma máscara que mobilizava com expressões que ele queria de aço, mas que eram na verdade de coisa morta, de ataúde do pensamento. Começou a defender que o método não era tortura, coisa que nem a apresentadora do programa engoliu. Depois, pôs-se a dizer que graças a esse método, “que não era igual a dar choques elétricos ou arrancar unhas”, obtiveram-se informações importantes para a defesa norte-americana. “To save american lives”, como eles gostam de dizer. Por fim, foi apertado pelo professor britânico, que perguntou se, como ele defendia que o método não era uma tortura, concordaria em que prisioneiros norte-americanos fossem a ele submetido. Acuado, mas cara de pau, o outro respondeu que os combatentes norte-americanos eram combatentes legais, e que deveriam ser protegidos pela Convenção de Genebra quanto a prisioneiros de guerra. Mas que isso não se aplicava a “terroristas”, o que, literalmente, equivale a dizer que “terroristas” não são seres humanos e que, portanto, estão fora da Carta a respeito dos direitos destes, promulgada pela ONU em 1948.

Acho que esse episódio mostra o que se passa ao norte do Rio Bravo, ou do Rio Grande, como querem os norte-americanos. Assim como na América Latina os sucessivos sucessos das várias esquerdas exacerbaram as unhas e os caninos das direitas, que se assanham em nível continental para reverterem essa “onda”, também lá a eleição de Obama, com todas as contradições que ele e ela trazem, exacerbou a direitona da direita, disposta a recuperar terreno a qualquer preço. Só em cinco dias, a campanha de Brown arrecadou 6 milhões de dólares, prática que agora se vê reforçada pela decisão da Suprema Corte norte-americana de legalizar doações sem limites por parte de empresas e corporações para campanhas eleitorais, com base no direito constitucional de “liberdade de expressão”. A decisão foi apertada, 5 x 4, o que comprova seu caráter polêmico, e certamente já trará efeitos para a próxima campanha para o Congresso norte-americano.

Uma coisa é certa: se a política de Obama é um poço de contradições e dúvidas, uma futura dos republicanos será um oceano de certezas.

Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.

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