O mundo de ponta-cabeça
Dez anos depois, o Fórum se tornou uma referência internacional consagrada do esforço de revirar de ponta-cabeça um mundo que, do contrário, tende a desperdiçar suas chances de por seus povos de pé. Neste ano, o Fórum tem particular importância, para além do fato de estar completando uma década. Será a oportunidade de refletir sobre o quadro internacional, as grandes transformações em curso e as alternativas que podem tornar possível um novo mundo, mais democrático, livre e igualitário do que o foi o do século que passou. O artigo é de Antonio Lassance.
Antonio Lassance
O início deste século tem sido marcado por transformações profundas e aceleradas. Há um século atrás, não foi diferente. A década de 10 teve dois acontecimentos angulares para o século XX: a I Guerra (1914-1918) e a Revolução Russa (1917). O mundo tinha uma nova geografia, com países recém unificados, outros que acabavam de surgir (África do Sul, 1910) e alguns que mudavam de regime – como Portugal, que aboliu sua secular monarquia e instaurou a república, também em 1910. Populações migravam em grande escala para as Américas. As cidades ganhavam contornos horizontais e verticais inimagináveis e sua paisagem passaria a ser definitivamente associada ao automóvel e à eletricidade.
A produção industrial começara a utilizar a linha de montagem, nas fábricas da Colt (de armas) e da Singer (máquinas de costura), mas foi a partir da década de 10, com o modelo T, da Ford, quando ela se tornaria o padrão de organização do trabalho mais comum no século XX. A cultura seria radicalmente modificada com a dimensão que alcançariam o rádio e o cinema, no que viria a ser chamado de “cultura de massa”. As mulheres intensificavam sua luta por igualdade de direitos civis e políticos. No México, explodia a Revolução Zapatista e, no Brasil, a Revolta da Chibata, ambas em 1910.
Comparativamente, a profundidade e rapidez das transformações que se vive atualmente não parecem ter impactos menos sensíveis. Muitas das alterações em curso ocorrem de maneira frenética, com desdobramentos que ainda estão por serem completamente compreendidos. Outras são lentas, graduais, mas solapam sorrateiramente o mundo tal como o conhecemos até agora, até que, no futuro, ele não existirá mais.
Assim como o século XX marcou a passagem do ciclo hegemônico inglês para o americano, há sinais contundentes de um processo de transição que pode resultar em uma nova hegemonia no sistema mundial de produção de mercadorias. A substituição do G-8 pelo G-20 e o desenvolvimento econômico das economias do hemisfério Sul (e do que era identificado como o “Terceiro Mundo”) marcam um novo cenário da economia internacional.
Novos padrões tecnológicos de produção e consumo se apresentam, baseados na nanotecnologia, na manipulação genômica, no uso de biocombustíveis. Surgirão novas corporações globais – oriundas de países diferentes daqueles que dominaram o século XX. Ao mesmo tempo, os requisitos de sustentabilidade e igualdade de oportunidades, trazidos à cena pela luta social, abrem espaço para o avanço de alternativas de economia solidária, tecnologias sociais, produção de alimentos orgânicos e valorização dos conhecimentos de comunidades tradicionais.
Uma nova configuração demográfica decorrerá do processo mundial de envelhecimento da população nos países mais ricos e em desenvolvimento, das migrações impulsionadas por problemas climáticos ou conflitos regionais e das novas formas de organização familiar, que ampliarão este conceito para abranger relações que estiveram desabrigadas de seu manto.
As grandes catástrofes deste início de século, como o Tsunami do Índico (2004), o furacão Katrina (2005) e o terremoto do Haiti (2010), além das inundações constantes, das nevascas e das secas rigorosas, colocaram a questão ambiental como um dos pontos mais críticos da agenda mundial e requisito básico para as chances de sobrevivência ou desenvolvimento da maioria dos países.
Em termos culturais, ocorre a mudança do paradigma televisivo para o informacional, com a internet tomando progressivamente o espaço ocupado antes pelo rádio e pela TV. Os antigos meios, incluindo-se aí os jornais, são por ela incorporados. Tal processo acelerou o declínio de muitos dos mais tradicionais meios de comunicação e dos grupos empresariais a eles associados. Seu lugar tem sido tomado pelos grandes conglomerados da comunicação e corporações dedicadas à transmissão de dados e organização de conteúdos. Ao mesmo tempo, abriu-se uma janela para a democratização do acesso à informação e para a ampliação da prestação de serviços, por meio do uso das plataformas eletrônicas. Permitiu-se, também, a multiplicação extraordinária do fenômeno das comunidades de relacionamento, verdadeiras “polis” do ciberespaço.
Em termos políticos, há um aprofundamento da crise histórica dos partidos socialdemocratas europeus, o surgimento de referências políticas de novo tipo, na América Latina (em especial, o Brasil e, cada vez mais, a Bolívia) e em inúmeros governos subnacionais. Há uma maior dimensão dos movimentos de contestação ao neoliberalismo e antiglobalização. Por outro lado, ressurge uma ultradireita que combina racismo, xenofobismo e sensacionalismo midiático.
Fortalece-se o conflito entre religiões que, em muitos casos, tornou-se o principal cimento ideológico da disputa por territórios e pelo destino de milhões de pessoas. Um dos resultados perversos do fim da Guerra Fria foi o de que o preconceito passou a tomar conta do debate ideológico e a definir muitos dos campos em disputa.
Há dez anos, uma das formas mais efetivas e bem organizadas da discussão da transição que se atravessa para este outro mundo é Fórum Social Mundial. Graças à diversidade e multiplicidade de pontos de vista que promove, com pessoas de vários países e continentes, atores de origens sociais e políticas distintas e agentes de processos políticos bastante diferenciados, o Fórum se permite à ousadia de abraçar pelo menos três objetivos: servir de ponto de encontro, servir de espaço de reflexão e servir de base para a mudança.
Em meio a um turbilhão de fatos de grande repercussão atual e histórica, as chances de mudança política dependem exatamente de encontros, de reflexões e de inflexões na prática política. O encontro que o Fórum proporciona diz respeito a quatro atores políticos historicamente fundamentais aos processos transformadores: os movimentos sociais, os partidos, os intelectuais e os governos. A relação que estes quatro atores estabelecem em torno das instituições do Estado e das políticas públicas tem dado origem a experiências políticas diversas e que ainda aguardam um inventário mais sistemático. Os avanços possíveis dependem justamente de um novo desenho na relação histórica entre tais atores.
Neste ano, o Fórum tem particular importância, para além do fato de estar completando uma década. Nas cidades de Porto Alegre-RS, Salvador-BA, Santa Maria e Canoas (no Rio Grande do Sul), Madri e Barcelona, se terá a oportunidade de refletir sobre o quadro internacional, as grandes transformações em curso e as alternativas que podem tornar possível um novo mundo, mais democrático, livre e igualitário do que o foi o do século que passou.
Um dos pontos centrais de discussão será sobre os impactos atuais e futuros da grande crise econômica de 2008/2009, que ainda se arrasta em vários países. A crise tem acelerado a configuração de uma nova trajetória global. Em primeiro lugar, ela acelerou os sinais de que estamos à beira de um novo ciclo hegemônico, liderado pela China, associado às demais economias que lhes são vizinhas (no Sudeste Asiático e Oceania), e que eleva a importância de algumas economias emergentes.
A crise deu força a que este novo pólo dinâmico da produção de mercadorias, a China, fosse capaz, no intervalo de um ano, de produzir duas alterações de magnitude assombrosa: ultrapassar a Alemanha como maior exportadora mundial (fato já ocorrido, no ano passado) e tornar-se a segunda maior economia mundial, suplantando o Japão, evento altamente provável de ocorrer neste ano. Projeções para mais uma década já supõem que o PIB do E7, aquelas consideradas como as sete principais economias emergentes (China, Índia, Brasil, Rússia, México, Indonésia e Turquia), podem superar em 2020 o PIB do conjunto do G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Canadá). A crise fez ainda que as projeções a respeito dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) avançassem em 10 anos. Eles podem estar à frente dos países do G7 não em 2050, mas em 2040.
Transformações dessa magnitude e as perspectivas que temos diante delas são discussões de peso que o Fórum Social Temático da Bahia (Salvador, dias 29, 30 e 31 de janeiro), com o apoio do Governo da Bahia, vai capitanear. Para tanto, conta com pensadores de grande importância para a reflexão de esquerda. Desde os grandes expoentes da teoria do sistema-mundo (Immanuel Wallerstein e Samir Amin), afeiçoados à discussão dos fenômenos de longa duração, até os que, no Brasil, são referências essenciais do debate sobre desenvolvimento econômico e inclusão social, como Paul Singer, Ladislau Dowbor e Tânia Bacelar.
Os painéis recepcionados pelo Fórum permitem justamente o encontro entre representantes de governos, partidos, movimentos sociais e intelectuais, todos eles militantes da causa da transformação da sociedade e mergulhados na busca por projetos que representem alternativas viáveis, nascidos da experiência local, mas que podem alcançar dimensão global.
Dez anos depois, o Fórum se tornou uma referência internacional consagrada do esforço de revirar de ponta-cabeça um mundo que, do contrário, tende a desperdiçar suas chances de por seus povos de pé.
Antonio Lassance, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cientista político, professor do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF).
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